O quê o projeto de elevação da alíquota do IOF esconde?

Gilmar Mendes Lourenço.
As frequentes trapalhadas apresentadas pelo governo Lula 3½ no terreno econômico, especificamente no convencimento e sinalização de perseguição do equilíbrio das contas públicas, sintetizado no interesse de cumprimento da regra fiscal, com a zeragem do déficit primário, não constituem apenas acidentes de formulação e gerência da execução da peça orçamentária, fortemente afetada pela contínua ascensão dos gastos obrigatórios, com ênfase para a previdência.
O embaraço mais recente residiu na elevação da alíquota do imposto sobre operações financeiras (IOF), gravame regulatório de qualidade discutível, em linha com o reconhecimento, quase que explícito, acerca da incapacidade operacional e, sobretudo, política, de promoção de uma estratégia consistente de redução da despesa pública.
Fazendo companhia ao anúncio do IOF, surgiu o congelamento e contingenciamento de gastos, estimado em R$ 31 bilhões e, o que é pior, a primeira revisão orçamentária de 2025, com pulo na projeção de rombo primário de R$ 29,5 bilhões para R$ 77 bilhões, prenunciando endividamento incremental de quase R$ 50 bilhões.
De pronto, mesmo com a castração ou revogação parcial, definida pelo executivo no dia seguinte, em função da larga repercussão negativa, o decreto do IOF foi rechaçado pelas lideranças parlamentares, em oportuna demonstração de rigoroso cuidado com o restabelecimento da saúde das finanças públicas.
Isso só depois de descontada a influência das emendas impositivas, do adensamento físico da Casa, com a criação de novas vagas, em suposta adequação às informações censitárias regionais, e da ferrenha disputa por verbas nos pedaços dos ministérios mais valorizados e cobiçados. Afinal de contas, ninguém é de ferro.
A rigor, a natureza absurda de mais uma majoração do já insuportável fardo de impostos, taxas e contribuições, pagos direta e indiretamente por consumidores e empresas do país, com efeitos nefastos sobre a produção, ocupação, inflação e juros, consubstancia apenas a ponta do iceberg.
Há três aspectos que carecem de exame mais aprofundado para um melhor entendimento, ainda que preliminar, dos componentes de arraste ao pântano, ou mesmo deterioração, da política macroeconômica, não obstante a resistência de indicadores positivos de renda e emprego, só que de padrão e qualidade no mínimo precários.
Em uma primeira abordagem, por uma apreensão da lógica de funcionamento do poder executivo, emerge o duelo de titãs intramuros, protagonizado, em um corner, pela ala fiscalista, preenchida pela atuação dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e Planejamento, Simone Tebet, ocupada predominantemente com o lançamento de condições para viabilização do ajuste fiscal.
No lado oposto, perfila-se a corrente desenvolvimentista, treinada pelos titulares das pastas da Casa Civil, Rui Costa, e das Minas e Energia, Alexandre Silveira, atentos à corrosão da popularidade do chefe de estado e exacerbação das inseguranças quanto ao projeto de reeleição, e adeptos da doutrina do “gasto é vida”.
Aquilo foi executado desde o final de Lula 1 (2003-2006), a partir da ascensão de Dilma Rousseff, à Casa Civil, e demissão de Antonio Palocci Filho, da Fazenda, em março de 2006, e, em consequência a fritura da proposta de déficit nominal zero, levantada pelo ex-ministro Delfim Neto, conselheiro informal do presidente.
Nesse cenário de medição de forças, a responsável por uma suposta mediação, a ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais e ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, assume papel secundário, na medida em que pende ou figura na vitrine dos gastadores, por “pensamentos, palavras, atos e omissões” recentes e pretéritos.
Decerto que os embates travados entre ortodoxos e heterodoxos não configuram novidade na democracia (ou mesmo no autoritarismo) brasileira. Expoentes do pensamento e intervenção econômica nacional se notabilizaram por divergências severas na condução das variáveis orientadoras do ciclo fiscal, monetário e cambial e nos parâmetros do desenvolvimento.
Um dos exemplos mais importantes repousou na contenda entre Mario Henrique Simonsen (Fazenda) e João Paulo dos Reis Veloso (Planejamento), durante a concepção e implementação do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), na gestão do general Ernesto Geisel, entre 1974 e 1979.
O encampe por Geisel das sugestões de Veloso ensejou a complementação das lacunas ou etapas produtivas e tecnológicas da segunda revolução industrial no Brasil, por meio de maciços investimentos em infraestrutura e insumos básicos. Como aqueles empreendimentos foram financiados predominantemente com poupança externa, particularmente petrodólares captados a juros variáveis, o choque mundial do petróleo e dos juros, verificado no final de 1979, precipitou a crise da dívida externa da década de 1980.
Outro enfrentamento relevante envolveu Francisco Dornelles (Fazenda) e João Sayad (Planejamento), no princípio da Nova República, em 1985, quando integravam o núcleo da equipe montada pelo presidente Tancredo Neves, que não chegou a tomar posse por conta de doença que o levou à morte em 21 de abril daquele ano.
A transição e ocupação do cargo, em definitivo, pelo vice, José Sarney, garantida por exaustivas conservações capitaneadas pelo presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Ulysses Guimarães, acomodou a colisão entre o monetarismo no combate à inflação e a plataforma desenvolvimentista, construída pelo partido junto a movimentos sociais e empresariais.
Os sucessivos êxitos e fracassos dos dois times, incluindo frequentes trocas de técnicos, provocou a derrocada das estratégias de combate à inflação, que se tornou hiperinflação, no segundo semestre de 1989, então empregadas, e a persistência de um clima cronicamente recessivo, com espasmos de crescimento derivados da aceitação inicial dos regimes de congelamento de preços.
A queda de braço entre Dilma e Palocci, entre 2003 e 2006, não pode ser posicionada em patamar equivalente em razão da fragilidade do conteúdo da discussão técnica (se é que, em algum momento de lucidez, aconteceu alguma) e da predominância de desejos eminentemente políticos atrelados à absorção plena de espaços em futuras corridas presidenciais.
Um segundo vetor elucidativo do imbróglio fiscal atual corresponde à interferência do “jeito de ser e de viver” do PT e legendas a ele umbilicalmente ligadas. Em mais de 45 anos de existência, englobando a participação ativa nas fileiras da oposição – à ditadura militar (até março de 1985), à Collor (1990-1992), à Itamar Franco (1992-1994) e à FHC (1994-2002) -, e a liderança da aliança hegemônica de poder – entre 2003 e 2023, com coffee break de maio de 2016 a dezembro de 2022, por causa do impeachment, da substituição por Temer e da administração satânica – a agremiação manifestou posições contrárias às iniciativas de viabilização ou reforço de fundamentos da estabilidade macroeconômica ou, na melhor das hipóteses negligenciou a transcendência.
O mais grave, porém, é que os donos da grife e congêneres quase que rotineiramente priorizaram a identificação, seleção e concretização de objetivos de curto prazo, ainda que algumas vezes legítimos e com maior penetração social, focados essencialmente na colheita de dividendos eleitorais, em detrimento da elaboração e negociação política de agenda transformadora de longa maturação.
A mistura de anacronismos ideológicos, carência de compreensão adequada da dinâmica econômica e social e firmes investidas na marcação de territórios de enfrentamento, independentemente da localização fora ou dentro do governo, moldou a postura do PT, impregnada de soberba e destituída de espírito de revisão de ações e autocrítica.
O persistente uso do álibi da injustiça ou perseguição política, ou o silêncio sepulcral, como justificativa às investigações e condenações nos escândalos do Mensalão (compra de apoio legislativo em troca do pagamento de mesadas, por Lula 1) e Petrolão (assaltos à mão armada aos caixas estatais por membros do governo e parlamento, em conluio com grandes empreiteiras, por Lula 2 e Dilma 1) encaminha agressão à racionalidade.
Por uma perspectiva histórica, é fácil perceber a orientação da agremiação de negação do inescapável processo de derrubada da superinflação, iniciado com o Programa de Ação Imediata (PAI), em 1993, seguido pela instituição da Unidade Real de Valor (URV), em março de 1994, e catapultado com o lançamento do Plano Real, em julho de 1994.
O PT também exerceu denodada dedicação no erguimento barreiras políticas às reformas institucionais (abertura comercial, desregulamentação, privatizações, dentre outras), rotuladas como neoliberais, e rejeitou a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, que propugnava rigoroso enquadramento dos entes públicos perdulários com os haveres extraídos dos contribuintes.
É curioso notar que a passagem exitosa da sigla no executivo federal, precisamente no intervalo 2003-2010, além de ser sobejamente favorecida pelo bônus internacional – advindo da expansão anual de dois dígitos da economia chinesa e, por extensão a disparada dos preços das commodities -, apoiou-se em uma “herança bendita”.
Esta foi transferida pela administração antecessora, tocada por FHC, amparada na implantação da plataforma “neoliberal” do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), baseada nas reformas pró-mercado e na montagem de abrangente e sofisticada retaguarda de proteção social, deflagrada, em 2001, com o Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás.
Por uma rápida quantificação, a maturação das modificações estruturais realizadas no decênio de 1990 e começo de 2000, constituiu um dos principais elementos explicativos do upgrade no crescimento do produto interno bruto (PIB) brasileiro, que passou de 2,4% ao ano, entre 1995 e 2002, sob FHC, para 4% a.a., entre 2003 e 2010, em Lula 1 e 2.
O terceiro fator esclarecedor da instabilidade equivale à aceleração da velocidade de escalada do parlamento no perímetro da governabilidade brasileira, notadamente com a partir da sucessão de eventos desestabilizadores, como os movimentos populares de 2013, a crise institucional de 2016, a solução “feijão com arroz do governo tampão de Michel Temer e a vitória eleitoral da extrema-direita, em 2018, com a multiplicação da capacidade de persuasão pelas mídias digitais.
Em tempos de indiscutível fragilidade política dos inquilinos do Palácio do Planalto e, em consequência, de necessidade de edificação de retaguarda de apoio legislativa flutuante, ao sabor das vontades de momento, deste ou daquele grupo, e com o advento da multiplicação das famigeradas emendas, o Congresso Nacional tem extrapolado, em grande medida, as funções clássicas de legislação e acompanhamento das ações do executivo.
Prevalece o glamour da ingerência, ou tomada dos serviços de preparação e execução do orçamento, engordada com emendas bilionárias, descoladas das políticas de estado, e com o povoamento de ministérios endinheirados com cargos para afilhados e polpudas verbas dirigidas ao saciamento da “fome” dos currais eleitorais.
O conjunto da obra é celebrado, de maneira imaginária, em uma grande festa dos integrantes do modus operandi, em blocos ou bancadas (bala, agro, evangélica, etc.), que reúnem oposicionistas e governistas, de mãos dadas ou com disfarces, seguindo o lema “juntos para sempre”, numa espécie de universo paralelo ao da sociedade representada.
Assiste-se à substituição do reduto de legítima e apropriada ausculta aos clamores da população por cômodos reservados aos ataques de mau gosto aos adversários e/ou a produção de material de reforço à polarização, com recortes de monólogos inflamados, proferidos em recintos normalmente vazios, a serem postados nas redes sociais, no afã de incitação do radicalismo.
Nesse contexto de sacrifício das atribuições congressuais tradicionais, os partidos servem apenas para encaixe na retrátil legislação, que estimula o escape via federações, e, especialmente, a arregimentação das grandes cifras destinadas aos dois fundos de financiamento público (partidário e eleitoral).
A par disso, as negociações políticas suprem as intenções de endereçar os estouros nas contas aos esconderijos, preferencialmente situados debaixo do tapete do Orçamento Geral da União (OGU), e requentar antigas bandeiras, como a revisão de benefícios fiscais e taxação de modalidades de aplicações exclusivas offshores, que, paradoxalmente, sofrem de paralisia ou preguiça de tramitação.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.