Ensino superior e carências brasileiras
Gilmar Mendes Lourenço.
Resultados apresentados pelo relatório Education at Glance 2025, produzido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no âmbito do Programa de Indicadores dos Sistemas Educacionais (INES), referentes ao ano de 2024, demonstram a pronunciada distância entre o ensino superior brasileiro e o das nações avançadas e emergentes.
A informações nacionais, utilizadas para a mensuração dos indicadores pela OCDE, originam-se do Censo Escolar e Censo da Educação Superior (CES), efetuado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), além de pesquisas domiciliares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Apesar de aplicar 4,4% do produto interno bruto (PIB) em educação pública, por ano, acima da média da OCDE, estimada em 3,6% do PIB, o Brasil se notabiliza pela inadequada alocação e emprego pouco satisfatório dos recursos orçamentários reservados aquilo que se convencionou rotular como a principal variável antecedente do progresso econômico e do bem estar social.
Enquanto as verbas aportadas na educação básica (fundamental e médio) correspondem a 1/3 do padrão OCDE, os gastos médios por estudantes das universidades públicas – ainda com reduzido contingente de graduados ante o tamanho e as especificidades da demanda -, em razão de incontáveis pressões, em sua maioria de natureza corporativa, praticamente se igualam aos dos estados daquela entidade, avaliados em US$ 15 mil por ano, para cada aluno em regime integral.
Esse paradoxo representa uma das raízes da perpetuação da desigualdade social nacional, configurando uma espécie de transferência camuflada de renda, ou mesmo de financiamento, da população vulnerável, subordinada ao aprendizado em estabelecimentos escolares limitados, em múltiplos sentidos, em favor da educação gratuita recebida notadamente por membros do topo da pirâmide social.
Ainda assim, as estatísticas agregadas do ensino superior indicam um cenário nada animador. Apenas 24% da população nacional do pedaço entre 25 e 34 anos de idade ostentam diploma de graduação de terceiro grau, contra 49% dos pertencentes à OCDE.
Enquanto somente 16% dos formados brasileiros originam-se de blocos com expressivo efeito multiplicador em inovação, particularmente ciência, tecnologia, engenharia e matemática (CTEM), versus 23% da organização global intergovernamental (30%, Grécia, 28%, Índia, e 27%, Chile, por exemplo), 34% provém de administração, direito e outras formações ligadas a negócios (23%, OCDE), e 8% emergem de artes, humanidades, ciências sociais e jornalismo (22%, OCDE).
Menos da metade dos acolhidos na educação superior chegam a completar a graduação em até três anos depois do tempo programado, no Brasil, contra 70%, na OCDE, sendo 38% versus 58%, nas áreas de CTEM, e 46% versus 74%, no campo da saúde.
Mais do que isso, 25% dos brasileiros desistem da faculdade no primeiro ano, para 14%, na OCDE, o que sugere a inferência de absoluta desorientação profissional e/ou diminuta maturidade dos discentes para a definição inicial de carreira, tida, na maior parte dos casos, como irreversível.
Mesmo com a constatação de variação de 11,2% ao ano na quantidade de pessoas com mestrado ou titulação equivalente, entre 2019 e 2024, próxima dos 12% verificados nos membros da OCDE, esse status abrange apenas 1% dos jovens da nação, o mesmo patamar de 2019.
Para uma média planetária de 16% da camada populacional entre 25 a 34 anos, trata-se do menor nível apurado entre as 44 nações objeto da pesquisa, ladeado por Costa Rica e Indonésia, contra 39%, de Luxemburgo, 31%, da Polônia, 29%, da Eslováquia, 27%, da Croácia, e 26%, da França, 17%, do Reino Unido, 15%, da Alemanha, e 11%, dos Estados Unidos, que compõem o top 8.
Pior, a despeito do avanço verificado desde a pandemia de Covid-19, aproximadamente 24% da massa de pessoas entre 18 e 24 anos nem estuda nem trabalha, sendo pejorativamente categorizados como grupo “nem-nem”, ante 14% da OCDE, o que consubstancia forte abalo no estoque e fluxo de capital humano e o delineamento de potenciais problemas sociais.
Ainda que tendo experimentado o segundo maior declínio nesse corte de observação, de 30% para 24%, entre 2019 e 2024, perdendo apenas para a Itália, que encolheu 8 pontos percentuais, no mesmo período, o Brasil figura na quarta pior posição entre a 41 nações acompanhadas no quesito, melhor somente que Colômbia (27%), Costa Rica (31%) e África do Sul (48%). Na América do Sul, o país é suplantado pelo Peru (21%) e Chile (20%).
O mais grave é que tal anomalia pode ensejar a montagem de um círculo vicioso, a partir da intensificação do retardo do ingresso dos jovens na dinâmica laboral, do comprometimento da construção e acumulação diversificada de experiência, talentos e relações interpessoais, do desembarque e permanência na informalidade e da obtenção de menores remunerações.
A esse respeito, o levantamento apurou pronunciada disparidade de renda entre o elenco de diplomados e os não agraciados com um canudo, sendo de 148%, no Brasil, e 54%, na OCDE, elemento revelador do fenômeno que conjuga insuficiência e supervalorização de pessoas qualificadas, em um ambiente crônico de diminuto e/ou inadequado preparo da força de trabalho.
Na verdade, a estrutura elitista e custosa das universidades controladas e bancadas financeiramente pela União e entes subnacionais no Brasil padece do descaso com a necessidade de sintonia fina entre ensino, pesquisa e extensão e da prevalência de matrizes curriculares rígidas e dissociadas das demandas do mundo científico e corporativo.
Já, na rede da iniciativa privada, apegada aos recursos indiretos propiciados pelas incursões inclusivas oficiais, prevalece a priorização de economias de escala na operação, o que configura o sequestro “voluntário” por atividades essencialmente à distância, em geral de qualidade inferior às presenciais e, principalmente, heterogêneas e dedicadas ao preenchimento das lacunas deixadas pelas instâncias públicas no encampe dos alunos mais pobres.
Aliás, conforme o CES, em 2024, o número de alunos inscritos à distância suplantou, pela primeira vez na história, os matriculados presencialmente, totalizando 5,2 milhões (51% do total), contra 5 milhões (49%). Para se ter uma ideia do tamanho da engorda do não presencial, a quantidade e relação era de 1,3 milhão (16,7%) e 6,5 milhões (83,3%), respectivamente, em 2014.
O extraordinário avanço do ensino à distância, sem controle de qualidade, pode ser comprovado pelo exame do indicador volume de alunos por professor e, por extensão, o descompasso entre os ambientes e sistemas de aprendizagem público e privado, no Brasil, chegando a 10, nas governamentais, e 62, nas instituições particulares, para 15 e 18, respectivamente, no clube da OCDE.
Segundo o CES, o país contava com 9,9 milhões de discentes matriculados na educação superior, em 2023, sendo 79,3%, em escolas privadas. Levando em conta somente os novos estudantes matriculados, 73% optaram por cursos à distância, nas entidades particulares, contra apenas 15%, nas públicas.
Como se vê, a perversa concatenação entre o endereçamento da formação pública ao andar de cima do edifício social e a disseminação da transmissão e produção de conhecimento de precária eficiência ao piso da pirâmide vem amparando a veemente negação do ensino focado na inclusão e eficiência.
Por tudo isso, no terreno propositivo, parece inescapável a promoção de radical rearranjo das escolhas públicas, com a perseguição do fortalecimento do ensino básico e técnico, eternos perdedores no estabelecimento de fatias orçamentárias, e a restauração da excelência universitária.
Ressalte-se que a educação técnica, mais importante barreira à evasão e à ampliação do conjunto “nem-nem”, laço entre escola e ocupação, garantia de oferta de mão de obra qualificada e componente de propulsão social, responde por apenas 13% dos discentes matriculados no ensino médio versus 40% na OCDE.
Ainda que de caráter incipiente, a reforma do médio, abarcando o alargamento da educação técnica-profissionalizante com flexibilização curricular, já contabiliza alguns discretos ganhos na articulação entre preparação de estudantes e contratação de aprendizes. As matrículas neste segmento passaram de 8%, em 2019, para 14%, em 2024, contra 42% da OCDE.
Em que pese o caráter positivo e até celebrativo, essa conquista também tem sido grandemente influenciada pela recuperação do emprego, motivada pela vitalidade da demanda doméstica, catapultada pela multiplicação dos desembolsos públicos com os programas de transferência direta de renda, com reduzidas chances de sustentação fiscal em médio e longo prazo.
Urge também a reformulação e desdobramento do paradigma acadêmico, por meio da atenção e estímulo à convivência harmônica entre pesquisa de base e formação direcionada à abordagem das peculiaridades e vocações regionais, com a correspondente inserção da formação técnica e profissionalizante, em simultâneo à implantação de instrumentos contemporâneos de avaliação das atividades.
Igualmente nobre seria a discussão do arcabouço de financiamento, em condições, na esfera pública, de autonomia de gestão com despojamento de ranços ideológicos, amparado na contratação de parcerias e cobrança de aportes dos beneficiários com rendimentos mais elevados.
Na mesma direção, é crucial o deslocamento da preponderância exercida pela dimensão do total de dispêndios com salários e a inclusão e/ou aprofundamento da interferência das variáveis de desempenho, notadamente a proporção de concluintes, a empregabilidade e a aderência e penetração social dos estudos e pesquisas.
Quanto às instituições particulares, afigura-se fundamental a elaboração de um marco regulatório que contemple a ampla transparência no acesso aos dados, informações e indicadores internos, relativos à qualidade do ensino ministrado, e aos laços com a comunidade empresarial, de forma a maximizar a presença e participação dos egressos no mercado de ocupações.
Por fim, soa imprescindível a atualização dos critérios de escolhas dos administradores das instituições e de estímulos à capacitação e aperfeiçoamento contínuo dos professores, incluindo a valorização salarial, dado que metade e 2/3 dos que trabalham no médio e nos últimos anos do fundamental, respectivamente, não possuem licenciatura na disciplina ministrada.
Até porque, o que predomina na educação superior do país é o substancial descompasso entre a expansão quantitativa no acesso, constatada na disponibilidade de vagas, matrículas e até diplomas, e o conhecimento adquirido pelos alunos e respectiva conexão com o setor produtivo e/ou iniciativas empreendedoras.
Em circunstâncias cada vez menos analógicas e mais digitais, em época de absorção, apropriação e disseminação da inteligência artificial, o crescente entrelaçamento da educação com as especificações do sistema econômico constitui condição sine qua non à transformação da dedicação aos estudos em trabalho, renda e oportunidades de mobilidade social.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.


