Mais um PIB bom, mas o “passado é incerto”

Gilmar Mendes Lourenço.
A expansão de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional no primeiro trimestre de 2025, em cotejo com o intervalo entre outubro e dezembro de 2024, desabona, ao menos temporariamente, avaliações e prognósticos de desaceleração econômica apresentados e renovados por não poucos influentes representantes da ala conservadora da observação especializada e endossados por ilustres integrantes da formação de opinião.
De acordo com o IBGE, também houve acréscimo de 2,9%, frente a igual período de 2024, e 3,5%, em quatro trimestres. Enquanto a performance virtuosa foi determinada, pela ótica da produção, por agropecuária (12,2%), com colheita de nova supersafra sem maiores restrições climáticas, e indústrias extrativas (2,1%), pela demanda agregada, os destaques foram formação bruta de capital fixo (3,1%), exportações (2,9%) e consumo das famílias (1,0%), com estabilidade dos gastos do governo (0,1%).
As importações saltaram 5,9%, em função do prosseguimento do ciclo ascendente dos níveis de atividade e da impulsão da taxa de investimento, que passou de 16,7% para 17,8% do PIB, em um ano, ainda bastante inferior aos requerimentos para ampliação robusta do PIB potencial.
Porém, parece prudente advertir que o conjunto de aferidores dos sinais vitais dos níveis de atividade, em sua maioria reunidos na grandeza macroeconômica, não favorece interpretações triunfalistas, particularmente aquelas emanadas das hostes oficiais.
Afirmações precipitadas e equivocadas, brotadas do interior do governo, exaltam apostas da perpetuação de etapas de prosperidade amparadas quase que exclusivamente na complicada sintonia fina entre consumo e endividamento público e privado.
Aliás, a derrocada do governo de Dilma Rousseff, antes do final da metade do segundo mandato, entre janeiro de 2015 e agosto de 2016, que culminou na instauração do processo de impeachment e cassação da chefe de estado, constituiu exemplo patético e prático dos efeitos da denodada ampliação infinitesimal dos dispêndios públicos.
As consequências mais perversas das falhas de diagnóstico e intervenção na realidade econômica, social, política e institucional da nação, na ocasião, foram o retorno da espiral inflacionária anual de dois dígitos, a interrupção e reversão da diminuição da desigualdade social, iniciada em 1994, a partir da desinflação promovida pelo Plano Real e as reformas institucionais, e a eclosão da maior recessão da história da república.
Isso significa apreender e incorporar que o presente estágio de continuidade da recuperação econômica, começada no segundo semestre de 2022, assenta-se em pilares bastante frágeis, traduzidos na atmosfera internacional, centrada na evolução da demanda e preços globais das commodities, e outros três componentes de empuxe da absorção doméstica.
Na fronteira exógena, as cotações das commodities subiram 13,4%, em doze meses terminados em abril de 2025, puxadas por alimentos (16,9%) e metais (14,7%), com retração de -2,7% em energia, segundo o Índice de Commodities Brasil do Banco Central (IC-R).
Já os propulsores endógenos foram o acréscimo recorde da massa de salários (emprego e rendimentos reais), em um mercado de trabalho anomalamente robusto, caracterizado por expressiva participação de relações informais; a multiplicação da despesa pública corrente direcionada à programas de proteção social ou transferências oficiais diretas de renda; e o acesso incremental facilitado e/ou a desobstrução dos canais das modalidades de crédito portadoras de maiores encargos financeiros, absolutamente nocivos aos fluxos orçamentários das famílias.
Conformou-se assim o aparente paradoxo de vitalidade econômica, determinada pela dinâmica de ocupações e renda, e escalada do endividamento e inadimplência dos consumidores, quantificada por sondagens e simulações efetuadas principalmente por entidades empresariais.
A esse respeito, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência, da Confederação Nacional do Comércio (CNC), identificou 77,6% dos consumidores brasileiros endividados (cartão de crédito, cheque especial, cheque pré-datado, crédito em consignação, crédito pessoal, carnês e outros), em abril de 2025, o maior patamar desde agosto de 2024, quando estava em 78%.
O pior é que depois de experimentar recuo em fevereiro e março de 2025, a proporção de famílias com contas atrasadas, em média de 64,6 dias, regressou, em abril, ao nível de janeiro de 2025 (29,1%), e os informantes desprovidos de condições de quitação chegaram a 12,4%.
Mais do que isso, 83,8% dos consumidores do país declararam possuírem dívidas contratadas instantaneamente no cartão de crédito que, na modalidade rotativo, cobrava juros médios de 445% ao ano, em março de 2025, conforme criteriosa coleta do BC.
Em simultâneo, o Indicador de Inadimplência calculado pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) denotou que 42,36% da população adulta brasileira estavam negativados em abril de 2025, o que corresponde ao número recorde de 70,29 milhões de pessoas.
A rigor, o custo dos empréstimos e financiamentos situa-se nas alturas por conta da rápida e contínua elevação da taxa Selic, guia para rolagem dos bônus do governo e operações interbancárias, que transborda para as demais taxas cobradas dos tomadores finais pelos intermediários financeiros.
Nesse particular, mesmo abdicando do envolvimento no debate acadêmico e/ou ideologizado sobre a adequação do emprego da taxa primária como instrumento de indução à convergência da inflação à meta anual de 3%, fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), parece lícito ao menos questionar a eficácia do remédio recomendado diretamente ao tratamento da patologia causada por excesso de demanda.
Na realidade, além da reconhecida influência do ativismo fiscal, defendido pelos arautos da moeda, impregnado nas intervenções populistas com “bondade e afeto”, há a presença de componentes de oferta (custos), exógenos e endógenos, na dinâmica inflacionária recente no Brasil.
Isso permite o lançamento da hipótese de que, por não configurarem plenamente os mais recomendados ao tratamento, o medicamento e a dosagem estariam conseguindo segurar apenas transitoriamente o avanço da moléstia inflacionária, produzindo desdobramentos colaterais no terreno real e monetário do sistema econômico, particularmente a impulsão do endividamento público e privado.
Ressalte-se que a carestia afeta sobremaneira os fluxos orçamentários da população mais obra que canaliza a maior parte dos rendimentos à aquisição de bens essenciais, preponderantemente alimentos, que tem puxado o curso altista, com variação de 7,81%, em doze meses até abril, contra 5,53% do índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA).
O Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central (BC), deflagrou rodadas de majoração da Selic, a partir de setembro de 2024, intensificando o conservadorismo sob Lula 3, herdado da gestão predecessora, em contraste com a postura heterodoxa disseminada na esplanada dos ministérios, afora as pastas fiscalistas da Fazenda e Planejamento, conduzidas por Fernando Haddad e Simone Tebet, respectivamente.
No entanto, a despeito de a taxa básica saltar de 10,5% ao ano, antes da reunião do Copom de setembro de 2024, para 14,75% a.a., em maio de 2025, o IPCA (IPCA-15), base do regime de metas, em doze meses, pulou de 4,35%, em agosto de 2024, para 5,40%, em maio de 2025.
Como se vê, em contraste com as sentenças proferidas pelos financistas, o fenômeno de resistência da espiral de preços à disparada da Selic traduz também pronunciadas disfunções e/ou incertezas de oferta, associadas à problemas climáticos e à guerra comercial patrocinada pelo presidente dos Estados Unidos (EUA), além da política fiscal frouxa praticada pela administração de Lula e o retardo temporal entre deliberações de austeridade monetária e absorção e resposta por parte dos agentes produtivos.
Por tudo isso, o volume de vendas do comércio varejista, apurado pelo IBGE, caiu -1,2%, em março de 2025, em confronto com o mesmo mês de 2024, com encolhimento em ramos que dependem tanto da massa de renda real (combustíveis e lubrificantes, hiper e supermercados), bastante combalida pela desgarrada da inflação, quanto da disponibilidade do preço do crédito (móveis, veículos e motos).
De maneira semelhante, os indicadores de vendas e emprego industrial, elaborados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), revelam resultados menos favoráveis. À exceção do nível de ocupação da mão de obra, que permaneceu estável em março de 2025, as demais variáveis exibiram acentuada retração, precisamente montante agregado de salários reais (-2,8%), rendimento médio real por trabalhador (-2,6%), faturamento real (-2,4%), as três com desconto da inflação, e horas trabalhadas na produção (-1,6%).
Já o grau de utilização da capacidade instalada da indústria apresentou discreta diminuição, de 77,5%, em fevereiro de 2025, e 78,8%, em março de 2024, para 78,3%, em março deste ano, o que pode sugerir o surgimento de uma postura mais cautelosa das empresas quanto às decisões de produção, em face das expectativas de multiplicação dos riscos políticos e econômicos globais, com a imprevisibilidade ambulante de Donald Trump, e domésticos.
Por uma vertente estrutural, compilações da CNI mostram que a produtividade da mão de obra industrial encolheu -9%, entre 2019 e 2024, algo preocupante ante os insuficientes esforços de capacitação, por empresas e governo, em paralelo à proximidade do fechamento da janela demográfica.
Não por acaso, no front das extrapolações, o índice de confiança do empresário industrial (ICEI), medido pela CNI, e que pode oscilar entre zero e cem pontos, tendo cinquenta pontos como linha divisória entre otimismo e pessimismo, exprime insuficiência de ânimo no ambiente corporativo desde janeiro de 2025, marcando 48,9 pontos em maio.
Enquanto isso, a intenção de consumo das famílias (ICF), mensurada pela CNC, segue firme em sentido descendente, assinalando 101,6 pontos, em abril, a menor marca desde o princípio de 2024, sendo que o indicador possui faixa entre zero e duzentos pontos.
Em igual direção, a CNC constatou que o índice de confiança do empresário do comércio (ICEC) permanece na trajetória cadente iniciada em dezembro de 2024, atingindo 101,7 pontos em março e abril de 2025, sendo que o parâmetro varia entre zero e duzentos pontos.
Em circunstâncias de prospecção de longo percurso quase no “fio da navalha” afigura-se prudente a combinação entre a emissão de consistentes mensagens de inarredáveis compromissos com a responsabilidade fiscal e preparação e madura discussão de um programa de desenvolvimento, focado na preservação da inclusão social e alavancagem do investimento.
Como sempre, os empecilhos e atrapalho à uma conduta tão ambiciosa repousam nos interesses eleitoreiros de curto prazo, protocolados, encaminhados, aprovados e homologados por peças-chave do semipresidencialismo ou parlamentarismo de extorsão, empenhadas no sequestro dos haveres públicos em benefício dos desejos da minoria.
Esse tipo de arranjo e manejo notabiliza-se pela operação à margem das estratégias de estado, normalmente formuladas em contrapartida a plataformas abrangentes acordadas em campanha à caça de sufrágios, sedenta pela emissão de dívida pública destinada a cobertura financeira dos redutos, e avessa ao alargamento da pluralidade e obstinada pela minimização da democracia no pedestal das conveniências políticas, abarcando a não aceitação dos resultados oriundos das urnas.
O mais grave é a ausência de qualquer tipo de escrúpulo nas atitudes dos agentes políticos, avessos ao diálogo democrático e herdeiros da obstinação pela restauração do autoritarismo, o que serve para alongar o distanciamento da representação popular.
A barbaridade mais recente foi a cena de verdadeira “violência verbal” de gênero, contra uma ministra de estado preparada, distinta e ferrenha adversária dos proprietários das boiadas do anacronismo da degradação ambiental, disfarçado por discursos modernizantes, que não passam de “conserva mole para boi dormir”, proferidos por perigosos analfabetos funcionais.
Uma das frases emblemáticas despejada pelo ex-ministro da Fazenda do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Pedro Malan – usada para explicação e qualificação das incontáveis barreiras enfrentadas no exercício de previsões macroeconômicas – “no Brasil, até o passado é incerto”, contribui no sacrifício de entendimento de um país sequestrado por fracassos históricos remotos e recentes.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.