O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.
Brasil: conjuntura de 2023 e perspectivas para 2024
Gilmar Mendes Lourenço.
O infalível episódio de virada de ano costuma despertar e/ou estimular, especialmente no cotidiano dos atores econômicos, sociais e políticos, esforços voltados à realização de detalhada, para alguns, e breve, para outros, reflexão retrospectiva a respeito dos acontecimentos marcantes do intervalo quase encerrado e organização de ideias e delineamento de escolhas estratégicas, baseados nas percepções acerca do futuro imediato ou prolongado.
Esse exercício de avaliação exige criterioso trabalho de apreciação dos movimentos das variáveis determinantes da conformação do ambiente internacional e doméstico e de identificação de oportunidades e ameaças balizadoras do processo decisório macro e microeconômico, englobando táticas do governo, empresas produtivas e financeiras e unidades familiares.
Os princípios elementares das ciências humanas sugerem aos profissionais de economia responsabilidade preponderante na estruturação de instrumentos não exaustivos de análises regressivas e prospectivas capazes de alargar o estoque e fluxo de dados, informações e indicadores correntes, quantitativos e qualitativos, além de extrapolações, colocados à disposição das instâncias deliberativas das comunidades governamental e empresarial e dos elementos do mercado laboral e encarregados das ações de consumo.
Por essa ordem de raciocínio, parece prudente levantar a premissa de que, para o Brasil, o ano de 2023 deve terminar sendo portador de melhores condições funcionais e expectativas menos desfavoráveis, ante aquelas esboçadas e esperadas no princípio do ano, coincidindo com a largada do terceiro mandato presidencial de Lula da Silva (Lula 3).
É consenso que Lula 3 teve início em circunstâncias de mutação da aliança hegemônica de poder, definida pelo sufrágio popular oriundo das urnas eletrônicas, em dois turnos de votação acontecidos em outubro de 2022, e transbordamento e otimização da polarização entre as frações de esquerda e direita do espectro ideológico.
A intensificação das posturas extremistas, já suficientemente abastecidas pelos enormes protestos populares de meados de 2013, os desdobramentos da operação Lava Jato, sobretudo a condenação em segunda instância e prisão do ex-presidente Lula, por crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, e a vitória da postulação de ultradireita, no pleito ao cargo de chefe de estado, em 2018, oportunizou a eclosão de incursões de abalo do regramento dos pilares operacionais do estado democrático de direito.
De fato, a emergência, consolidação e calcificação de um arranjo conservador, sintetizado em uma considerável legião de inconformados com os resultados eleitorais, culminou na invasão golpista dos prédios públicos da Praça dos Três poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023.
O empreendimento das iniciativas antidemocráticas foi instantânea e veementemente repudiado, enfrentado e desmanchado, acompanhado de prisões, investigações, julgamentos e condenações dos envolvidos, abarcando planejadores, financiadores e executores.
Também multiplicavam incertezas quanto à solvência do setor público, em face da bomba fiscal armada ao longo de 2022, constituída por providências populistas, acionadas pelo incumbente de plantão, interessado na viabilização do desejo de reeleição, com endosso da ala fisiológica do parlamento, em absoluto desprezo à responsabilidade fiscal.
O festival de gastança de haveres públicos, focada na empreitada eleitoral, esteve amparado no calote dos precatórios, na renúncia transitória de impostos incidentes sobre a comercialização de combustíveis, na antecipação recorde do pagamento dividendos da Petrobras à União e na anarquização do programa Bolsa Família, transformado, junto com o Auxílio Emergencial, criado em 2020, em Auxílio Brasil, com a transferência de valores únicos, independentemente do tamanho da família, o que fez disparar o número de membros solitários.
Igualmente destacável foi o escandaloso acréscimo da alocação orçamentária e repasse de cifras relativas às emendas de deputados e senadores, particularmente aqueles ligados à cúpula do bloco conhecido como Centrão, aliado rigorosamente a todos os governos, destinados prioritariamente ao suprimento das demandas dos currais eleitorais.
Ressalte-se que essas anomalias foram contornadas, ainda em 2022, depois do malogro do empreendimento de continuidade e desistência do atributo de governar pelo candidato derrotado, que, tão logo proferidos os números definitivos da contenda, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), providenciou férias antecipadas a serem usufruídas em terras americanas, habitadas também por seu guru autocrata, o ex-presidente Donald Trump.
Mais especificamente, a equipe do comandante eleito desencadeou um processo de negociação e entendimento com o Congresso Nacional, no sentido da montagem, encaminhamento, discussão e aprovação da PEC da Transição, essencial à acomodação dos potenciais rombos fiscais deixados pela gestão antecessora e da cobertura financeira dos compromissos sociais acordados com a população pela candidatura vencedora no transcorrer da campanha.
Contudo, o aprofundamento dos expedientes de atuação governamental serviu também para desnudar divergências não triviais, algumas históricas, no interior da cúpula da esplanada dos ministérios e adjacências políticas.
De um lado, figuram os fiscalistas, capitaneados pelo titular da Fazenda, Fernando Haddad, ferrenhos defensores da emissão de sinais inequívocos no caminho do equilíbrio intertemporal das finanças públicas, como uma espécie de requisito à diminuição estrutural da taxa básica de juros, utilizada pelo Banco Central (BC) no afã de debelar os focos de aceleração inflacionária, e à retomada sustentada do crescimento econômico.
De outro, os denominados desenvolvimentistas ou heterodoxos, puxados pelo próprio chefe do executivo, em cruzada contra a exagerada ortodoxia monetária do BC, pelo encarregado da coordenação política do governo, o comandante da Casa Civil, Rui Costa, pelos líderes do Partido dos Trabalhadores (PT), legítimos arautos do “fogo amigo”, e pelas agremiações do Centrão, igualmente integrantes da base, permanecem empenhados na obtenção de incontáveis licenças para efetuar crescentes despesas com recursos repassados pelos contribuintes.
Cumpre reconhecer que para Lula 3 e, em menor medida, os adeptos da tese de que “dispêndio público é vida”, a vontade prioritária residia na recriação de mecanismos que assegurassem o revigoramento, ainda que conjuntural, da demanda doméstica, compensatoriamente aos efeitos do ambiente de estagflação global, combinando o prosseguimento do quadro de desaceleração dos níveis de atividade e comércio e a impulsão da inflação aos maiores patamares da história.
A perda de embalo da economia mundial constitui fenômeno não tão recente, plantada por tensões de reacomodações geopolíticas, com a nova disputa hegemônica, travada entre Estados Unidos (EUA) e China, que se tornou flagrante desde o escancaramento da guerra comercial, no transcorrer da administração do republicano Trump.
O cenário menos róseo passou a esboçar contornos de instabilidade com o surgimento e rápida propagação do Sars-CoV-2, com impactos geográficos heterogêneos, de acordo com a junção de empenho das autoridades e adesão da população ao cumprimento das restrições sanitárias e a velocidade de vacinação das pessoas depois da descoberta dos imunizantes.
As incertezas ocasionadas pela pandemia impuseram o derrame de vultosas somas de recursos fiscais e financeiros, por parte de tesouros nacionais e BCs, com o propósito de abrandamento dos efeitos negativos do surto no funcionamento das empresas e no emprego e fluxo de rendimentos das famílias.
A ausência de calibragem temporal apropriada à manutenção das benesses emergenciais, em paralelo à pronunciada desarrumação das cadeias de suprimento de insumos, matérias primas e bens finais, resultou em um choque duplo de demanda e oferta, catapultando os índices de inflação.
Com inexplicável retardo, os BCs e governos das nações avançadas e emergentes recorreram ao arsenal de austeridade fiscal e monetária no combate à espiral de preços, evento magnificado após a invasão russa ao território ucraniano e, em consequência, a imposição de sanções comerciais, contrabalançadas pela maior aproximação e estreitamento de laços entre Kremlin e Pequim, a descontinuidade de abastecimento e disparada das cotações de gás natural, petróleo e fertilizantes, preponderantemente para a Europa, e o alongamento do conflito.
Tanto é assim que a taxa de juros básica dos EUA, situada na faixa entre 0 e 0,25% ao ano, entre janeiro de 2020 e janeiro de 2022, foi submetida a onze rodadas de elevação, chegando à banda de 5,25% a.a. a 5,5% a.a., em julho de 2023, mantida até dezembro de 2023, o maior nível desde 2001, com indicações de ocorrência três cortes discretos de 0,25% a.a., ao longo de 2024, o que conduzirá o preço dos papéis à zona entre 4,5% a.a. e 4,75% a.a.
A taxa dos Fed Funds vem sendo preservada nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Fomc), apesar do declínio da inflação anual de 8%, em 2022, para 3,2%, em doze meses findos em novembro de 2023, por conta da ainda razoável distância para a meta anual de 2%, estipulada pelo Fed (Federal Reserve), BC dos EUA.
O mercado de trabalho norte-americano tem se mantido aquecido, evidenciado pela queda na taxa de desemprego de 3,8% para 3,7% da força de trabalho, entre outubro e novembro de 2023, convergindo em direção ao piso histórico, estimado em 3% pelo Bureau of Labor Statistics.
Já, na União Europeia, os juros nominais de remuneração dos depósitos se deslocaram de negativos, entre 2020 e julho de 2022, para o status de 4% a.a., em outubro de 2023, depois de dez incrementos consecutivos, que foi preservado em dezembro, consubstanciando o maior patamar da série histórica, iniciada em 1999, com a inauguração do euro. A taxa de empréstimos continuou em 4,75% a.a. e a de refinanciamento em 4,5% a.a.
A orientação de austeridade monetária, imprimida pelo Banco Central Europeu (BCE), não deve ser arrefecida em curto prazo, a despeito da queda da inflação anual da zona do euro, do recorde de 10,6%, em outubro de 2022 – ápice das influências da guerra -, para 2,9%, em outubro de 2023, contra meta de 2%. Cálculos do Eurostat mostram que o desemprego está em 6,5% da força de trabalho.
Não por acaso, depois de crescer 3,5% a.a., entre 2013 e 2018, impulsionado pela China, que subiu 7% a.a., a economia mundial, variou apenas 2,2% a.a., entre 2019 e 2022, e deve fechar 2023 com acréscimo de 2,9%, contra previsão de 3,3%, no começo do ano, e 2,7%, em 2024, de acordo com inferências coincidentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que sugere “dias difíceis”.
O produto interno bruto (PIB) dos EUA deve avançar 1,5%, em 2024, fortemente influenciado pela atmosfera eleitoral, ditada pelo favoritismo de Trump e a erosão de popularidade de Joe Biden, versus 2,4%, em 2023, o da Zona do Euro, 0,9%, ante 0,6%, em 2023, e do China, 4,7%, ante 5,2%, em 2023, este último ladeado pelo perigo iminente de estouro de bolha imobiliária e o inevitável poder de arraste sobre os investimentos em infraestrutura.
Sem contar o componente de imprevisibilidade subjacente à ofensiva militar israelense sobre os territórios ocupados pelo grupo terrorista Hamas, iniciada em outubro de 2023, em uma demonstração cabal da capacidade exterminadora de regimes totalitários desesperadamente preocupados com o resgate de popularidade.
Em circunstâncias tão inóspitas, a gestão brasileira privilegiou a reinserção ativa no front global, realçada com a inédita posse na presidência do G20, e a ativação do modo anticíclico no terreno doméstico, por meio do acionamento de válvulas de escape ou de adiamento da internalização dos embaraços exógenos.
O elenco contra a crise abrangeu a ressurreição e/ou aperfeiçoamento de procedimentos utilizados em Lula 1 e 2 e Dilma 1, como a restauração reorganizada do Bolsa Família – cuja importância saltou da média histórica de 0,4% do PIB, para 1,7% do PIB, em 2023 -, do programa Minha Casa Minha Vida, da valorização do salário mínimo – bandeira histórica da centro-esquerda brasileira -, do Farmácia Popular e da criação do Desenrola, programa focado na diminuição da inadimplência e recuperação do acesso ao crédito, notadamente das famílias pobres.
Na mesma linha, houve o anúncio do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – velho conhecido em permissividade de malversação de haveres públicos -, designado à retomada de mais de 14 mil obras paralisadas no governo anterior e alavancando por aportes financeiros no mínimo discutíveis, como o uso predominante das companhias estatais, puxadas pela Petrobrás.
As estatísticas do IBGE demonstram resposta positiva da absorção doméstica, precisamente das variáveis ligadas ao presente, ao grupo de estímulos. Embora a estagnação apurada no terceiro trimestre de 2023, quando experimentou ampliação de apenas 0,1%, o PIB subiu 3,2%, entre janeiro e setembro, embalado pela agropecuária (18,1%), exportações (9,8%) e consumo das famílias (3,4%).
Cabe sublinhar a notável variação de 7% das atividades financeiras, o que oportuniza enxergar a intocabilidade do rentismo ou a vitalidade da transferência de renda dos setores produtivos aos emprestadores e/ou especuladores, por essas paragens.
Mas, o “patinho feio” do desempenho dos agregados macroeconômicos comportou o parâmetro relacionado ao futuro. Os investimentos recuaram -2,6%, em igual base de aferição, e a formação bruta de capital fixo declinou de 18,3% do PIB, entre julho e setembro de 2022, para 16,6% do PIB, no mesmo lapso de 2023.
A taxa de desocupação, captada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, exibiu moderado, porém consistente, redução de 8,4% para 8% da força de trabalho, entre os trimestres móveis terminados em janeiro e outubro de 2023.
Ao mesmo tempo, a inflação, dimensionada pelo índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA), do IBGE, diminuiu de 5,79%, em 2022, para 4,68%, em doze meses até dezembro de 2023, ficando pela primeira vez desde 2020, dentro do intervalo fixado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) para o regime de metas (entre o piso de 1,75% e teto de 4,75%, com centro de 3,25%).
Na órbita do mercado de capitais, em dezembro de 2023, o Ibovespa passou a flertar constantemente com o furo da marca recorde de 130 mil pontos contra 109.735 pontos anotados no apagar das luzes de 2022.
Em seu corner, o ministro Haddad, revelou surpreendente inclinação ao diálogo político nas tarefas de transparente preparação, envio, tramitação e deliberação legislativa das emendas constitucionais da nova regra fiscal flexível, a ocupar o lugar do rígido teto de gastos, criado no período de Michel Temer e destroçado pelo time de Bolsonaro, e da simplificação da cobrança da tributação indireta, com a instituição do imposto sobre valor agregado (IVA), a ser cobrado no destino.
A reforma tributária exprime aspiração de mais de quatro décadas da sociedade brasileira, enfraquecida e esfacelada com a submissão forçada a um sistema anacrônico, desorganizado, cumulativo, regressivo, fomentador da guerra fiscal e dos desequilíbrios regionais e completamente desalinhado dos padrões internacionais.
Nesse caso, o chefe da economia abdicou do protagonismo na arrumação e explicitação de uma iniciativa própria, brotada do interior do ministério, e incitou a tramitação da proposta que estava encostada no Congresso Nacional desde 2019, já suficientemente discutida intramuros e com a comunidade de negócios.
O documento aprovado pelo parlamento (Emenda Constitucional 132), a ser regulamentado por leis complementares, ordinárias e resoluções do Senado, em aproximadamente seis meses, sacramenta a troca, em dez anos, dos impostos federais (IPI, PIS e Cofins), e subnacionais (ICMS, dos estados, e ISS, dos municípios), integrantes do IVA dual (nacional e regional).
Foi criada uma cesta básica restrita, com direito à cashback para famílias de baixa renda, e um gravame seletivo para bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, além da preservação do Simples nacional e do regime de incentivos à Zona Franca de Manaus.
No grupo das excepcionalidades, os profissionais liberais foram agraciados com alíquota diminuída em 30%, e os ramos de hotelaria, parques de diversões, agências de viagens, bares e restaurantes merecerão regimes específicos.
Foram excluídos do tratamento especial os segmentos de saneamento, rodovias, telecomunicações, transporte aéreo, economia circular e mini e micro geração de energia, e suprimida a concessão de bônus a estados que aumentassem a arrecadação entre 2024 e 2028, o que foi desavergonhadamente empregado pelos poderes executivo e legislativo das unidades federadas como desculpa para a majoração das alíquotas de ICMS por 17 delas.
Avalia-se que a alíquota total incidente sobre o consumo será de 27% e estará entre as maiores do mundo e simulação do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) indica que nenhum estado e apenas 32 municípios sofrerão diminuição de arrecadação após os 50 anos de transição para a tributação na ponta.
Predomina nos meios especializados a apreciação de que essas alterações tributárias representariam um salto estrutural semelhante ao processo de estabilização de preços, imprimido em 1993 e 1994, que ao eliminar a hiperinflação, e restaurar as funções tradicionais de unidade de conta, reserva de valor e meio de pagamento da moeda, desembocou no lançamento do Real, em julho de 1994.
Justamente a esses dois aprimoramentos institucionais, regra fiscal e simplificação de tributos, deve ser imputada a melhora da nota de risco da dívida soberana brasileira, aplicada pelas três mais importantes agências de rating internacionais, e a subsequente facilitação da captura de recursos externos.
Mesmo com essas indiscutíveis vitórias, em inúmeras ocasiões, o ministro teve que atuar como verdadeiro bombeiro, dedicando-se a apagar incêndios de exacerbação da desconfiança dos agentes, ocasionados por companheiros do governo e do PT, e por gulosos do Centrão, rotineiramente ocupados em desqualificar e negligenciar o equilíbrio fiscal e a meta de superávit primário (receitas menos despesas, fora os juros da dívida) zero para 2024, apresentada na nova regra fiscal e na Lei Orçamentária.
Os efusivos discursos enfatizando o “austericídio fiscal” e o caráter lesivo da autonomia do BC, proferidos na Conferência Eleitoral do PT, em 8 de dezembro de 2023, e ratificados em resolução pela direção nacional da sigla, reproduzem exemplos patéticos da atuação induzida por abnegado apego à tese de infinitude dos recursos públicos.
Sem a necessidade de resgatar o consistente argumento de inexistência de contradição entre estabilidade fiscal e crescimento econômico, comprovado nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) 2 (1999-2002) e Lula 1 e 2 (2003-2010), convém chamar a atenção para alguns sintomas de desarranjos presentes no curso da atividade econômica.
Os indicadores relativos ao mês de outubro de 2023 insinuam prosseguimento do esfriamento do ímpeto de produção e negócios, esboçado no terceiro trimestre. O volume de produção e o faturamento real industrial (com desconto da inflação) aumentaram 0,1% e zero, em outubro, e zero e -1,0%, entre janeiro e outubro, respectivamente, segundo levantamentos do IBGE e Confederação Nacional da Indústria (CNI).
O volume de vendas do varejo e de serviços caíram -0,4% e -0,6%, respectivamente, em outubro, reflexo da conexão entre elevado endividamento das famílias, mesmo com o indiscutível sucesso do Desenrola, e os juros exorbitantes cobrados pelas instituições financeiras.
Só a título de ilustração, na modalidade do rotativo do cartão de crédito, utilizada por 87,7% dos consumidores entrevistados por sondagem da Confederação Nacional do Comércio (CNC), a média de juros superava 430% a.a., em outubro de 2023, segundo o BC. Ademais, o Serasa denotou, em novembro de 2023, 71,8 milhões de pessoas inadimplentes no Brasil, o que equivale a 43,8% da população adulta.
Na mesma batida, o celebrado desempenho do setor externo, acompanhado pelo Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comercio (MDIC), expôs, entre janeiro e novembro de 2023, expansão de somente 0,5% das exportações, em US$, e queda de -12,1% das importações, associada principalmente ao menor dinamismo econômico externo e interno.
As exportações da agropecuária avançaram 8,2% e as da indústria de transformação encolheram -3,6%, enquanto as compras internacionais do agro, indústria extrativa e de transformação declinaram -21,3%, -24,6% e -10,7%, respectivamente.
Diante do que foi assinalado, é fácil notar que eventuais gorduras, acumuladas ao longo da excepcional expansão verificada no primeiro semestre de 2023, vem sendo rapidamente queimadas. Tanto que entidades multilaterais estrangeiras e a pesquisa Focus do BC são convergentes na aposta de incremento de 2,9% do PIB brasileiro, em 2023, e de somente 1,5%, em 2024.
O BC ainda prevê retração da inflação anual, referenciada no IPCA, do IBGE, de 4,49%, ao final de 2023, para 3,93%, em dezembro de 2024, estabilidade cambial ao redor de R$ 5,00, e decréscimo da Selic de 11,75% a.a., para 9,25% a.a., no intervalo em tela.
Os prognósticos de descida vagarosa dos juros estão assentados nos receios da repercussão inflacionária vinculada às suspeitas de descumprimento das metas fiscais e aderentes à conduta do Comitê de Política Monetária (Copom), do BC, materializada na feitura de cortes de meio ponto percentual na Selic, a cada intervalo de 45 dias.
Na reunião de 13 de dezembro, o Comitê reduziu a taxa básica de 12,25% a.a. para 11,75% a.a., sendo o quarto corte consecutivo desde agosto de 2023, quando estava em 13,75% a.a. Tal nível fora mantido desde agosto de 2022, depois de seguidas subidas, desde março de 2021, quanto estava em 2% a.a. (setembro/2020-janeiro/2021).
As predições extremamente modestas para a evolução dos níveis de atividade estão impregnadas de manifestações de cautela dos agentes econômicos, derivadas da inflexão externa e maximização das inquietações quanto as chances de produção de uma sintonia fina entre as agendas fiscal e social do governo Lula 3.
Isso é particularmente grave, em ano de eleições municipais, cruciais à estruturação do xadrez político de 2026 e elementos de sangria dos cofres públicos em dimensão que pode repetir, se depender da vontade dos caciques partidários e do molejo legislativo, o absurdo montante alocado para o fundo eleitoral, no pleito de 2022 (mais de R$ 5 bilhões), com as bençãos de representantes da oposição e partidários do governo.
Não bastasse essa aberração, a ofensiva legislativa para domínio pleno do orçamento levou à fixação de valores médios das emendas previstas para cada parlamentar, em 2024, a vultosos R$ 58 milhões, o que supera as cifras médias transferidas a quase 80% dos municípios brasileiros e, o que é mais gritante, não possui qualquer elo com as políticas de estado.
As prospecções para 2024 também encampam a não captura de firmes compromissos oficiais com o aprofundamento da nova geração de reformas institucionais, começada com o novo marco fiscal e a flexibilização tributária, imprescindíveis à devolução da capacidade operacional da máquina pública e reversão da tendência cadente da produtividade e investimento microeconômico.
A propósito disso, a produtividade da mão de obra no país ocupou o 57º posto, em um painel de 62 pesquisados pelo World Population Review, em 2022, atrás de Argentina, México, Uruguai, Chile, Colômbia, Peru e Equador. Algumas nações avançadas como Noruega, EUA e Alemanha, contabilizaram indicadores sete vezes, 6,2 vezes e 5,3 vezes, respectivamente, maiores que o brasileiro.
Ainda há disponibilidade de capital político para a virada do jogo. A aprovação popular ao governo, extraída de medições do Datafolha, tem flutuado ao redor de 38%, desde o mês de março de 2023, superando Dilma 2, Temer e Bolsonaro, e a confiança empresarial vem permanecendo no terreno do otimismo, ainda que próximo da zona de indiferença entre ânimo e desânimo.
Por isso, urge carregar nas tintas na solidificação do conjunto de requisitos ao equilíbrio fiscal e o engate em fases expansivas duradouras, amparados em amplas modificações na administração pública, para que as diferentes esferas de governo voltem a alojar-se no restrito perímetro da peça orçamentária; e no adensamento de regulações que incentivem o acirramento da concorrência interbancária e a democratização e barateamento do crédito.
Com semelhante relevância sobressaem a premência de promoção de radical desburocratização dos negócios e da vida das pessoas, aceleração das privatizações e concessões e formulação e implantação de uma política industrial, em linha com o upgrade tecnológico propiciado pelo mix inteligência artificial e processos digitais e a transição energética limpa, para o que o Brasil desfruta de flagrantes vantagens competitivas.
Por fim, é crucial o alçamento da educação ao primeiro degrau dos programas de inclusão social, indispensável à formação cidadã e obtenção de autênticos saltos de eficiência, determinados pela proximidade de fechamento da janela demográfica e envelhecimento da população.
Só assim, em médio e longo termo, os estudantes brasileiros de 15 anos, submetidos aos exames do PISA, aplicados a cada triênio pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), poderão mudar o retrato de aprendizado sofrível em leitura, ciências e, principalmente, matemática, fundamental ao raciocínio e amadurecimento integral.
Em síntese, malgrado as não desprezíveis barreiras e desafios a serem enfrentados e suplantados a partir de 2024, soa correto admitir a supremacia dos otimistas, na contenda de antevisão do corrente ano contra os catastrofistas, ao despejarem palpites construtivos sobre a mesa de opiniões.
Os mais esperançosos espreitadores da conjuntura conferiram distinção ao robustecimento da democracia e da recuperação econômica, queda do desemprego e acréscimo dos rendimentos dos trabalhadores, inflação controlada e valorização dos papéis negociados em moeda nacional. O melhor de tudo é que acertaram.