Brasil: meta fiscal em ambiente de desigualdade social
Gilmar Mendes Lourenço.
A mobilidade das metas para o saldo primário das contas públicas, oportunizada pelo novo modelo de perseguição do equilíbrio fiscal intertemporal, aprovada pelo Congresso Nacional em agosto de 2023, extrapola os limites estabelecidos pelas frequentes crises de ansiedade e pânico e alterações de humor explicitadas pelos representantes das mesas de operações com portfólios de maior grau de incertezas e ameaças.
As estatísticas consolidadas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), preparadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativas ao exercício de 2023, permitem constatar a consolidação do quadro de recuperação do fluxo de renda das famílias brasileiras, iniciada em 2022, a partir da deflagração de providências de estímulo eminentemente eleitoreiras.
Tanto o denominado “rendimento médio mensal real domiciliar per capita”, já descontadas as perdas oriundas da corrosão inflacionária, quanto a participação absoluta e relativa da população com renda do trabalho, alcançaram patamares recordes da série histórica, iniciada em 2012.
O rendimento chegou a R$ 1.848 por pessoa por mês, representando incremento de 11,5% frente a 2022, e a contribuição da renda do trabalho, na soma de recursos obtidos pelas famílias, passou de 44,5% (95,2 milhões de pessoas), em 2022, para 46,0% (99,2 milhões), em 2023.
A proporção de domicílios com algum ente beneficiário do programa Bolsa-Família pulou de 16,9% para 19,0%, no mesmo intervalo, contra 14,3%, em 2019. Nesse subgrupo específico, o rendimento per capita cresceu 42,4%, entre 2019 e 2023, saltando de R$ 446 para R$ 635), versus variação de 8,6%, para os não beneficiados, ou de R$ 2.051 para R$ 2.227.
O número de famílias abrigadas no programa aumentou de 13,2 milhões para 21,1 milhões, entre dezembro de 2019 e dezembro de 2023, e os desembolsos mensais experimentaram expansão de R$ 2,1 bilhões para R$ 14,2 bilhões, em igual período de tempo.
Com isso, cálculos do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelam que a extrema pobreza (rendimento familiar mensal per capita inferior a R$ 303) registrou o menor nível da história, descendo de 9,6% da população (19,5 milhões de pessoas), em 2022, para 8,3% (16,9 milhões), em 2023.
O panorama aparentemente promissor contrasta com a estagnação do índice de Gini (que varia entre zero e a unidade, denotando menor desigualdade à medida que se aproxima do limite inferior) que marcou 0,518, o mesmo patamar de 2022, mesmo sendo o menor da série histórica.
A grande distorção repousa no fato de que o 1% mais rico da população (R$ 20.664 per capita/mês) contabilizou renda média 39,2 vezes superior à percebida pelos 40% detentores de menor nível de rendimento, e 98,4 vezes maior que a dos 10% mais pobres, o que sugere preocupante perpetuação da disparidade social, abrandada com as transferências oficiais.
Decerto que fração não desprezível do ambiente virtuoso pode ser imputada ao empuxe externo, que impulsionou a cadeia de ramos mais articulada às exportações, notadamente do agronegócio, com desdobramentos multiplicadores dinâmicos, as conhecidas externalidades, na absorção doméstica.
A fortaleza exógena derivou da plena, ainda que dramática, precificação e incorporação dos efeitos dos dois grandes conflitos bélicos em andamento, um travado entre Rússia e Otan, em terras ucranianas, e o outro localizado no Oriente Médio, depois da desproporcional reação de Israel aos ataques praticados pelo grupo terrorista Hamas, desde o começo de outubro de 2023.
A estabilidade das cotações das commodities alimentares, com incremento anual inferior a 3%, e a queda de -4% nos preços das matérias primas energéticas e metálicas, estimada pelo BC e o Commodity Research Bureau, ensejaram a contração das pressões inflacionárias e a reversão da conformação do clima recessivo, em escala global, contrariando os prognósticos mais catastrofistas dos analistas.
Embora distante da meta de 2% ao ano, fixada pelas autoridades monetárias das economias centrais, o recuo da espiral de preços proporcionou a recomposição do poder aquisitivo dos mais importantes mercados, o que induziu a retomada dos níveis de atividade e emprego.
Tanto que depois de subirem quase de 9%, em 2022, a maior elevação desde 1995, os índices de varejo despencaram para 5,8%, em 2023, sendo 3% nos países ricos, e 8%, nos em desenvolvimento, de acordo com acompanhamento do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Já o produto interno bruto (PIB) mundial cresceu 3,2%, no ano passado, ante previsões iniciais inferiores a 3%, com variação de 1,6% nas economias avançadas (3,1%, nos EUA, e apenas 0,1%, na Zona do Euro), e 4,5%, nos emergentes, puxados por Índia (6,8%) e China (5,4%).
Enquanto isso, a taxa de desemprego decresceu de 5,3% da força de trabalho, em 2022, para 5%, em 2023, situando-se atualmente em 3,8%, nos EUA, próximo do piso de pleno emprego do pós-guerra, o que explicaria a postura conservadora do Federal Reserve (Fed), Banco Central norte-americano, no desencadeamento de rodadas de cortes nas taxas de juros, absolutamente impotentes na derrubada da inflação de serviços.
No entanto, parece interessante assinalar que a mola propulsora da massa de rendimentos no Brasil, em 2023, repousou na combinação entre o prosseguimento do revigoramento do mercado de trabalho e a decisão política de resgate reorganizado e alargado das iniciativas oficiais de proteção social, preponderantemente o programa Bolsa Família e a concessão de reajuste do valor do salário mínimo acima da inflação pretérita.
Recorde-se que aquelas conquistas, acompanhadas do consistente processo de supressão da hiperinflação, propiciado pela concepção e execução da estabilização macroeconômica, desde 1993, explicam parcela considerável da inclusão e mobilidade social, acontecida entre 1994 e 2014.
Cumpre destacar a interferência adicional do reforço do programa Minha Casa Minha Vida e da implantação do Desenrola, ação destinada prioritariamente à retirada da condição de inadimplência e, por extensão, a recomposição da capacidade de tomada de crédito, da população mais vulnerável.
Por essa perspectiva, o afrouxamento das metas fiscais para os anos de 2025 (de superávit primário de 0,5% do PIB para zero) e 2026 (de saldo positivo de 1% do PIB para 0,25%), contemplada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), elaborada pela equipe econômica do governo e enviada ao parlamento neste mês de abril, decorreu da percepção e adesão às extrapolações menos róseas para o comportamento das receitas e, sobretudo, ao reconhecimento das crescentes barreiras institucionais impostas à redução estrutural dos dispêndios públicos.
Em se considerando verdadeira a premissa de que, em um ambiente de predominância da imaturidade nas escolhas políticas, até as pedras sabiam que os objetivos fiscais, firmados há menos de um ano, seriam descumpridos, soa inadequada sua escalação como componente principal do arrazoado das incursões especulativas, verificadas nos redutos de transações com moeda estrangeira, juros futuros e mercado de capitais.
Simulações produzidas pelo economista Bráulio Borges, do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da FGV, permitem inferir que mais da terça parte do recente alvoroço recente nas mesas das operações de risco possui raízes nas tensões internacionais, resumidas nas chances de adensamento geográfico do confronto no Oriente Médio e indicação de preservação do aperto monetário pelo FED, o que ensejou a ascensão dos preços do petróleo e a valorização do dólar nos diferentes cantos do planeta.
Até porque, desde o nascedouro do novo arcabouço fiscal, as negociações com os bônus da dívida pública, o dólar, e as ações encamparam a enorme probabilidade de ocorrência de revisões, em face das apreciáveis incertezas subjacentes à evolução do ciclo político, institucional e econômico, global e nacional, agudizado pela proximidade de inúmeras eleições polarizadas, com o iminente perigo de rupturas, mesmo que veladas, do processo democrático.
Sem contar que o aparato fiscal prevê o emprego de expedientes corretivos, com ênfase ao contingenciamento de até ¼ das despesas discricionárias, abrigo dos investimentos do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no exercício atual; ao disparo de gatilhos, como a não concessão de reajustes aos servidores federais e proibição de realização de novos concursos, no ano dois; e ao rebaixamento do teto de subida do gasto de 70% para 50% da variação da receita.
De resto, a inequívoca demonstração de empenho e responsabilidade no trato das finanças públicas revela-se condição indispensável à criação de margens estruturais à diminuição dos juros e encaixe da iniciativa privada na ocupação de frentes de gasto público exaurido.
Nessas circunstâncias, urge rever a indexação automática da fração dos benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social ao salário mínimo, em linha com o rápido envelhecimento da tábua populacional, e os pisos constitucionais aos recursos reservados à saúde e educação, que correspondem a 15% e 18%, da receita corrente líquida, respectivamente.
Ao usualmente encalharem em verdadeiros pântanos da máquina pública e, em não poucas vezes, serem aprisionados nas teias de desmandos, malversação e corrupção na gestão orçamentária, a rigidez das destinações obrigatórias de verbas à saúde e educação prejudica a realização de remanejamentos em favor de outras áreas relevantes.
Há também, parafraseando o saudoso Mané Garrincha, em apoteótico diálogo com o técnico da seleção brasileira de futebol, campeã do Copa do Mundo de 1958, Vicente Feola, que “combinar com os russos” que, neste caso, estariam confortavelmente instalados no poder legislativo.
Trata-se de, paradoxalmente, de adversários a serem vencidos ou ao menos convencidos, por conta da denodada dedicação à tarefa de sequestro do orçamento público visando ao nobre atendimento dos interesses paroquiais, ajustados ao mundo digital com o advento das “emendas pix” – haveres repassados a municípios, com dispensa de projetos ou qualquer tipo de apreciação técnica -, e/ou das demandas corporativas levantadas por castas de servidores ou por empresários famintos por subsídios e isenções fiscais.
É o caso da aprovação pela Câmara dos deputados de Projeto de Lei que reformula e prorroga o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), criado em maio de 2021 para abrandar os impactos da crise sanitária sobre as empresas do setor, o que deve provocar sangria de cerca de R$ 15 bilhões dos cofres do governo até 2026, segundo projeções da Receita Federal.
Os russos precisam ser esclarecidos e persuadidos igualmente acerca da absoluta incompatibilidade entre os grandiosos propósitos de tratamento, depuração e melhoria da saúde dos vários elementos do organismo público e a tramitação de pautas-bombas, como a perenização do retrógrado quinquênio concedido aos privilegiados de sempre.
Afinal, a definição de diretrizes, formulação de estratégias, estruturação de políticas e execução de projetos, por parte dos representantes populares, em regimes democráticos, devem ser rigorosamente submetidas às possibilidades de encaixe na peça orçamentária.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.
Em pequeno texto por sua abrangência, uma aula de economia política contemporânea.