Por que a bolha de “Negócios da China” ainda não estourou?
Dentre as apreciáveis barreiras levantadas à recomposição do padrão de expansão sustentada da economia chinesa, desde a superação da crise sanitária provocada pela pandemia de Covid-19, destacam-se as renovadas apostas de estouro da denominada “bolha imobiliária”, a maior da história segundo alguns especialistas, e, como consequência, a repetição dos efeitos negativos em cascata verificados em outras épocas em diferentes mercados.
Essa ameaça tornou-se mais evidente, quando contemplada por exacerbado alarmismo de fora para dentro do território e sistema financeiro chinês, com o advento do episódio de decretação da falência do China Evergrande Group, em janeiro de 2024, quando contabilizava passivo de mais de US$ 300 bilhões, o que serviu como acionamento dos sinais de alerta pela comunidade internacional.
A companhia, maior do mercado imobiliário do gigante asiático, passou a exprimir sintomas de fraqueza desde os percalços ocasionados pelo surto pandêmico, em 2020, quando, diante de crescentes limitações à tomada de financiamentos, intensificou o emprego de artifícios contábeis, a ponto de ser abandonada pela Price Waterhouse Coopers.
Adicione-se ao conjunto de desgraças a precária gestão e supervisionamento corporativo que empurrou a empresa ao anúncio de moratória, em 2021, não solucionada com os vultosos aportes realizados por grandes organizações ocidentais, como Allianz, Ashmore, Black Rock, UBS e HSBC.
É claro que o caso Evergrande não constitui evento isolado. Há registros de outras corporações de grande porte, como a Country Garden Holdings, com dificuldades de caixa, que caminham a passos largos na direção da insolvência, imputada à perversa conjugação entre aumento do endividamento e encolhimento das vendas.
Inclusive, mensurações do governo chinês – um autêntico esconderijo de informações e indicadores atualizados -, tidas como subdimensionadas, apontam excesso de oferta em relação à demanda superior a 1,5 bilhão de pessoas habilitadas à ocupação dos imóveis.
A perspectiva de default daquelas organizações traduz a natureza superdimensionada do mercado imobiliário chinês, fortemente incentivado durante quase três décadas de vigência do modelo crescimento sustentado em grandes investimentos em infraestrutura e flertes com o capitalismo.
Tratou-se de criteriosa escolha política que objetivava impulsionar o processo de urbanização, ou a invasão do campo pelas cidades, e estimular as exportações de manufaturas, inicialmente baratas, por conta do reduzido custo de mão de obra e da manutenção do câmbio depreciado, e, mais adiante, dotadas de elevada densidade tecnológica, traduzida na capacidade de produção fármacos, circuitos integrados e veículos elétricos, por exemplo.
De outra parte, sobressai a apreciável interferência do ambiente de continuidade da desaceleração da economia global, coincidindo com os desdobramentos da guerra comercial entre Estados Unidos (EUA) e China – desencadeada na administração do presidente norte-americano, Donald Trump -, e aprofundada com a longa duração do conflito entre Ocidente e Rússia, na Ucrânia, e os novos confrontos no Oriente Médio.
A insuficiente oxigenação da atividade global advém, neste começo de 2024, da forte resistência da inflação de serviços, o que vem atrasando a retirada gradativa dos instrumentos de austeridade monetária acionados pelos principais bancos centrais, desde 2022.
A perda de embalo dos negócios internacionais precipitou uma verdadeira guinada na orientação macroeconômica chinesa, por meio de estímulos ao mercado interno e realização de vultosas inversões em tecnologia, capazes de catapultar a capacidade competitiva dos produtos industriais Made in China no resto do mundo.
Ainda assim, passada a etapa de estupenda e prolongada impulsão – com média superior a dois dígitos ao ano, entre 1978 e 1998, até a quebra do aparentemente inofensivo subprime, mercado de hipotecas de segunda linha dos EUA -, depois de crescer 7% a.a., entre 2013 e 2018, contra média mundial de 3,5% a.a., o produto interno bruto (PIB) chines subiu 4,9% a.a., entre 2019 e 2022, versus 2,2% a.a., da média mundial, e 5,2%, em 2023, contra 3,1% do mundo, conforme cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Nas circunstâncias atuais, é interessante lembrar que qualquer lampejo de estagnação ou decréscimo dos níveis de atividade na China, segunda maior economia do planeta, com PIB estimado em US$ 18 trilhões, afetará decisivamente a performance das transações da esmagadora maioria das nações, pois mais de cem delas tem na potência asiática seu principal parceiro comercial.
No entanto, não parece absurda a negação da eventualidade de ocorrência de um ciclo especulativo convencional e descontrolado, derivado da formação de movimentos de supervalorização e depreciação dos ativos imobiliários, tal como verificado em diferentes períodos e espaços geográficos, produzidos pelas conhecidas falhas de mercado.
Isso porque, a evolução exponencial das atividades imobiliárias chinesas, responsável por ¼ do PIB nacional, até meados de 2021, resultou, conforme advertido anteriormente, de decisões oficiais planejadas que esbarraram na inflexão econômica global e na diminuição da velocidade de aumento da população, fruto do envelhecimento da pirâmide etária, derivado da concatenação entre decréscimo da natalidade e ampliação da longevidade.
Não é difícil apreender a promoção de um ajuste não traumático no descompasso entre volume de construções e dimensão da demanda, por parte do estado chinês, que exerce controle absoluto sobre as instituições financeiras atuantes no país, o que afasta o perigo de eclosão de instabilidade sistêmica.
Segundo estimativas da instituição financeira suíça UBS, como efeito da diretriz política de compressão de empréstimos oficiais às incorporadoras, a quantidade de obras caiu quase 40%, em 2023, em confronto com 2020, e a comercialização de imóveis tende a estacionar em patamares equivalentes a 50% do auge, constatado no biênio 2020- 2021.
Diga-se de passagem, que, no pico, o segmento operou como uma espécie de anteparo ao cenário de acentuada retração econômica, decorrente das inúmeras restrições impostas à circulação de pessoas, durante o enfrentamento da escalada desordenada do Sars-CoV-2, o que serviu para encobrir os perigos de desequilíbrio potencial.
Considerando que há diminutas chances de compensação da exaustão boom imobiliário por expressivos acréscimos nos investimentos nos demais setores, o PIB per capita chinês, aferido pelo critério de paridade de poder de compra, corresponde a menos de ¼ do americano, e perpetuam-se elevados níveis de poupança interna, vislumbra-se enorme margem de manobra para amparo monetário (oferta de crédito subsidiado) e fiscal (aumento de gastos e diminuição de impostos) à ancoragem da retomada do crescimento via consumo.
Inferências do FMI revelam que ao não consumir mais de 40% do PIB, a China encarregou-se de 28% da poupança global, em 2023, contra 33% dos EUA e Europa, agrupados, o que maximiza também as possibilidades de financiamento a projetos de investimentos no exterior.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.