Milei ¼: Austeridade e pobreza social

Milei ¼: Austeridade e pobreza social
Gilmar Mendes Lourenço.

Por ocasião do primeiro aniversário de governo, em pronunciamento realizado em cadeia nacional de rádio e televisão, em 10 de dezembro de 2024, a perturbada personalidade do presidente argentino, Javier Milei, auto rotulado ultraliberal ou “anarcocapitalista”, também conhecido como El Loco, exaltou a conquista de ativos compostos por ganhos macroeconômicos, liderada pelo ministro Luis Caputo, e minimizou e/ou negligenciou os passivos, sintetizados em flagrante agudização da vulnerabilidade social.

Uma vez empossado no cargo, mesmo com minoria no legislativo, que o fez desistir temporariamente da investida de dolarização da economia e extinção do Banco Central (BC), o mandatário insistiu na execução do super choque ortodoxo, apoiado em rigoroso ajuste fiscal, legitimado pela aprovação da lei Omnibus.

Na prática, Milei enveredou pelo caminho da supressão de metade das pastas ministeriais, desligamento de 31 mil servidores públicos, retirada dos subsídios implícitos nas tarifas de água, luz, transporte público e outros serviços essenciais fornecidos à população, o que resultou, de início, em pronunciada escalada nos preços.

Na mesma direção, porém como estratégia de defesa contra a inflação, o mandatário determinou a suspensão de mais de 90% das obras públicas federais e a interrupção das transferências de recursos às províncias (sobretudo para salários e merenda escolar) e universidades públicas, o que provocou drástica retração dos níveis de atividade, e, consequentemente, crescentes ondas de demissões.

No front cambial, o chefe de estado escolheu a promoção de uma maxidesvalorização do peso argentino superior a 100%, seguida por correções mensais de 2%, endereçadas à manutenção da capacidade competitiva das vendas externas, à inversão da saída líquida de divisas em moeda forte e à multiplicação dos ganhos do mercado financeiro.

O contundente grupo de medidas ensejou apreciável reversão no desempenho das finanças públicas, que alcançaram os melhores números desde 2008, evidenciados pela passagem de um déficit primário de 2,9% do produto interno bruto (PIB), em 2023, para superávit de 1,5% do PIB, em 2024.

A conta financeira consolidada, conhecida como resultado nominal, também trocou de sinal, com a travessia do desnível de 6,1% do PIB, em 2023, para saldo positivo de 0,5% do PIB, em 2024, de acordo com cálculos disponibilizados pelo governo.

Sintomaticamente, a agência de classificação de risco global Fitch considerou a possibilidade e concretizou a emissão de discreta elevação da nota da dívida soberana de longo prazo da nação, com o deslocamento do conceito CC para CCC, ainda denotando significativo risco de calote.

Já, o Fundo Monetário Internacional (FMI), berço esplendido da comunidade financeira mundial e reduto dos heróis da resistência da orientação macroeconômica convencional, concedeu a benção à postura e iniciativas radicais da gestão argentina e acionou o modo de desbloqueio do programa de socorro financeiro de US$ 44 bilhões, firmado pela administração de Mauricio Macri, em 2016.

O plano de ajuda é destinado primordialmente ao restabelecimento da normalização das relações do país com os credores externos, sobretudo as instituições financeiras privadas, e dos fluxos de pagamentos da dívida.

Em contrapartida, ainda que de maneira velada, foi fixada e aceita a inegociável e inevitável condição de rápida remoção das barreiras à entrada e saída de capitais, dado o reduzido volume estoque de reservas internacionais, ligeiramente superior a US$ 22 bilhões.

Igualmente como desdobramento da abertura da “caixa de maldades”, por meio da adoção dos instrumentos de austeridade fiscal, a inflação ao consumidor acusou diminuição de 25,5%, em dezembro de 2023, para 2,4%, em novembro de 2024, a menor desde julho de 2020, quando marcou 1,6%.

Não obstante, mesmo em decréscimo, os indicadores acumulados no intervalo entre janeiro e novembro e em doze meses situaram-se em 112% e 166% (contra 211,4%, em 2023), respectivamente, ainda enormes, notadamente se se levar em conta o substancial preço econômico e social do trabalho focado na rearrumação orçamentária.

Exceptuando-se os segmentos do agronegócio articulados ao mercado internacional, beneficiados por uma das maiores safras da história, pela nova subida das cotações globais de alimentos e pela desvalorização do peso, as variáveis voltadas à absorção doméstica (consumo, investimento e gasto público) devem provocar queda do PIB de 3,5%, conforme projeções do Banco Mundial (BIRD), influenciada basicamente pela corrosão de 10% da massa de salários e outras remunerações.

Mais do que isso, inferências do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) da Argentina, entidade de reputação historicamente questionável, dado o interesse prioritário no atendimento das vontades da Casa Rosada, revelam acentuada fragilização do quadro social. Tanto que a desocupação da mão de obra saltou de 5,7% da força de trabalho, em 2023, para 7,6%, em 2024.

As pessoas que figuram abaixo da linha de pobreza (que vivem com menos de US$ 6,85 por dia, segundo a regra de paridade de poder de compra do BIRD, aumentaram de 41,7% do total da população (de 31 aglomerados urbanos do país), em 2023, para 52,9%, em 2024, o maior incremento em duas décadas.

Pior, a extrema pobreza (US$ 2,15/dia/PPC) subiu de 31,8% para 42,5%, abarcando a população carente de alimentos imprescindíveis ao suprimento das necessidades diárias de energia e proteína.

No campo da aceitação popular, calculada em mais de 50% pelos institutos de pesquisa, constata-se forte concentração na classe média e elite. Isso porque, Milei amargou constantes protestos de movimentos sociais (professores, estudantes, aposentados, sindicatos, dentre outros), ligados à dimensão das medidas de ajuste e ao negacionismo cultural e às manifestações simpáticas à ditadura militar, que, batizada de Processo de Reorganização Nacional, sufocou as liberdades coletivas e individuais entre 24 de março de 1976 e 10 de dezembro de1983.

Nas incursões internacionais, Milei perseguiu a reaproximação com os Estados Unidos (EUA), que deve se aprofundar com o êxito eleitoral de seu ídolo, o anacrônico Donald Trump), e Israel. Também desligou seu chanceler após votação pró-Cuba, na Organização das Nações Unidas (ONU), e persegue o enfraquecimento do Mercosul e do multilateralismo e a encenação de uma espécie de guerreiro ocidental contra a predominância cultural da esquerda.

Para a viabilização dessa última empreitada, empenha-se na arregimentação de recursos junto à grandes empresas para a Fundação Faro, por ele criada, e o estreitamento da aproximação da Conferência Política da Ação Conservadora (CPAC), entidade mundial de direita radical, com presença predominante da primeira-ministra Italiana, Giorgia Meloni.

Por absurdo, no final de novembro de 2024, Milei mandou o embaixador Gerardo Werthein desistir da participação na cerimônia alusiva aos 40 anos do Acordo de fronteira, celebrado entre Argentina e Chile, que aconteceu no Vaticano. Em 1984, o tratado contou com a mediação do Papa João Paulo II.

Por fim, Milei não protagonizou visitas oficiais bilaterais a qualquer nação sul-americana, algo ausente do cotidiano externo argentino desde a redemocratização nacional, iniciada no final de 1983.

Chamou a atenção, na comunicação de 10 de dezembro, o endurecimento da retórica contra opositores e a afirmação de concepção e implementação da etapa ou nova jornada do boneco da “motosserra profunda”, sinalizando intensificação da luta contra a política tradicional e a ineficiência estatal, a partir de cortes de dispêndios acima dos 30% apurados em 2023, e realização de várias reformas, com destaque para a tributária, que reduzirá 90% dos impostos.

Ademais, acenou com fervorosos desejos de celebração de um acordo de livre comércio com os EUA e retomada do projeto de fechamento da autoridade monetária, o que representaria, em nome da discutível depuração inflacionária, a abdicação da soberania da emissão de moeda e arbitragem dos juros primários.

A contradição essencial dessa aventura de extrema direita repousa na natureza experimental de um arranjo econômico com feições antiquadas, despojado de princípios técnicos e impregnado de percepções meramente ideológicas, miradas no propósito de ferrenha busca pela eficiência.

Diga-se de passagem, que se trata do primeiro item reclamando pelos “mercados” que, ao capturarem e/ou dominarem as forças políticas e os estados nacionais, desprezam os custos sociais e a exacerbação das desigualdades implícitas na preparação das supostas políticas reparadoras.

Não é ocioso recordar que esse tipo de ensaio mofado, subserviente aos ditames do FMI, já foi empregado na Argentina na virada do século 20, sob o comando do presidente Fernando de La Rúa, empossado em dezembro de 1999, que herdou a crise instalada na administração de Carlos Menem.

O desencadeamento de ações intervencionistas de cunho contracionista, como a instituição do Corralito, que amparava a prescrição de limitações aos saques dos depósitos bancários, culminou em instabilidade política e social, caracterizada por incontáveis protestos populares, decretação de estado de emergência e renúncia do incumbente, em 21 de dezembro de 2001.

Por fim, nunca é demais lembrar que o clima de pluralismo democrático comporta a emergência e envolvimento de um multifacetado elenco de atores, incluindo certos vendedores de sonhos que, se não forem notados e, especialmente, controlados, podem se transformar em perigosos entregadores de pesadelos.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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