Orçamento público e os deuses das finanças

Orçamento público e os deuses das finanças
Gilmar Mendes Lourenço.

Cálculos do Fundo Monetário internacional (FMI), elaborados com critérios metodológicos que oportunizam a comparabilidade dos dados e informações preliminares entre os diversos países, atestam que a dívida pública bruta brasileira, incluindo as três instâncias da federação (União, estados e municípios) estaria em 91,4% do PIB, contra 73,9% da média dos emergentes, que, por sinal, disparou com a pandemia de Covid-19.

Ainda conforme os sofisticados exercícios de futurologia realizados pela entidade multilateral, o endividamento governamental do Brasil atingirá 95% do PIB, em 2026, versus 82% do PIB, em 2022, e começará a declinar somente a partir de 2030, quando chegará a 98,1% do PIB.

Essas estatísticas assustadoras configurariam uma espécie de proximidade do fim do mundo por aqui? Ou ainda há margem de manobra para a construção e/ou pavimentação de trechos rumo à sonhada estabilização e descida da relação endividamento/PIB, tão decantada pelos economistas e desesperadamente desejada pelos mercados.

Antes de qualquer diagnóstico prematuro que permita organizar respostas, mesmo que provisórias, a essas duas indagações, parece conveniente apreender a marcha tortuosa da gestão macroeconômica nacional, ao longo das últimas quase três décadas, e descrever e discutir aspectos relevantes do famoso tripé, lançado no princípio de 1999.

Amparado no cumprimento de objetivos de geração de vultosos superávits primários (receitas menos despesas, exceto juros) nas contas públicas, no estabelecimento e persecução de metas para a inflação anual e na livre variação da taxa de câmbio, o tripé merece ser compreendido como elemento indispensável ao manuseio racional dos instrumentos à disposição dos elaboradores de políticas conjunturais e estruturais.

Convém recordar que, em sua concepção, preparação e aplicação, interferiram propósitos de ajustamento e aprimoramento da estratégia de desinflação, desencadeada com a implantação do Plano Real, em março de 1994, ancorada na Unidade Real de Valor (URV), indexador ou “quase moeda” que permitiu a substituição  – sem as incursões intervencionistas prevalecentes no passado, deliberadas na “calada da noite” – de um ambiente dominado pela hiperinflação por um estágio de escalada consistentemente cadente dos índices de preços.

A ideia básica consistia na preservação da estabilidade inflacionária e, por extensão, da previsibilidade no cálculo e tomada de decisão dos agentes econômicos, por meio do desaparecimento, ou ao menos amenização, das tensões de demanda, oriundas predominantemente dos descalabros na condução das finanças governamentais, convencionalmente qualificados como fragilidade fiscal e financeira do setor público, que, no limite, conduziam à falência técnica do estado desenvolvimentista (coordenador, indutor, financiador e provedor).

O modelo também preconizava a minimização dos riscos de instabilidade no balanço de pagamentos, beneficiada pela mobilidade cambial, monitorada pela autoridade monetária visando à neutralização de eventuais ataques especulativos, e a fixação da dimensão da taxa de juros básica em consonância direta com o comportamento da espiral de preços dentro dos limites definidos pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Persistem reduzidas dúvidas quanto ao caráter suficientemente robusto desse arranjo, habilitado ao gerenciamento de não poucos fatores de perturbação que emergiram em diferentes momentos da história recente associados a anomalias políticas e/ou econômicas.

Só a título de exemplo, a fortaleza do paradigma foi testada e aprovada por ocasião do choque cambial do princípio de 1999, durante a empreitada de concretização do complexo calendário eleitoral de 2022, e na sustentação da transição política, sem traumas, do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) para Lula 1, em janeiro de 2023, em condições de extraordinário exercício da democracia.

Mais do que isso, em sendo enriquecido, a partir da adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), criada em maio de 2000, o manejo sincronizado dos três eixos da política econômica interferiu de maneira determinante na alteração do patamar de crescimento do produto interno bruto (PIB) nacional, que passou de 2,4% ao ano, entre 1995 e 2002, para 4% a.a., entre 2003-2010.

Decerto que, além da preservação do programa conservador e transparente, herdado do governo anterior, pesaram, para aquele surto expansivo, a maturação das reformas institucionais plantadas na década de 1990, em especial a abertura comercial, as privatizações e as desregulamentações, e dos programas oficiais de transferência direta de renda à população vulnerável, e o bônus internacional, expresso na subida exponencial da economia chinesa, em especial após o ingresso na Organização Mundial do Comércio (OMC), em dezembro de 2001.

Por essa ordem de funcionamento, as entradas líquidas de recursos estrangeiros, derivadas dos enormes e crescentes saldos positivos da balança comercial e dos saltos nos investimentos diretos (destinados à hospedagem em ativos financeiros, incorporação patrimonial e construção de plantas), com breve interregno durante a crise do subprime, em 2008-2009, “caíram como uma luva”.

De um lado, os dólares excedentes do comércio e do movimento de capitais facilitaram a execução dos compromissos com a responsabilidade fiscal, o que resultou na concessão do selo investment grade ao país, pelas principais agências globais de classificação de risco, em 2008.

De outro, a apreciável corrente de moeda externa sobrante atendeu às intenções oficiais de moldar, reconhecer e viabilizar um estilo de financiamento do crescimento direcionado primordialmente à absorção doméstica, principalmente ao consumo privado.

Decerto que o alongamento da expectativa de vida desse padrão expansivo esbarra em alterações, ocasionais ou perenes, nos ventos soprados pelo mundo e, o que é pior, nas chances, em maior ou menor grau, de adoecimento do estado, principalmente na ausência de aperfeiçoamentos institucionais voltados à preservação da saúde ou vigor do paciente, dada a natureza finita dos haveres extraídos compulsoriamente da sociedade como impostos, taxas, contribuições e tarifas.

A eliminação desse cenário virtuoso coincidiu com a insistência da aliança hegemônica de poder, brindada com respaldo popular consagrado nas urnas, no aprofundamento das providências contra cíclicas, empregadas no decorrer da instabilidade de 2008 e 2009, só que em tempos exigentes de revisão de procedimentos fiscais mais frouxos.

No entanto, em vez da demonstração de postura focada na reintrodução da racionalidade na condução do orçamento público, o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014) foi caracterizado por notório abandono do compromisso de estabilidade econômica, apoiado em disciplina fiscal.

Ao contrário, a priorização da lógica política em detrimento das imposições de esforço fiscal, centrada principalmente nas demandas subjacentes aos interesses das próximas eleições, forçou, sob o manto protetor de uma “Nova Matriz Econômica”, impregnada de pautas retrógradas, a adoção de atitudes populistas na repressão dos focos de inflação, baseada em interferência direta nas tarifas públicas, no câmbio e nos juros, com direito à ocultação dos fatos reais, mediante o uso e abuso de manipulações na contabilidade do governo.

Paradoxalmente, os crimes demarcados como pedaladas fiscais deixaram a própria comandante, recém reeleita em 2014, em “maus lençóis”, dado que o novo Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, planejava um choque ortodoxo, ancorado na existência de discreto superávit primário, quando, de fato, o déficit público consolidado de 2014 ficou próximo de 0,6% do PIB.

Tanto que, em menos de dois anos, com a nação mergulhada na maior recessão da época de república, em meio à generalizada insatisfação popular – com a reversão das conquistas sociais acumuladas entre 1994 e 2011/12, a flagrante malversação dos recursos públicos e os não poucos escândalos de corrupção, envolvendo executivo, legislativo e empresários -, a gerente Dilma “caiu de podre”. O impeachment foi a “pá de cal” conferidora de roupagem institucional ao desfecho.

Desde então, o desequilíbrio fiscal e financeiro da administração pública, em suas três esferas, recobrou a condição de protagonista no elenco de problemas nacionais crônicos, cujo equacionamento requer árduo esforço de articulação, essencial ao desmanche da cultura patrimonialista e corporativista impregnada no estado brasileiro, montada criteriosamente para suprimento das vontades os ocupantes da cobertura do edifício político e econômico.

As iniciativas de restauração dos aspectos institucionais endereçados ao alcance do equilíbrio fiscal, levadas a cabo no intervalo tampão de Michel Temer, entre maio de 2016 e dezembro de 2018, se restringiram à reformulação da Lei de Responsabilidade das Estatais e a aprovação da Lei do Teto de Gastos, que permitia a correção anual das despesas primárias do poder central pela inflação pretérita.

Tal preceito foi solenemente desrespeitado no transcorrer da “gestão das trevas”, entre 2019 e 2022, exclusivamente empenhada na produção de atritos com oposição, imprensa, judiciário e democracia e em ferrenha campanha pela reeleição do incumbente, com a concretização da zeragem, ou até superávit, orçamentário, às expensas de inúmeros desrespeitos à Constituição, como o calote dos precatórios, devidamente autorizado pelo legislativo, diga-se de passagem.

Na direção de Lula 3, o teto foi substituído, ainda em 2023, pela Nova Regra Fiscal, menos engessada que a antecedente e alinhada ao desempenho da arrecadação, que, em clima de gastança desenfreada, atrelada a intenções eminentemente eleitoreiras, foi afrouxada antes de completar o primeiro aniversário de vigência.

Ademais, tem incitado malabarismos, por parte do time do Ministério da Fazenda, abarcando contingenciamentos e corrida desesperada por elevação das receitas, em clima de exaustão da capacidade de suporte da sociedade a novos aumentos de carga de tributos.

Considerando que a nação comportou arrecadação total de 32,3% do PIB e déficit público nominal de 8,5% do PIB, em 2024, é instantânea a percepção de que 40,8% da renda gerada foi apropriada pelo estado, sem a contrapartida na provisão, minimamente razoável, de infraestrutura econômica e social.

Esse descompasso entre ferocidade arrecadatória, dominante entre os países de renda média, e insuficiente e inadequada prestação de serviços públicos, reúne e encobre as perversas engrenagens da concentração de renda, escamoteada pela transferência legal de recursos dos pobres para os ricos, o que torna factível a ocupação de “palácios” e/ou a frequência regular de salas VIP nos aeroportos.

Por tudo isso, afigura-se imprescindível o resgate dos instrumentos de gestão pública, com o emprego de foco perene na eficiência do gasto, redução de desperdícios e fechamento dos ralos de escoamento das verbas, escorados em rigoroso combate à corrupção, absoluta transparência orçamentária e criteriosa revisão das alocações, privilegiando aquelas alinhadas com a construção de requisitos ao crescimento de longa maturação.

Também indispensável é a ressurreição das discussões a respeito de vinculações e indexações – se despojando de autênticos      “animais sagrados” que não resistem, dentre outras coisas, à nova dinâmica demográfica e laboral -, espelhada no reexame das políticas de estado em uma perspectiva contemporânea de acolhimento e não extinção da proteção social, consagrada na Carta Magna de 1988.

Há ainda a premência de apreciações pormenorizadas dos gastos tributários (14 itens de renúncia, que começam com o Simples Nacional, passam por deduções do Imposto de Renda Pessoa Física e terminam com benesses ao setor automotivo), que, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), devem representar mais que o triplo dos aportes ao Bolsa Família, aproximadamente metade das despesas da previdência do INSS e mais de duas vezes o montante dos investimentos públicos federais, em 2025.

Esse tipo de incentivo saltou de 3,5% do PIB, em 2011, para 5% do PIB, em 2025, e, por dispositivo constitucional (Emenda Constitucional 109/2021), deve ser submetido a ajustes e ações para anotar, no máximo, 2% do PIB, até o exercício de 2029.

Por fim, cabe enfatizar a urgência de reparos no acréscimo em “velocidade da luz” dos gastos financeiros do governo, justificado classicamente pelo progressivo descontrole da contabilidade primária, que estaria na raiz dos juros escorchantes e do voo longo da dívida pública.

Nesse caso, há duas questões que precisam ser apresentadas e enfrentadas. A primeira delas, portadora de conteúdo supostamente técnico, teria a ver com a lógica funcional do regime de inflação, que, ao mirar metas bastante inferiores ao comportamento histórico dos níveis de preços no varejo da era do Real, com média de 7,12% a.a. (do IPCA), entre julho de 1994 e setembro de 2025, simplesmente ridiculariza qualquer inclinação à vigorosos cortes nos juros.

O segundo problema assenta-se em flagrante resistência à queda constatada na cadeia de juros nominais no Brasil, fruto da forte concentração bancária e/ou ausência de competição e a poderosa influência, ainda que tácita, dos detentores dos bônus da dívida pública nas escolhas do Banco Central (BC).

A inversão da proeminência do rentismo na órbita financeira, exposta na explosão dos ganhos de tesouraria das empresas e na fragilização dos resultados fiscais do governo, deveria preencher lugar especial na agenda de assuntos preferenciais do diálogo político, pois abocanha mais de R$ 950 bilhões por ano de dinheiro público, o que equivale a quase 8% do PIB, ou o montante pago a mais de 40 milhões de beneficiários do INSS.

Em não sendo isso feito, aparecerá o imperativo de repetição dos expedientes-padrões para conferir roupagem legal a novos estouros ou calotes orçamentários. Até porque, os deuses das finanças asseguram que o gasto público não declinará em 2026. Afinal, quem bancará as farras das elites políticas disfarçadas em mais uma festa da democracia?

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

 

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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