Demônios de Rocky Balboa e Lula 3

Gilmar Mendes Lourenço.
No final de 2006, fui presenteado por um estimado amigo com o DVD do filme Rocky Balboa, lançado naquele mesmo ano, e que representou o encerramento da franquia surgida 30 anos antes, em 1976, com a película “Rocky um Lutador”.
Na produção de 2006, o escritor, diretor e protagonista, Sylvester Stalone, vive um campeão de boxe aposentado, proprietário do Restaurante Adrian´s, em homenagem à falecida esposa, Adrian Pennino Balboa, vivida pela brilhante atriz Talia Shire.
Rocky preenchia o tempo dedicando-se a contar peripécias e histórias a respeito do esporte que o consagrou, a clientes e fãs, e tentar uma reaproximação com o filho, Rocky Balboa Junior (Milo Ventimiglia), que, em crise e incomodado com a constante sombra da consagrada carreira do pai, buscava alçar voo próprio em trajetória profissional diferente da esportiva.
Ao mesmo tempo, o personagem convivia com apreciáveis conflitos e dilemas interiores, provocados pela não absorção adequada de algumas fatalidades que o atingiram, como o falecimento do primeiro treinador, Mickey (Burgess Meredith), no corner do ringue durante uma luta; do principal adversário, e depois grande amigo, Apolo Creed (Carl Weathers), em uma exibição contra o violento atleta de laboratório russo Ivan Drago (Dolph Lundgren); e da esposa, vencida por um câncer.
Na verdade, o ex-campeão era atormentado por “demônios” que só poderiam ser exorcizados com nova exposição às múltiplas dificuldades proporcionadas pela intensa dinâmica de sucessivos rounds dentro de um ringue. Apesar da idade avançada, a invejável capacidade de convencimento de Rocky ensejou a obtenção da licença para o retorno aos combates.
A oportunidade efetiva surgiu a partir de esforço publicitário dos empresários do campeão invicto, porém “sem brilho”, da categoria dos “pesos pesados”, Mason Dixon, depois da enorme receptividade atingida por uma contenda simulada por computadores que decretava nocaute em favor de Rocky.
Seguindo rigorosamente os conselhos do treinador Tony Burton (Tony Evers), do cunhado Paulie (Burt Young) e do filho reconciliado, Rocky logrou êxito na expulsão dos seres demoníacos, ao final de dez rounds de agitada batalha entre um “velho desacreditado” e um “novo sem carisma” ainda não testado para valer.
Embora a decisão dos juízes tenha sido dividida, conferindo a manutenção do cinturão ao campeão – que, finalmente, passou pelo autêntico batismo de fogo -, por diferença de um ponto, a força e resistência do ex-campeão surpreendeu a todos, sobretudo a crônica especializada, que apostava que tomasse uma surra em menos de dois assaltos.
De forma bastante generosa e elegante, Rocky agradeceu a chance oferecida pelo campeão e se retirou do palco do espetáculo antes da proclamação do resultado pelo locutor oficial, Michael Buffer, sob verdadeira ovação do público presente ao evento.
Transportando o enredo cinematográfico ao ambiente político brasileiro, é fácil perceber o desconforto manifestado pelo chefe do executivo com alguns diabos que insistem em afetar posturas e formulações de estratégias, neste começo de 2023.
O presidente Lula parece permanecer ressentido com as denúncias, julgamento, condenação e prisão, em 2018, e incomodado com os desdobramentos da tentativa frustrada de realização de um terceiro turno eleitoral, com as investidas fascistas de oito de janeiro de 2023, que, se, de um lado, abalaram o arranjo físico dos prédios dos três poderes, em Brasília, de outro, serviram para ensejar pronta resposta e rechace dos representantes das instituições democráticas e da sociedade civil.
Em vez de sinalizar a descida definitiva dos palanques eleitorais, arregaçar as mangas, detalhar as diretrizes do projeto inclusivo vitorioso nas urnas, em outubro de 2022, e encaminhá-las à discussão com os atores sociais, mediada pelo Congresso Nacional, o incumbente tem disponibilizado espaço ou artilharia pesada no sentido de entes derrotados no último pleito e/ou destituídos de expressão política.
Ao persistir na externalização de críticas à gestão predecessora, o comandante expressa a carência de racionalidade, com postura imitadora das iniciativas (ou a falta delas) de um ente político perdido no tempo e no espaço, durante quatro anos, em contínua recusa da nobre missão de governar – e, por absurdo, postular a reeleição – e afronta ao estado democrático de direito.
Bolsonaro faz parte de um passado retrógrado, sombrio e desastrado da história da república nacional, sendo portador de inúmeras contas a acertar com várias esferas institucionais, em decorrência de afirmações, atos e, sobretudo, omissões, em um mandato caracterizado por absoluto desprezo ao cumprimento de funções públicas endógenas e exógenas.
Outro exercício de tiro ao alvo inútil do presidente Lula compreende o senador, ex-juiz e ex-ministro, Sérgio Moro, figura de diminuta significância na política brasileira, não fosse a exibição do troféu da sentença de prisão proferida contra Lula e o recente sucesso na conquista de vaga ao Senado, pelo Paraná, depois do malogro no lançamento do empreendimento como candidatura alternativa da terceira via na corrida presidencial.
Se ainda restassem resquícios de lisura ao atual parlamentar, antes envolvido em conluios incestuosos com procuradores para a produção de incriminações desprovidas de concretude de provas contra os réus, o apoio desavergonhado à Bolsonaro, no segundo turno da refrega presidencial de 2022, depois de demitir-se da pasta da Justiça, em abril de 2020, atirando contra o capitão, serve como uma espécie de atestado de mediocridade.
Fora do terreno das incongruências e fantasmas da seara política, emerge a fincada de pés de Lula nas recordações do intervalo 2003-2010, preferencialmente com a explicitação dos acertos e esquecimento dos erros e a abdicação da observação das enormes discrepâncias entre os retratos conjunturais.
Essa tentativa de importação do túnel do tempo vem sendo fortemente influenciada pelo time ideológico do Partido dos Trabalhadores (PT), menos qualificado que o de 2003, encabeçado pela presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, e o chefe do BNDES, Aloisio Mercadante, em contraposição à defesa do equilíbrio fiscal efetuada pela área econômica.
Urge entender que o boom das commodities, puxado pela China, a geopolítica com a dominação americana, a maturação das modificações institucionais no Brasil, a desinflação e a responsabilidade fiscal, plantadas na era de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e a subordinação da autoridade monetária e do regime de metas de inflação ao executivo, que contribuíram decisivamente para o alcance dos maiores patamares de expansão econômica nas últimas quatro décadas, naquele interregno, estão ausentes do panorama presente.
Em contraste, a economia global apresenta inquestionáveis sinais de estagflação (estagnação dos negócios e resistência da inflação) e acentuada rearrumação geopolítica, com o advento do protagonismo chinês e aproximação estratégica com a Rússia, invasora da Ucrânia há mais de um ano, selando a relação entre “queridos amigos”.
No plano interno, o cenário prevalecente abarca desaceleração dos níveis de atividade e compasso de espera dos agentes econômicos da elaboração, divulgação e tramitação legislativa das novas regras das contas públicas, sucedâneas do avariado Teto de Gastos, tapeado com providências paliativas de curto alcance.
Nessas condições, soa lícito argumentar a necessidade de auto blindagem do presidente, factível com o esboço de efetiva atenção e esforço de preparação de ações imprescindíveis ao tratamento e correção, ou ao menos minimização, das mazelas de horizonte imediato, e o preparo e negociação de requisitos institucionais ao trânsito em vias direcionadas à expansão sustentada, com menos congestionamento provocado pelo corporativismo e patrimonialismo e mais inclinado à eliminação da desigualdade social, pobreza e miséria.
Faltará ainda a descoberta e convencimento dos responsáveis pelo Mason brasileiro, a assinatura do contrato da peleja, a arregimentação de patrocinadores e a definição dos protocolos da disputa e do número de rounds.
Com isso, as criaturas malignas desaparecerão ou serão transferidas para assombrarem lugares distantes, como o caso da ex-presidente Dilma, detentora da maternidade e responsabilidade pela morte do Velho PAC e da Nova Matriz Econômica, designada para ocupar o comando do banco do Brics (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul). Do contrário, o governo corre o sério risco de amargar caducidade precoce.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, ex-presidente do Ipardes e ex-conselheiro da Copel.