E não é que a economia global escapou da crise?

E não é que a economia global escapou da crise?
Gilmar Mendes Lourenço.

Em um momento da história bastante carente de melhor e mais pormenorizado entendimento e esclarecimentos acerca da complexidade dos nebulosos acontecimentos do passado recente e do presente, o esforço de elaboração de estimativas correntes e prospecções requer redobrada cautela, notadamente em um clima de exacerbação das incertezas, sob pena de incitar diagnósticos equivocados e tomadas de decisões afoitas por parte dos atores econômicos e sociais.

Com esse grave sinal de alerta, as inferências preparadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), disponibilizadas no relatório “World Economic Outlook”, neste mês de outubro, poderiam ser encaradas como resultado de propensões demasiadamente otimistas, ou, mais precisamente, “chapas brancas”, em decorrência da aparente submissão do organismo aos torpedos desferidos – e o subsequente enquadramento conservador – pelo mandatário dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump.

Isso porque, as estatísticas divulgadas apontam discreta desaceleração da economia global em 2025 e 2026, contrariando a maioria dos prognósticos realizados pelos principais analistas do ambiente especializado, que identificavam e insistiam na ocorrência de apreciável inflexão da expansão cíclica, verificada desde o controle da pandemia de Covid-19, em 2021.

De acordo com a entidade, o Produto Interno Bruto (PIB) mundial deverá crescer 3,2%, em 2025, e 3,1%, em 2026, depois de ter subido 3,4% ao ano, entre 2022 e 2024. As nações avançadas devem exibir variação de 1,6%, nos dois exercícios, versus 2,1% a.a., no triênio antecedente.

Para os emergentes, as previsões são de evolução de 4,2% e 4%, respectivamente em 2025 e 2026, ante aumento de 4,2% a.a., entre 2022 e 2024, puxada pela Índia (6,6% e 6,2%, respectivamente) e China (4,8% e 4,2%, respectivamente), contra elevação de 7,6% a.a. e 4,5% a.a., respectivamente, nos três anos anteriores.

Na verdade, as apostas na perda de embalo dos níveis de atividade e comércio mundial repousavam na persistência de disfunções macroeconômicas, provocadas pelos enormes déficits orçamentários amargados pela maior parcela das nações avançadas e emergentes.

Não bastasse o transbordamento dos substanciais desequilíbrios fiscais, e a correspondente carga inflacionária, também pesavam as tensões geopolíticas, com as incursões atabalhoadas dos EUA, na direção do restabelecimento rápido da influência hegemônica, minimizada a partir da aplicação irrestrita dos preceitos da globalização, baseados no paradigma neoliberal, decretado com o Consenso de Washington, nas décadas de 1990 e 2000.

Recorde-se que a implantação das regras de liberação das amarras comerciais e financeiras viabilizou a galopante escalada da China, que, ao desfrutar de vantagens competitivas flagrantes, expressas na abundância e baixo custo do fator de produção mão de obra, no câmbio depreciado, sob absoluto controle do governo, e na encorpada retaguarda estatal na provisão de capital social básico e irrestrita proteção ao segmento empresarial (produtivo e financeiro), vivenciou prolongada fase de crescimento econômico que suplantou os 10% a.a.

Nos dias atuais, em se transformando no maior exportador mundial de bens impregnados de conteúdos de ciência, tecnologia e inovação, na dianteira da quarta revolução industrial, comandada por robótica, digitalização e inteligência artificial (IA), o gigante asiático habilitou-se a assumir o encargo de anteparo aos embargos comerciais e financeiros, impostos pelo Ocidente à Rússia, depois da invasão do território ucraniano.

Ainda a respeito dos distúrbios geopolíticos, havia a interferência da não resolução da terceira guerra mundial fragmentada, conforme definição do saudoso Papa Francisco, com destaque para os confrontos entre Rússia e Ucrânia e Israel e grupo terrorista Hamas.

Outra fonte de preocupação dos experts repousava na multiplicação descontrolada daquilo que vem sendo considerado a verdadeira vedete das mudanças tecnológicas experimentadas pela humanidade, configurada nos aprimoramentos subjacentes à IA.

Contudo, é importante considerar que a agência multilateral ofereceu um conjunto de quatro elementos explicativos, convincente, ainda que extremamente volátil, da acomodação global aos eventos adversos à continuidade do estágio ascendente vivido pela economia internacional, desde a descoberta do imunizante e disseminação da vacinação contra o surto pandêmico e o rearranjo das cadeias de suprimento, fortemente abaladas com as incontáveis interrupções dos negócios no transcorrer das quarentenas.

O primeiro contraponto reside na contenda comercial, desencadeada pela administração de Donald Trump, menos drástica do que se preconizava, depois do anúncio no “dia da libertação”, em 02 de abril de 2025. De um lado, a tarifa efetiva média ponderada para as importações feitas pelos EUA caiu de 23,5% para 17%, e, de outro, as nações atingidas preferiram priorizar a negociação, ainda que difícil, e/ou o redirecionamento dos fluxos comerciais, em lugar da retaliação ou imposição de sanções aos produtos americanos.

A segunda vertente de defesa encontra apoio na pronta capacidade de resposta ou mesmo reação dos agentes privados, notabilizada por atitudes antecipatórias ao choque tarifário, ou mesmo ao retardo temporal de seu lançamento, o que favoreceu as decisões de precificação e as escolhas dirigidas ao consumo das famílias e, em menor medida, às inversões das firmas.

Ainda assim, a inevitável transferência, ao menos de parte da elevação das alíquotas do imposto de importação aos preços finais ensejou discreta subida da inflação e redução da velocidade de incremento da atividade produtiva e alargamento das taxas de desemprego nos EUA.

O terceiro eixo de resistência compreende as circunstâncias financeiras ainda positivas, propiciadas notadamente pela permanência dos juros reais em patamares elevados, nas mais importantes praças, e a pronunciada valorização do mercado de ações, atrelada quase que exclusivamente ao extraordinário avanço dos investimentos em soluções escoradas em IA.

Por sinal, o surto da IA tem precipitado inúmeras manifestações de inquietações na comunidade dos bancos de investimento, centradas na discussão das chances de formação e estouro de nova bolha especulativa, e, por conseguinte, ocupado o primeiro lugar na lista de incômodos elencada pelo FMI.

Concretamente, o exuberante empuxe incremental das big techs dominantes na Bolsa de Nova Iorque, concentrado operações com chips e nuvem (que roda os modelos de IA), com desdobramentos nos ramos de energia e construção civil (cimento, aço e cabos), tem sido sustentado pela captação de vultosas somas de recursos de terceiros, mediante a emissão de títulos comercializados fora da curva normal preços, abocanhando inclusive os haveres dos fundos de aposentadorias da classe média americana.

Mais especificamente, conhecidas como as “sete magníficas”, Alphabet, Amazon, Apple, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla, respondem por mais da terça parte do índice S&P 500, que congrega as 500 maiores companhias com capital aberto na The New York Stock Exchange (Nyse) e na Nasdaq.

Em uma retrospectiva comparativa do perigo especulativo, bastaria lembrar o default das empresas de tecnologia da informação, no final dos anos 1990 e começo dos 2000, derivado primordialmente da maquiagem de balanços das corporações, endossadas pelos encarregados das auditorias, antecedido pela disseminação da despropositada tese de fim dos ciclos, com o advento da Nova Economia, comandada pela internet.

Por fim, o quarto vetor de proteção abarca o reforço dos pilares da estabilização macroeconômica, principalmente nos países emergentes, suficientemente calejados pelos impactos negativos de instabilidades pretéritas, como as quebradeiras entre 1994 e 2002, ocasionadas por descuidos com a contas públicas e fuga de capitais, e aquela catapultada pelo colapso do segmento hipotecário de segunda camada norte-americano, em 2008 e 2009.

Frise-se que a falência do chamado subprime nos EUA contaminou os circuitos imobiliários, financeiros, produtivos e comerciais de maneira generalizada no planeta, gerando retração comparável à verificada durante a Grande Depressão dos anos 1930, o que levou aos antes negacionistas do imbróglio a profetizarem praticamente o extermínio do capitalismo.

Por tudo isso, é lícito admitir que, ao menos por enquanto, a economia global escapou da crise. Em curto prazo, a grande anomalia ao funcionamento do organismo econômico reside na intensificação das dificuldades de reencaixe estrutural dos diferentes países na fronteira comercial.

Isso será crucial depois do desfecho das negociações do tarifaço e outras sanções, sobretudo para os “peixes grandes”, como China – que revidou com limitações às exportações de terras raras e insumos minerais estratégicos (destinados aos parques de informação, eletroeletrônica, veículos, turbinas eólicas, equipamentos militares, dentre outros -, e Índia, hiper punida pela compra de petróleo russo.

Proliferam problemas também para nações em desenvolvimento, como a brasileira, vitimada por razões meramente políticas, sintetizadas no desmanche de um empreendimento ditatorial, ou, em outros termos, pressionada pela destruição de um projeto de supressão da democracia.

Por esse aspecto, cumpre sublinhar a relevante alteração de status nas conversações entre EUA e Brasil, por meio da retomada da serenidade nas interlocuções, depois das graduais aproximações observadas com a instauração do “clima” entre os dois presidentes, em encontro ocasional, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), e do telefonema do chefe americano ao brasileiro.

Na sequência, houve uma reunião formal entre a delegação do país, conduzida pelo Ministro das Relações Exteriores, chanceler Mauro Vieira, e o time do Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, destinada à arrumação do terreno para a superação das desavenças.

Em contrapartida, notou-se o enfraquecimento das posições ocupadas por guerreiros isolados, instalados em terras americanas, que, em algum instante, conseguiram acesso à integrantes do time titular de Trump para a explicitação da dinâmica nacional por intermédio de narrativas diferentes, paulatinamente desqualificadas e destronadas.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *