“Nada é tão ruim que não possa piorar”: o pedagógico exemplo dos Correios

Gilmar Mendes Lourenço
Há quase duas décadas, ao proferir palestra em um evento regional da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), mais conhecida como Correios, direcionado ao planejamento de longo prazo da entidade, enfatizei o caráter “não criminoso” do desencadeamento de ações voltadas à ampliação da abrangência, modernização e agilização das tarefas de fornecimento dos serviços, em época de profundas modificações do cotidiano social.
Confesso que me preparava para disfarçar discreto semblante de insatisfação, em caso de ser solenemente ignorado, algo bastante protocolar em acontecimentos que combinam aspectos técnicos e interferência de forças políticas, ao sugerir a possibilidade de estreitamento de laços ou mesmo o repasse de atribuições ao ambiente privado.
A esse respeito, mencionei a possibilidade de criterioso exame dos pontos fortes e das debilidades acopladas à experiência de privatizações dos anos 1990, nas áreas de insumos básicos, como mineração e siderurgia, e de telecomunicações, tocada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Em vez disso, não pude esconder profunda perplexidade ao ouvir, da direção da organização, a mensagem explícita de que aquele tipo de pauta propositiva não constava do elenco de prioridades, construído pela plataforma vitoriosa nas urnas, em 2002.
Como é de conhecimento generalizado, em maio de 2005, eclodiu o escândalo do Mensalão, tendo os Correios como um dos protagonistas de negociatas, centradas em deslocamentos de haveres orçamentários para finalidades dissociadas dos desejos da maioria da população.
O ditado popular “nada é tão ruim que não possa piorar” se encaixa perfeitamente no desempenho financeiro dos Correios, uma das várias estatais controladas pela União, apurado para o primeiro semestre de 2025.
Neste período, a companhia amargou o bilionário rombo de R$ 4,4 bilhões, suplantando em 225% o buraco contabilizado entre janeiro e junho de 2024, que foi de R$ 1,35 bilhão, e em 68% as perdas verificadas durante todo o ano passado, que chegaram a R$ 2,6 bilhões, o que alarga o diagnóstico de necessidade de supressão da interferência política direta do poder central na condução da empresa.
A sucessão de resultados negativos assustadores foi imputada, de maneira absolutamente equivocada, pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao ingresso de outras organizações empresariais no segmento de entrega de pedidos, sobrando aos Correios a responsabilidade de atendimento dos lugares mais remotos do território nacional, o que teria majorado os dispêndios incorridos com a manutenção dos serviços de postagem universal.
Em entrevista concedida à Rede Bandeirantes, aparentemente confuso com os elementos subjacentes à quebra do monopólio na distribuição de encomendas, o titular da Economia afirmou que enquanto as demais firmas ficaram com o “filé mignon e a picanha”, aos Correios teria sobrado o osso.
Na verdade, as finanças no vermelho, neste ano, equivalem à metade das receitas totais, anotadas em R$ 8,9 bilhões, e que, por sinal, declinaram -9,5%, frente ao primeiro semestre de 2024, em função do tombo de -62% das encomendas internacionais, associada à denominada popularmente de “taxação das blusinhas”.
Implantado em 2024, o gravame foi fixado em 20% de imposto de importação para as compras externas valoradas em até US$ 50, anteriormente isentas, e 60% para aquisições acima desse patamar, sem computar o impacto em cascata da cobrança do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), de competência das unidades da federação.
Apenas as receitas líquidas derivadas de vendas e prestação de serviços decresceram – 11,8% (recuando de R$ 9,3 bilhões para R$ 8,2 bilhões), no confronto do primeiro semestre deste exercício com igual período do ano passado, sintetizando a dimensão do estrago.
No lapso temporal em tela, as despesas administrativas saltaram de R$ 1,2 bilhão para R$ 3,4 bilhão, o que representou acréscimo de 183%, abarcando pessoal (contingente superior a 55 mil funcionários, com aumento de 74%) e precatórios, sendo que esses últimos atingiram R$ 1,6 bilhão, o que correspondeu a um pulo de praticamente 500%.
Esses números representaram a pior performance da história da organização e refletem, fundamentalmente, sua a perene subordinação às demandas de natureza política, o que configura a repetição do paradigma de gestão aplicado às demais estatais.
Em outros termos, o quadro caótico é consequência da acumulação planejada de gorduras burocráticas e da realização de investimentos carentes do exercício básico de planejamento, que precipitaram a autorização de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no Senado da República, o que ensejou solicitação voluntária de desligamento do cargo de presidente da empresa, pelo advogado Fabiano Silva Santos, em julho deste ano.
O pior é que, ao menos por ora, a aliança hegemônica de poder, particularmente a cúpula do executivo e respectiva base parlamentar, permanece indefinida quanto à substituição, dada a pretensão do cargo pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o União Brasil, antes do desembarque do governo Lula, comandado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre.
A propósito disso, a abundante distribuição de postos, ao sabor dos ventos e interesses das agremiações que compõem a retaguarda retrátil do governo no Congresso Nacional e, por extensão, a condução financeira em linha com as vontades e manifestações do incumbente de turno, se estende igualmente ao fundo de pensão, Postalis, que vem sendo investigado por desvios de recursos, pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
O empenho corretivo do desempenho desfavorável, englobando a venda de imóveis, o lançamento de um marketplace, com a Infracommerce, e a adoção de um plano de demissões voluntárias (PDV) dos colaboradores, resume a busca da saída fácil retratada na ampliação do endividamento, com o pleito de financiamento de R$ 4 bilhões junto ao Banco do Brics, dirigido pela ex-presidente da república, Dilma Rousseff.
Na falta do socorro externo, sobraria a canalização de haveres do próprio Tesouro Nacional, já suficientemente embaraçado na árdua batalha de sinalização de responsabilidade fiscal aos atores econômicos, em tempos de flagrante deterioração das contas públicas, por múltiplos motivos.
O complicado é que tal alternativa soa quase como um esforço de “enxugamento de gelo”, em razão das condições concorrenciais absolutamente adversas, caracterizadas pela escalada da participação de contendores como Amazon, FedEx e DHL, portadores de elevada eficiência.
Lembre-se que o salto da capacidade competitiva privada se deu a partir de vultosas inversões em tecnologia destinadas a assegurar o suprimento eficiente de diversificadas solicitações, principalmente com a proliferação ampliada do comércio digital, notadamente com a pandemia de Covid-19.
Nessas circunstâncias, considerando a plausibilidade da premissa de não modificação do modus operandi dos Correios, com a mera troca do staff superior e intermediário da companhia, parece lícito cogitar a premência de retomada da apreciação da transferência dos Correios à comunidade empresarial privada, conforme acenado em estudo preparado pelo BNDES, ainda em 2020.
Os critérios de privatização, inspirados em casos internacionais exitosos, elaborados pela agência de fomento, assentam-se na separação das entregas de maior porte e/ou complexibilidade logística daqueles serviços essencialmente postais, que, por seu turno, continuariam públicos e universais.
Ademais, as atividades postais seriam submetidas à nova concessão, na prospecção de introdução de parcerias com entidades privadas, amparada por criteriosa e rigorosa regulação do estado e preservação da capilaridade dos postos em áreas longínquas.
Até porque, cumpre insistir e reconhecer a peculiaridade assumida pelos Correios de quase eterno refém de orientações eminentemente ideológicas e de manejos partidários, destituídos de responsabilidades e divorciados dos requerimentos determinados pela lógica de mercado, ajustada para cima pela brutal evolução tecnológica e a exacerbação da competição intercapitalista.
Daí a inevitabilidade de ocorrência de uma metamorfose gerencial, funcional e financeira da empresa, imprescindível ao escape de atitudes passivas, restritas à mera contemplação da degradação e obsolescência de suas atividades e, o que é mais gritante, em rápida velocidade.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.