Lula3 e a Oposição
Gilmar Mendes Lourenço.
A regra de convivência política nas democracias modernas, escoradas em convergências e divergências implícitas no fenômeno de permanente pluralidade de ideias e cotejo de posições, aprofundado pelas chances de alternância de poder, expressa a natureza de rara obtenção de maioria parlamentar pela corrente vencedora das eleições.
Especificamente o não domínio instantâneo e automático da casa de leis pelo executivo determina a necessidade de realização de esforços para estabelecimento de diálogos e negociações maduras visando à montagem de uma coalização de forças destinada à viabilização da governabilidade.
Os casos mais recentes, observados nos pleitos majoritários acontecidos nas principais nações europeias, especificamente França, Itália, Espanha e Portugal, servem como referência do apreciável conjunto de complexidades que envolve as transições democráticas em clima de acirramento das tensões notadamente entre as correntes extremas do espectro ideológico.
Decerto que o Brasil não deveria representar exceção aos intricados movimentos esboçados pela lógica democrática planetária, nas duas primeiras décadas deste século, especialmente depois do desmantelamento da ditadura militar – que fez desabar a débil democracia nacional, surgida com a Constituinte de 1946 – por via pacífica.
O estado de arbítrio e repressão foi desmanchado por progressivas manifestações de repúdio, por meio de ações cívicas nas indevassáveis cabines eleitorais, e coroado pelo Movimento “Diretas Já”, em 1983 e 1984, que engendrou a travessia conservadora, verificada em 1985.
Tratou-se da reprodução da aliança entre a vertente moderada das oposições e a parcela descontente com a autocracia, que facilitou o êxito da candidatura presidencial indireta, proclamada por colégio eleitoral, em 1985, do governador e senador por Minas Gerais, Tancredo Neves, tendo como vice José Sarney, ex-presidente do partido de sustentação legislativa do golpismo, emoldurando o surgimento da Nova República.
Com o repentino adoecimento e falecimento de Tancredo, Sarney foi empossado com a missão de coordenar a equipe designada exclusivamente pela Tancredo e o Doutor Ulysses Guimarães, chefe do PMDB e catalizador das vontades de restauração do modus operandi econômico e social participativo, represado durante os tempos ditatoriais.
Desde então, a nação padeceu com os incontáveis embaraços encontrados pela administração liderada pelo PMDB, preponderantemente no front econômico, com antagonismo mais ideológico do que programático emanado do arco de convergências capitaneado por PT e PDT, marcada pelo malogro de todas as tentativas ortodoxas, heterodoxas e mistas de combate à inflação, que, no final dos anos 1980, transformou-se em hiperinflação indexada à ciranda financeira e responsável pela falência do estado desenvolvimentista.
Tais anomalias podem ser explicadas pelo absoluto engolimento do governo Sarney, enfraquecido na origem, pelo pedaço desenvolvimentista da agremiação partidária assentada no poder, tendo como cacique o Doutor Ulysses, responsável pela meticulosa articulação política indispensável à preparação, discussão e aprovação da Constituição de 1988, notabilizada pela forte conexão entre o apelo nacionalista e o lançamento dos princípios relacionados à inclusão e proteção social, implantada na década de 1990.
A Carta Magna também ensejou a operação do sistema conhecido como presidencialismo de coalizão, praticado após a derrubada do chefe de estado, Fernando Collor, em 1992, nos mandatos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso 1 e 2, Lula 1 e 2 e Dilma 1, espelhando os confrontos entre programas e cotidiano do PSDB e PT, sem maiores incursões extremadas.
Entre 1992 e 2002, com a retórica da social-democracia europeia, materializada na deflagração da política de valorização do salário e a instituição da retaguarda de amparo social, o PSDB disfarçava o emprego da cartilha neoliberal na economia, baseada na cartilha produzida pelo Conselho de Washington, em 1989, que preconizava a abertura comercial, desregulamentação e desestatização dos mercados emergentes.
Já, entre 2003 e 2011, a ampla coligação de centro-esquerda, encampada pelo PT, paradoxalmente perseguiu a intensificação dos antes criticados e combatidos expedientes erguidos e tocados gestões predecessoras, reunidos na chamada herança maldita.
Foram eles o arcabouço macroeconômico, as transformações institucionais e as políticas de inclusão social, que, ladeados pelo boom das commodities – proporcionado pelo substancial e ininterrupto acréscimo dos níveis de atividade na China – incitaram a elevação do patamar de crescimento econômico do país.
Com isso, o Brasil conseguiu aproveitar a conjugação virtuosa entre enormes e crescentes superávits nas contas públicas e externas, que foram capazes de beneficiar a cobertura financeira dos projetos sociais e o acréscimo dos níveis de consumo doméstico, ainda que em detrimento da alavancagem dos investimentos públicos e privados.
Os inconvenientes políticos da marcha pós 1995 repousaram na transformação do esquema de construção de maioria parlamentar através da coalização por cooptação, em distintos estágios, com destaque para os episódios de aprovação da emenda da reeleição, em 1997, o mensalão, em 2004-2005, e o petrolão, no decênio de 2010, incorporando relações promiscuas entre executivo, parlamento e banda podre da classe empresarial.
Acrescente-se o gradativo alargamento do espaço de poder sob os auspícios do Congresso Nacional, notadamente na formulação e execução da peça orçamentária, com a inserção de emendas impositivas, e gerenciamento do fundão eleitoral, lançado em 2017, o que favorece sobremaneira o suprimento de demandas de interesse clientelista dos grandes partidos, vinculadas aos currais eleitorais dos parlamentares, e enfraquece o papel e a eficácia das iniciativas de políticas públicas.
Tal anomalia atingiu o apogeu no intervalo de tempo compreendido entre 2019 e 2022, completamente acéfalo na preparação e implementação de estratégias consistentes de estado, em quase todas as áreas, quando a nobre tarefa de arregimentação, seleção e arranjo dos requerimentos sociais no instrumento financeiro oficial foi rigorosamente terceirizada ao legislativo.
O pior é que, em face a flagrante desidratação das entidades políticas formais, hospedadas tanto na situação quanto nas oposições, úteis somente para a captura do fundo eleitoral e partidário, e da tendência avassaladora de formação de bancadas e blocos, em sua maioria dedicados à ferrenha defesa de pautas temáticas, os procedimentos e rotinas subjacentes à montagem do orçamento foram repassadas pelos inquilinos do Palácio do Planalto ao Centrão, aglomerado de parlamentares adepto da tese de que “governo melhor do que esse só o próximo”.
Nas circunstâncias de Lula 3, o embate entre os grupos apoiadores e contrários aos entes hospedados no poder se dá em clima de transbordamento calcificado do extremismo esquerda e direita, que sinalizou vitalidade durante os “brados das ruas” de 2013, foi contrariado ou estimulado pela caminhada da lava jato, assumiu contornos definitivos com o evento eleitoral de 2018 e demonstrou colossal resistência com a intentona golpista de oito de janeiro de 2023.
Esse quadro avariado apresenta um complicador adicional representado pelo caráter pendular do centro democrático, constituído por segmentos da direita não radical e da esquerda simpática ao funcionamento estatal em moldes capitalistas com responsabilidade fiscal, e controlado por personalidades egocêntricas, resistentes à edificação de uma plataforma política convergente e, sobretudo, equidistante dos extremos, factível de aceitação e absorção pela expressiva fração da população fatigada pelos efeitos nefastos do “nós contra eles”.
Não bastassem as barreiras impostas pela radicalização solidificada, do lado de dentro e de fora da fortaleza governamental, e o parlamentarismo branco, simbolizado pela multiplicação da potência legislativa no manejo pouco republicano do orçamento público, Lula 3 vem se encarregando da composição e permanente alimentação da oposição intramuros, classificada nos meios políticos como “fogo amigo”.
Do ponto de vista conceitual, trata-se da disputa entre os arautos da retomada do crescimento antecedida pelo ajuste fiscal, focado na interrupção da escalada da dívida, suportados pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o time empenhado na promoção de um upgrade econômico, ancorada na gastança pública sem limites ou numa espécie de resgate do “bom mocismo” estatal, abastecido pelo próprio presidente, pela comandante do PT, Gleisi, pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, e pelo Ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira.
A esse respeito, causa no mínimo estranheza a ferrenha resistência, daqueles que apregoam o alargamento da densidade da participação estatal no cotidiano econômico, na introdução de mecanismos que possibilitem a adoção de revisões permanentes da repartição funcional e eficiência alocativa dos gastos públicos não obrigatórios.
Pela órbita política, parece razoável supor um autêntico escancaramento das brigas e disputas domésticas, não apartadas pelo mandatário, pela conquista de trunfos visando a ocupação de lugar de relevo na sucessão da ocupação da cadeira de chefe de estado, em 2026 ou 2030, como se a prioridade não devesse ser a atenção a querela democracia versus autoritarismo.
De qualquer forma, a recente fritura do presidente da Petrobrás, Jean Paul Prates, e a fervura e arruaça dos mercados de ativos financeiros dela decorrente, constitui evidência patética da inclinação de Lula 3 em inventar encorpada auto oposição.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.