Não existe pecado do lado de baixo do Equador
Gilmar Mendes Lourenço.
A frase “não existe pecado ao sul do Equador”, título da canção que integrou a peça de teatro “Calabar”, importada da obra de Sérgio Buarque de Holanda, “caiu como uma luva” na explicação dos crescentes movimentos de reversão da onda anticorrupção, instaurada no país nos anos 2010, tendo como fio condutor as investigações, processos, julgamentos, condenações e prisões, predominantemente no âmbito da denominada operação lava jato.
Malgrado a constatação de abomináveis desvios de comportamento de alguns procuradores e juízes, expressos em diálogos hackeados, evidenciando ruptura do processo legal, os inquéritos apurados pela Polícia Federal (PF) serviram para intensificar o esforço de desnudamento da malversação de recursos públicos e, principalmente, identificar e desmanchar uma verdadeira teia de incursões incestuosas contra o erário.
Tratou-se da descoberta de iniciativas criminosas, sistematizadas por peças estratégicas no interior do executivo e legislativo, em conluio com grandes organizações privadas, notadamente aquelas dedicadas à realização e entrega (ou não) de obras ao estado, que miravam a retirada e apropriação de haveres dos cofres federais e do caixa das companhias estatais.
Os objetivos traçados e executados, repousavam, de um lado, na garantia de enriquecimento da legião de aliados do sistema, e, de outro, no financiamento de campanhas eleitorais da aliança hegemônica, na perspectiva de inviabilizar a salutar alternância de poder, marca registrada de ambientes democráticos.
O empenho de decifragem pormenorizada da gestão predatória das corporações estatais e das manobras inescrupulosas contra a peça orçamentária, além do apontamento de encorpadas listas de corruptores e corrompidos chegou a compor o elenco de ativos nacionais pós-redemocratização, completado pela Constituição de 1988, o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
No entanto, a percepção dos graves deslizes na nobre (ao menos deveria ser) arte, por parcela dos integrantes da força tarefa e magistratura, em paralelo às expressivas alterações na direção e velocidade dos ventos da política e à evolução e enfrentamento oficial negacionista, ou desastrado, na melhor das premissas, da pandemia de Covid-19, serviu para exacerbar o ambiente de polarização, ou melhor radicalização, nascido dos episódios de rua, em 2013, e amadurecido durante a peleja eleitoral, em 2018.
Mais do que isso, a instalação de um autêntico cenário de batalha no front político, comandado e/ou diretamente afetado pelo funcionamento de milicias digitais, facilitou a precipitação de posturas de extrema direita, centradas na quase vulgarização dos ataques aos pilares do estado democrático de direito, especificamente o poder judiciário.
Sintomaticamente, o escape do corner e a preferência pelo emprego da posição ofensiva, levou o judiciário a exercer o que os meios especializados qualificam de “ativismo político” e protagonizar atos de mutação de interpretações e, principalmente, deliberações tomadas no passado.
A gênese da mudança de eixo de compreensão foi a determinação de soltura do o ex-presidente Lula – preso na sede da PF, em Curitiba, a partir de sete de abril de 2018 -, em oito de novembro de 2019, por ordem do juiz Danilo Pereira Júnior, da 12ª Vara Federal de Curitiba, depois da modificação do posicionamento do STF quanto à prisão em segunda instância.
Em continuidade, em 14 de abril de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) chancelou a decisão do ministro Luiz Edson Fachin, de oito de março do mesmo ano, que atribuiu a incompetência da instância de Curitiba, no processo e julgamento do ex-incumbente, nos casos do tríplex do Guarujá, do sítio de Atibaia, e em outras duas ações contra o Instituto Lula.
Na prática, aquela disposição representou a extinção das condenações contra Lula e o restabelecimento de seus direitos políticos e, consequentemente, absoluta condição de elegibilidade para qualquer cargo público que almejasse e tentasse disputar.
Desde então, a preponderância do judiciário nos rumos institucionais da nação tem sido exaustivamente apreciada e debatida em diferentes espaços de cotejo de ideias e confronto de opiniões, com ênfase para a defesa intransigente dos protocolos sanitários e arbitragem na atribuição de responsabilidades dos entes federados, no decorrer do surto de Sars-CoV-2 e da caminhada de imunização da população.
Igualmente destacável foi o denodado sacrifício de proteção da democracia, após a intentona golpista de oito de janeiro de 2023, capitaneada por atores sociais inconformados com os resultados do segundo turno do pleito de 2022, seduzidos e/ou incitados por entes saudosos dos tempos de soluções de embates políticos por vias autoritárias.
Em contraste, não é difícil perceber o desconforto generalizado ocasionado pela observação da colaboração decisiva do judiciário na solidificação do trabalho de demolição do arsenal contra a corrupção, particularmente com atitudes no mínimo bizarras, como as proclamações individuais ou “monocráticas”.
Isso torna-se mais gritante por contar com apoio convicto, ainda que velado ou disfarçado, de alguns pares do plenário, ou até omissão e apatia de outros, demonstrando pouco interesse na provocação ou convocação da discussão no colegiado.
Dentre as resoluções mais polêmicas e agressoras da racionalidade coletiva sobressai a zeragem de sentenças e punições condenatórias de figurões da elite empresarial, criminosos confessos, diga-se passagem, que aproveitaram as chances de celebração de acordos de leniência e cooperação premiada, para devolverem vultosas cifras de haveres afanados e conquistarem a liberdade.
Em circunstâncias tão inusitadas, os culpados obtiveram a anulação plena de atos processuais e documentação de provas incriminadoras, o que sugere, ao imaginário da sociedade, considerar a hipótese de ocorrência de um mero “sonho pretérito”, por ocasião da “utópica” percepção de articulações bilionárias, baseadas na drenagem de somas financeiras do estado na direção dos cofres e bolsos” do complô de empreiteiras com atores políticos.
Essa rotina de frequentes modificações de modalidade de entendimento e aplicação da lei pelas cortes superiores pode levar à corrosão dos pilares da legitimidade institucional e suspeita de consumação de uma potente concertação visando à derrubada do sistema anticorrupção, algo que fora profetizado pelo então ministro do Planejamento de Michel Temer, Romero Jucá, em maio de 2016.
Na época, em gravações obtidas pelo Jornal Folha de S. Paulo, Jucá insinuava ao ex-presidente da Transpetro, subsidiária da Petrobras, Sérgio Machado, a necessidade de, em clima de novo governo, a formação de um “pacto” para “estancar a sangria” gerada pela lava jato.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.
Parabéns Prof. Gilmar. Além de ser uma análise precisa da situação e dos riscos a que nós brasileiros estamos expostos, revela tua independência desta polarização que inviabiliza a construção de um plano para edificar um Brasil-Nação.