Queda da desigualdade social brasileira: causas e advertências

Queda da desigualdade social brasileira: causas e advertências
Gilmar Mendes Lourenço.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), referente ao ano de 2024, elaborada pelo IBGE, avaliada como a mais abrangente e consistente observação empírica do comportamento das unidades familiares do planeta, e portadora de reconhecimento de excelência científica por parte de instituições congêneres da comunidade internacional, quantificou e qualificou a diminuição da desigualdade social no Brasil em 2024.

As três métricas de disparidade social utilizadas, núcleos da metodologia do organismo nacional, exibiram a menor dimensão da série, o que anuncia inegável simbolismo e sugere a factibilidade de tratamento da doença pela aplicação simultânea de remédios oferecidos pela “mão invisível” do mercado, embora oriundos de laboratórios de segunda linha, e pelo setor público, de maneira ampla ou localizada e não emancipatória.

O primeiro cálculo denotou que os 10% posicionados como mais ricos na estrutura populacional receberam, em 2024, o correspondente a 13,4 vezes os ingressos dos 40% mais pobres, o que ainda traduz caráter assustador, mesmo sendo 21,6% inferior ao pico de 17,1 vezes, medido em 2018.

A segunda parametrização permitiu perceber que o 1% acomodado em berço esplêndido, na cobertura o edifício de rendimentos, auferiu o equivalente a 36,2 vezes as receitas obtidas pelos 40% ocupantes do piso da pirâmide, 26% abaixo do ápice de 48,9 vezes, de 2019, o que, por si só, justificaria a proposta de alargamento da taxação dos super ricos.

O terceiro vetor propiciou constatar redução do coeficiente de Gini (que basicamente serve para a mensuração da concentração de renda, oscilando entre zero e um, expressando melhor repartição e/ou apropriação à medida que se distancia da unidade) de 0,518, em 2022 e 2023, para 0,506, em 2024, 7,2% inferior ao pico de 0,545, de 2018.

Essa evidente melhora das feições dos indicadores sociais brasileiros, especialmente a partir de 2022, pode ser imputada à consistente recuperação do mercado de ocupações – embora de natureza frágil, fortemente subordinada ao retorno da estratégia de valorização do salário, com reajustes acima da inflação e da produtividade agregada, e a manutenção de elevado status da informalidade – e ao redesenho e adensamento dos repasses diretos de renda acoplados à intervenção estatal.

Apenas a título de ilustração estatística, de acordo com o levantamento de campo do IBGE, o rendimento mensal real domiciliar per capita (ou renda familiar total por pessoa), já com desconto da inflação, registrou, em 2024, a cifra de R$ 2.020,00, a maior da série dos acompanhamentos históricos, iniciada em 2012, o que corresponde a variação de 4,7%, em cotejo com 2023, e 19,1%, frente a 2012.

O volume agregado deste rendimento equivaleu a R$ 438,3 bilhões, no ano passado, igualmente recorde da série, suplantando em 5,4% e 15%, respectivamente, a massa de renda apurada em 2023 e 2019, sendo que aquela mais recente compreende o exercício imediatamente anterior à eclosão da pandemia de Covid-19, em março de 2020.

Na mesma linha, a renda oriunda de todas as fontes assinalou R$ 3.057, o que representou variação de 2,9%, em 2024, também o maior patamar histórico, replicado no rendimento habitualmente auferido em todos os trabalhos (R$ 3.225) e em programas governamentais de proteção social (R$ 836). Ressalte-se que essa última modalidade evoluiu 72,7% e 101%, em comparação a 2019 e 2012, respectivamente.

O inquérito do IBGE demonstrou a persistência da extensa preponderância do trabalho nos ganhos de renda, responsável por ¾ do total, e corroborou marcha moderadamente descendente das transferências oficiais – exceto os programas sociais -, em especial as aposentadorias e pensões.

Mais especificamente, a parcela da renda derivada diretamente do fator trabalho na formação do rendimento domiciliar per capita acusou discreto avanço, ao passar de 74,2%, em 2023, para 74,9%, em 2024, situando-se ainda abaixo da marca de 76,9%, contabilizada em 2014.

Recorde-se que o numerário determinado há uma década constituiu o auge da série, coincidindo com a época de radicalização da denominada demagogia redistributivista, aprofundada no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, sob o rótulo de Nova Matriz Econômica, baseada no manuseio político dos preços administrados (tarifas públicas e combustíveis), câmbio e juros, e desprovida de responsabilidade fiscal.

Em artigo publicado no Estadão, de 11 de maio de 2025, o ex-ministro da Fazenda do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Pedro Malan, mencionou que o Partido dos Trabalhadores (PT), ajuizou, em junho de 2002, ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Ao mesmo tempo, conforme adiantado, a importância relativa do item aposentadorias e pensões continua percorrendo curso decrescente, saindo da magnitude de 18,7%, em 2019, anotando 17,5%, em 2023, e chegando a 16,8%, em 2024.

O peso das ações sociais do governo permaneceu praticamente estável, elevando-se de 3,7%, em 2023, para 3,8%, em 2024, ainda inferior ao pico de 5,9%, aferido em 2020, então ancorado no Auxílio Emergencial, aprovado pelo Congresso Nacional, voltado à mitigação dos efeitos econômicos e sociais da escalada descontrolada da crise sanitária.

Ainda assim, o amparo social ocupou posto superior ao da etapa imediatamente anterior ao surto do patógeno (1,7%, em 2019), caracterizada pela precipitação do absoluto e deliberado desmanche das estratégias inclusivas, por meio da aplicação de medidas retiradas da doutrina do “liberalismo de botequim”, da equipe do ministro da Fazenda, Paulo Guedes, fervoroso militante juramentado e defensor da administração das trevas.

Os domicílios que possuem membros beneficiários do programa Bolsa-Família, carro-chefe das políticas públicas focalizadas, recuaram levemente de 19,0%, em 2023, para 18,7%, em 2024, versus 16,6%, em 2012, e 14,3%, em 2019. Já os inscritos no Benefício de Prestação Continuada (BPC-LOAS) pularam de 3,1%, em 2020, 4,2%, em 2023, e 5%, em 2024, o que serviu para multiplicar as suspeitas de ocorrência de irregularidades na concessão.

Outro ganho não menos saliente foi no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), estimado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), relativo a 2023, que sinaliza a conquista de cinco postos pelo Brasil, em um ranking de 193 países, passando do 89º para o 84º lugar e assumindo indicador de 0,786, contra 0,760, em 2022, em uma faixa que varia de zero a um.

Um exame dos pedaços do IDH prova aprimoramento nos quesitos renda e saúde e estagnação na educação, comprovada por 29% das pessoas entre 15 e 64 anos serem qualificadas como analfabetos funcionais, sendo incapazes de entendimento e uso adequado da leitura, escrita e matemática no dia a dia, segundo pesquisa da Ação Educativa e consultoria Conhecimento Social, em parceria com Fundação Itaú, Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, Unesco e Unicef.

Não obstante, tendo como comparação o elenco principal de nações da América Latina e Caribe, verifica-se que o país transita por um caminho intermediário do IDH, atrás de Chile (0,855), Argentina (0,849) e Uruguai (0,809), e a frente de Paraguai (0,728), Bolívia (0,693) e Venezuela (0,691).

Diante dessa descrição extremamente sumária, convém advertir que, embora bastante favoráveis, os dados exibidos, em vez de ensejarem celebrações triunfalistas, devem ser absorvidos com redobrada cautela, dado que atestam que a concentração funcional na apropriação do produto social perdura elevada no Brasil, em contraste com a menor heterogeneidade distributiva prevalecente na esmagadora maioria das nações avançadas e em desenvolvimento.

Mais do que isso, trata-se de restauração limitada dos sinais vitais de um paciente ainda dependente de cuidados em unidade de terapia intensiva (UTI), preservado pela dinâmica laboral assentada na areia da praia e na impulsão desenfreada do dispêndio público corrente, desde 2022, atrelado ao atendimento de interesses eminentemente eleitoreiros, brotados do executivo em articulação promíscua com o legislativo.

Tanto é assim que, mesmo com a ocupação de mão de obra expor contingente recorde de 103,3 milhões de pessoas, em 2024, 2,6% e 15,2% superior, respectivamente, a 2023 e 2012, com taxa de desemprego de 6,6% em 2024, a menor da série, sobrevive apreciável grau de precarização do emprego, com a informalidade representando 39% da força de trabalho.

Nessa perspectiva, afigura-se crucial a formulação e negociação política de um autêntico projeto de nação que induza o escape da armadilha ou ilusão de eternização de ciclos expansivos puxados pelo consumo público e privado e a geração de empregos menos exigentes em qualificação em detrimento do investimento.

A etapa de reativação do crescimento dos níveis de atividade do triênio 2022-2024 vem sendo catapultada basicamente pela utilização das margens de ociosidade, principalmente do parque fabril, acumuladas no intervalo de maior impacto Coronavírus com superação vagarosa devido as vacilações do poder executivo no engajamento no processo de imunização das pessoas.

Para tanto, urge a priorização da maximização dos investimentos em componentes das variáveis portadoras de futuro, principalmente infraestrutura, educação, ciência, tecnologia e inovação, em fase com a quarta revolução industrial, liderada por inteligência artificial, digitalização e robotização.

Na mesma pegada, será indispensável a celebração de inarredáveis compromissos com a busca do equilíbrio intertemporal das finanças públicas e admissão da premissa, na maioria das vezes desagradável, do ponto de vista político, de finitude dos haveres retirados compulsoriamente pelo estado da sociedade contributiva.

A agenda fiscal sobressai em circunstâncias de proximidade do fechamento da janela demográfica e o envelhecimento populacional – o que impõem maior dotação de recursos para suprimento das complexas demandas da saúde – e de descoberta de fontes perenes de receitas para financiamento dos programas sociais e outras bondades.

Até porque, mesmo com a redução da miserabilidade (renda inferior a US$ 2,15 por dia, designada pela regra do Banco Mundial) de 8,3% para 6,8% da população (14,7 milhões de pessoas), entre 2023 e 2024, o Brasil é, fora do continente africano, o segundo país mais desigual do planeta, melhor apenas que a Colômbia, configurando a principal barreira à mobilidade social.

Seria ocioso destacar que tais proposições, de cunho estrutural, devem integrar o conjunto de tarefas de rotina dos agentes políticos, infelizmente mais empenhados, presentemente, em empreitadas destinadas à produção de contrapartidas financeiras à poderosos grupos de pressão, capazes de viabilizar eventos de renovação de mandatos ou de eleições de dinastias.

Com essa anomalia é possível o estabelecimento de procedimentos de recauchutagem de palanques físicos e, sobretudo, digitais, povoados por propagadores de desinformações e retóricas de ódio, endeusados pelas tribos de devotos como verdadeiros intelectuais generalistas. Mal sabem eles que a ciência política moderna os denuncia como “seres” habilitados a proferir bobagens sobre todos os assuntos.

O pior é que a disseminação desses expedientes se mostra grandemente nociva à pluralidade e alternância de mando, traços comuns de democracias maduras que rejeitam a utilização do sufrágio popular como uma espécie de “cheque em branco” para a cobertura de meros caprichos das estrelas e dos figurantes da companhia, na mais benevolente das expressões, que subvertem as incontáveis vontades coletivas.

Aliás, ambientes políticos desalinhados ou distantes dos ruídos da maioria da sociedade, quase que imperceptíveis vis a vis os brados em volume máximo transmitidos por plataformas on line, facilitam repetidas afrontas à Constituição, como o recente esboço da manobra de concessão de anistia, pelo parlamento.

A ideia repousa no perdão a assaltantes do erário e/ou planejadores de insurreições golpistas, suportadas por elementos saudosos do regime de arbítrio, que desembocaram no vandalismo de 08 de janeiro de 2023, interpretado pelos radicais como mero momento de turismo na capital federal.

A temática provocativa, levantada sob a desculpa de salvação do deputado federal bolsonarista, Alexandre Ramagem, que dispensa maiores apresentações – tendo o resgate do capitão et caterva como intenção de fundo – insulta os expedientes de pesos e contrapesos da democracia e, por isso, foi, de pronto, corretamente rejeitada pelo STF.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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