Uso político e manejo partidário da Petrobras

Gilmar Mendes Lourenço.
Criada em outubro de 1953, na segunda passagem de Getúlio Vargas pela presidência da república do Brasil, alçado por canais democráticos, no embalo do apogeu da campanha nacionalista “o petróleo é nosso”, a Petrobrás constitui o símbolo da derradeira etapa de implantação da industrialização pesada no país, sob o manto protetor dos incentivos e subsídios impregnados no modelo de substituição de importações.
Lançado no princípio dos anos 1930, sob a ditadura de Vargas, instaurada após a revolução e convalidada pelo Estado Novo, em 1937, o paradigma substitutivo mirava o fortalecimento do mercado interno, começando pela instalação das unidades industriais leves, conhecidas como de bens salário (não duráveis e semiduráveis), avançando para a fabricação de insumos básicos e matérias primas, ou os bens intermediários, e chegando à produção de bens de consumo duráveis e de capital, mais exigente em sofisticação tecnológica.
Amparado na combinação virtuosa entre poupança pública e externa (endividamento e investimentos diretos), ainda que com repercussões inflacionárias nada desprezíveis, a incursão industrializante assumiu maior envergadura no transcorrer da administração de Juscelino Kubitschek (1956-1960), ou da democracia “bossa nova” e o famoso Plano de Metas (expresso no slogan “50 anos em cinco”), marcada pela implantação dos segmentos duráveis de consumo, notadamente a indústria automobilística.
Com a crise econômica, política e institucional do começo dos anos 1960, que precipitou o golpe militar de 1964, a industrialização afundou em um estado de superacumulação, do qual só emergiu depois da estabilização macroeconômica, com o desencadeamento de um surto expansivo, a partir de 1967, denominado pela literatura como “milagre econômico”, inicialmente apoiado na utilização da capacidade ociosa acumulada entre 1961 e 1966, de 1970, e na efetivação de novos investimentos, de 1970 em diante.
Em continuidade, a indústria respondeu a novo empurrão da autocracia de plantão, coberto financeiramente pela captação de recursos externos, propiciados pela necessidade de reciclagem dos petrodólares, hospedados nos mercados norte-americano e europeu, depois da eclosão do primeiro choque do petróleo, em 1973, e da recessão subsequente.
Tal cenário de abundância de liquidez e enfraquecimento da demanda e oferta mundial favoreceu, por meio da materialização do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), no mandato do general Ernesto Geisel (1974-1979), o preenchimento das lacunas da matriz industrial brasileira nos ramos de base (principalmente insumos e energia) e de investimento (máquinas e equipamentos), capitaneadas por empresas públicas e privadas nacionais, respectivamente.
Nessas circunstâncias, ao final de 1979, o Brasil completaria a marcha substitutiva, dotado de um parque fabril moderno, diversificado, completo e integrado, em fase com a segunda revolução industrial global, concluída nos primórdios dos anos 1970, estigmatizada pelos segmentos da química, petroquímica e metalmecânica.
Aquele furor industrializante, batizado de “fuga para frente”, pois priorizou o investimento produtivo em ambiente de pronunciada retração mundial, teve como contrapartida a emissão da vultosa fatura, sintetizada na perversa conjugação entre salto da dívida externa, contratada a juros flutuantes – que dispararam com a duplicação dos preços do petróleo, em setembro de 1979, com a derrubada do Xá do Irã, aliado dos Estados Unidos, pela revolução islâmica -, entre 1974 e 1978, falência do estado, multiplicação da ciranda financeira e surgimento da hiperinflação inercial e indexada, na década perdida de 1980.
Ressalte-se que o encaminhamento do equacionamento daquele passivo internacional e seus desdobramentos internos, particularmente a estagflação (recessão e inflação), tornou-se factível apenas oito anos depois da redemocratização do país, acontecida em 1985 – com a vitória da aliança conservadora, costurada por Tancredo Neves e Ulysses Guimarães com a ala progressista da caserna -, com o lançamento das bases do Plano Real, sob a gestão de Itamar Franco e pilotagem da equipe de Fernando Henrique Cardoso (FHC), no ministério da Fazenda.
O que importa reter aqui é que, por conta dos enormes e abrangentes efeitos irradiadores dinâmicos, para frente e para trás, em incontáveis cadeias produtivas, as crescentes e maciças inversões da estatal conformaram a alavanca principal do processo de industrialização nacional, preponderantemente nas áreas de pesquisa e refino.
Decerto que foram igualmente relevantes os ajustes operados visando ao ajuste da companhia ao ambiente de globalização, imposto pelo Consenso de Washington aos mercados emergentes, no final dos anos 1980, caracterizado pelo receituário de adoção dos expedientes de abertura comercial e privatizações, pelos mercados emergentes.
Por essa perspectiva, a derrubada do monopólio de petróleo e gás, decretada em 1997, na metade do primeiro tempo de FHC, ensejou novo empuxe tanto das atividades de fabricação doméstica quanto das compras e vendas externas de petróleo e derivados que, inclusive, permitiram o alcance da sonhada “autossuficiência técnica”.
Na mesma linha, a descoberta e exploração das cobiçadas áreas do pré-sal, reforçadas pelo prosseguimento e intensificação da responsabilidade fiscal, herdada por Lula 1 do antecessor, propiciaram a concessão do grau de investimento ao Brasil, pelas três principais agências de classificação de risco de dívidas soberanas no mundo (Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s).
No entanto, a ferrenha perseguição de posturas estratégicas e, consequentemente, de perene aplicação de princípios de eficiência microeconômica, nos campos gerencial, financeiro e operacional, não livraram a maior e mais valiosa organização empresarial da nação de investidas emanadas direta e indiretamente dos efervescentes interesses políticos.
Tanto é assim que, em não raros momentos da trajetória ditatorial e democrática do país, as posições e as regras da lógica empresarial foram subjugadas por orientações macroeconômicas de curto prazo, principalmente o combate à escalada inflacionária, que, via de regra, sacrificavam os lucros corporativos e, por extensão, a programação de investimentos.
Essa distorção foi mais evidente na época do arbítrio, no período Geisel, e começo do turno do General Figueiredo – afetada pelas bruscas subidas das cotações do petróleo, em 1973, e, em 1979, antes mencionadas – e na primeira temporada de Dilma Rousseff, entre 2011 e 2014, quando os preços de combustíveis, as tarifas de energia e as taxas de câmbio e de juros, foram rigorosamente controlados para sufocar focos de aceleração dos níveis de preços.
Só que enquanto sob as presidências militares até a metade da Nova República – afora o pesadelo Collor entre março de 1990 e setembro de 1992 -, instaurada com a redemocratização, em 1985, e sancionada pela Constituinte, em 1988, a gestão da Petrobras obedeceu a critérios eminentemente técnicos, absolutamente imprescindíveis à amenização do peso das influências políticas, na tocada de Lula 1, 2 e Dilma1¼, a funcionalidade gerencial e operacional da empresa foi vitimada por fragoroso esquema de aparelhamento partidário, movido à repartição de cargos e demarcação de espaços de influência com intenções espúrias.
Tratou-se, na prática, da abertura das portas para a viabilização de uma articulação promíscua entre atores políticos e privados que oportunizou inúmeros casos de desvio de recursos correntes para suprimento das demandas manifestadas por um cartel de empreiteiras e membros dos poderes executivo e legislativo.
As iniciativas incestuosas representaram um verdadeiro orçamento paralelo que produziu prejuízos de R$ 18 bilhões à Petrobras, entre 2004 e 2012, conforme relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado em 2020 -, destinado à engorda do caixa 2 das campanhas eleitorais, amplamente investigada e decifrada no âmbito da falecida operação lava jato.
Os exemplos mais emblemáticos das manobras políticas foram os projetos fracassados da Refinaria Abreu Lima (orçada em US$ 2,3 bilhões e absorvedora de US$ 22 bilhões) e o Complexo Petroquímico do Rio (Comperj), rebatizado de Polo Gaslub – estimado em US$ 6,1 bilhões e consumidor de US$ 13,5 bilhões, até 2015, quando da paralisação das obras – mortos e não sepultados, com chances de ressurreição, que abalaram os alicerces do BNDES, além da aquisição superfaturada em quatro vezes da sucateada Pasadena, nos EUA.
O desmanche da administração guiada conforme desejos partidários e a devolução da prevalência de atitudes preponderantemente técnicas na condução dos passos e procedimentos da companhia constituíram os pontos chave da curta participação de Michel Temer, na chefia de governo, entre maio de 2016 e dezembro de 2018, que foram destruídos pelo “time das trevas” que entrou em campo em janeiro de 2019.
O interregno compreendido entre 2019 e 2022 se notabilizou pelo completo abandono do profissionalismo na direção dos destinos da Petrobrás e o emprego da improvisação, focada no enchimento dos cofres públicos – já suficiente atendidos com os o calote dos precatórios -, com a designação de transferência de dividendos recordes, e na submissão aos cânones da reeleição, atestada pela manipulação da precificação, notadamente mediante polpudas cifras de renúncias fiscais transitórias.
A fritura e demissão do presidente da estatal, o ex-senador petista, Jean Paul Prates, em maio de 2024, penalizado por imprimir velocidade e intensidade incompatíveis com as recomendações do chefe de estado, preparada pelos ministros chefe da casa civil, Rui Costa (PT), e das minas e energia, Alexandre Silveira (PSD), confirma as fortes suspeitas de retorno dos desmandos.
Mais precisamente, as apostas englobam o regresso do intervencionismo na política de preços, com o abandono da política de paridade internacional (PPI), empregada por petroleiras mundo afora; o controle fino da distribuição de dividendos extraordinários (fração incremental ao piso estabelecido em estatuto); o domínio pleno do acionista controlador sobre o Conselho de Administração; e o reexame da política de investimentos, privilegiando refinarias e estaleiros para abastecimento das encomendas de navios.
Não seria ocioso recordar o malogro da Sete Brasil, fundada em 2010, em sociedade com fundos de pensão das estatais, para suprimento de vinte e oito navios-sonda para a exploração do pré-sal, que conseguiu produzir somente quatro unidades, contabilizando perda de US$ 25 bilhões, segundo o TCU.
Se a futura presidente, ex-funcionária de carreira da estatal, especialista em engenharia de petróleo e ex-diretora da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), na gerência de Dilma Rousseff, Magda Chambriard, empenhar-se no papel de preposta, no fiel alinhamento às vontades e cumprimento das ordens do chefe, o palanque eleitoral estará montado.
As firmes intenções declaradas pelo elenco do andar superior do poder executivo, disfarçadas de inclinações desenvolvimentistas, insistem em revisitar as manchas e prejuízos do passado, ainda que em detrimento da governança, reputação e performance econômico-financeira de uma empresa aberta de capital misto e da preservação ambiental.
Apenas a título de ilustração quantitativa, enquanto entre 1954 e 1999, a Petrobrás dispendeu US$ 24,7 bilhões para alargar a capacidade de refino para 2 milhões de barris/dia, no lapso compreendido entre 2003 e 2015 foram gastos US$ 100 bilhões para ampliação de 400 mil barris/dia.
Por tudo isso, parece razoável supor que a Petrobrás é demasiado vital para ser transformada em um gabinete ou braço do governo, no Rio de Janeiro, como verificado entre 2019 e 2022, com a troca de quatro presidentes, ou propriedade de uma agremiação partidária, por mais importante que esta tenha sido no processo de redemocratização brasileiro.
Lula 3 não deve ignorar que o rápido afastamento funcional ou mesmo o divórcio de parte relevante da aliança de centro-esquerda, ou mesmo da direita não raivosa, que indiscutivelmente fizeram a diferença no segundo turno do pleito presidencial, em 2022, e a recusa em construir sólidas pontes para fora do perímetro da esquerda, podem comprometer irremediavelmente o sonho da reeleição, em 2026. A menos que a ciência política tenha conseguido desenvolver, às escondidas, vacinas contra variantes do vírus do extremismo de direita, convenientemente embaladas em retóricas e mensagens de competência e disfarçadas em frequentes condutas de bom mocismo.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.