Desindustrialização brasileira: “o espetáculo não pode parar”

Desindustrialização brasileira: “o espetáculo não pode parar”
Gilmar Mendes Lourenço.

O documento World Economic Outlook, elaborado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e disponibilizado em outubro de 2025, negligencia a utilização de qualquer tipo de polidez na avaliação do esforço de industrialização empreendido pelo Brasil.

Ao cotejar a forma e o conteúdo das iniciativas nacionais, com a experiência levada a cabo pela Coreia do Sul, por exemplo, os técnicos da entidade multilateral as categorizam como expedientes a serem evitados na caminhada em direção à consolidação duradoura do crescimento fabril.

Ressaltam ainda que o projeto brasileiro tem historicamente se notabilizado pelo protecionismo, amparado no emprego de barreiras tarifárias e não tarifárias às importações de matérias primas e bens acabados, e a preservação de apreciável volume de benesses fiscais, tributárias e financeiras destinado à viabilização de vantagens comparativas à implantação e operação de estabelecimentos estatais e privados.

O caso mais gritante compreende a Zona Franca de Manaus, apoiada em vultosos incentivos à manufatura de bens duráveis de consumo (motocicletas, televisores, aparelhos de ar condicionado, dentre outros), dissociada da realidade econômica e ambiental regional e distante dos pontos de destino da produção, localizados no Sudeste e Sul do país.

Sem contar a concessão de subsídios para atendimento de atividades dotadas de pronunciada capacidade de pressão nas instâncias políticas e burocráticas do executivo e legislativo, em sua maioria destituídas de compromissos com inovação e produtividade, que poderiam ser capazes de recompor as condições de encaixe brasileiro no estágio de multiplicação das transformações tecnológicas globais.

Diga-se de passagem, que esse serviço de luxo, oferecido pelo estado às forças empresariais, tem funcionado, desde a década de 1930, como salvaguarda ou cobertura de incontáveis ações de eficiência no mínimo discutível, com alterações cosméticas em fases de determinadas trocas de correntes políticas hegemônicas.

Decerto que se faz necessário descontar, nos exercícios de entendimento e incorporação das advertências do FMI, o desavergonhado conservadorismo explícito em suas análises científicas e proposições, refém das orientações emanadas dos países ricos.

O organismo atravessa autêntico dilema identitário, com atuação um tanto quando deslocada do clima geopolítico de rechace à globalização, tocado pela disputa entre Estados Unidos (EUA) e China, a ponto de, em obediência ao chefe de estado norte-americano, Donald Trump, ter reaberto as torneiras de socorro financeiro à cambaleante economia da argentina.

Porém, genericamente, o veredito do Fundo desabona as incursões intervencionistas dos aparelhos estatais, no sentido de estimular o alargamento da densidade das matrizes industriais das nações em desenvolvimento, com instrumentos tipicamente inclinados à substituição de importações.

A comprovação da falácia da tese de internalização virtuosa repousaria, no caso brasileiro, na verificação de que o complexo industrial responde por apenas 0,9% das exportações e 1,2% do valor adicionado setorial global, segundo cálculos efetuados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Não por acaso, a nação padece, durante pelo menos as últimas três décadas, da patologia representada por intensa marcha de “desindustrialização precoce” – o que causa o estacionamento na “síndrome da renda média” -, caracterizada pelo persistente declínio da participação da classe de processamento fabril na composição do produto interno bruto (PIB), atestada pelos dados apurados pelo Sistema de Contas Nacionais (SCN), do IBGE, sem que houvesse compensação qualitativa por outras áreas.

O peso do segmento de transformação no resultado da atividade econômica declinou da média de 25%, na primeira metade dos anos 1990, ancorado nos efeitos da abertura comercial, privatizações, reestruturação defensiva das empresas e desinflação, advinda do Plano Real, para cerca de 15%, no triênio 2000-2003.

Essa baixa derivou essencialmente dos estragos provocados pela supervalorização da moeda nacional, esteio principal da tática de ajustamento macroeconômico, particularmente entre 1994 e 1998, especialmente nas decisões de produção e investimentos.

Depois da recuperação de fôlego no restante do decênio, quando registrou contribuição média de 16,5%, fruto da maturação da depreciação do real vinculada à instauração do regime de câmbio flutuante, em janeiro de 1999, das reformas institucionais aprovadas na década precedente, dos programas governamentais de transferência direta de renda, do bônus internacional, produzido pela escalada da demanda chinesa, o parque industrial amargou novo curso descendente, entre 2011 e 2020, quando contabilizou geração média de 12,5% do PIB.

A inflexão pode ser imputada aos inúmeros equívocos subjacentes à insistência na gestão macroeconômica centrada na perseguição da estabilidade da inflação via aplicação do populismo cambial, tarifário e monetário e perpetuação da política de desoneração tributária, adotada no decorrer da crise de 2008-2009, precipitada pela quebra do segmento hipotecário de segunda linha dos EUA.

A insatisfação social com o desencadeamento de um processo de reversão dos ganhos de inclusão e ascensão, conquistados entre 1994 e 2011, ocasionados pela eclosão da maior e mais longa recessão da história da república, e a escancarada malversação de haveres públicos, por parte de uma articulação promíscua celebrada entre as bandas podres do governo, congresso e comunidade empresarial, precipitou uma crise institucional que levou à cassação do mandato da chefe de estado, em agosto de 2016.

Na sequência da gradativa eliminação das restrições externas e endógenas, impostas pela convivência perversa com a pandemia de Covid-19, especialmente em 2020, a indústria experimentou subida de participação para 13,9%, em 2021, e assumiu degrau de 15,1%, em 2022 e 2023, explicado primordialmente pelo avanço do consumo interno, impulsionado pelas ações oficiais de proteção social.

No entanto, o indicador voltou a recuar em 2024 (14,4% do PIB), como reflexo notadamente da precária capacidade competitiva da indústria na fronteira global, fruto da abdicação da formulação e discussão, por atores públicos e privados, de um programa de prolongada maturação, escorado na priorização da elevação do investimento, focada na eficiência, notadamente com a iminência de fechamento da janela demográfica.

O mais grave, porém, é que, ao contrário das nações avançadas e emergentes, marcadas pelo encolhimento da fatia relativa da indústria no bolo agregado, em favor dos serviços de aprimorado conteúdo tecnológico, no Brasil a desidratação do pedaço nobre da economia vem acontecendo em prol de ramos carentes de dinamismo modernizante, com reduzida qualificação do fator trabalho e, por extensão, menores remunerações.

Tanto que a participação do ramo “informação e comunicação” – a fração considerada de primeira camada do setor de serviços, por pertencer ao time da fronteira tecnológica (digitalização, robótica e inteligência artificial) – diminuiu de 4,4%, entre 2001 e 2009, para 3,5%, entre 2010 e 2020, e 3,4% no quadriênio 2021-2024, em razão da implementação do paradigma expansivo ocupado com o curto prazo que, na melhor (ou pior) das hipóteses, permite apenas a colheita de frutos eleitorais.

Em curiosa contraposição, a importância de “atividades financeiras, seguros e serviços correlacionados”, passou de 6,8% do PIB, em 2000, para 6,8%, em 2010, 6,9%, em 2020, e 7,2%, em 2024, corroborando a argumentação geral do Nobel de Economia, em 2001, Joseph Stiglitz, dos “lobos devorando os cordeiros”.

Em não sendo feito o privilegiamento das inversões voltadas à elevação da produtividade, as estatísticas conjunturais começaram a sinalizar um quadro de deterioração.

A produção industrial caiu -0,4%, em setembro de 2025, em confronto com agosto, conforme a Pesquisa Industrial Mensal – Produção Física (PIM-PF), do IBGE, o que fez a média móvel trimestral permanecer em modo de estagnação, com variação de 0,1%.

As quedas mais expressivas ocorreram em produtos farmacêuticos (-9,7%), brecando a marcha de quatro meses seguidos de expansão, quando subiu 28,2%; veículos automotores reboques e carrocerias (-3,5%), suprimindo parcela da ampliação de 3,7%, constatada entre julho e agosto; e extração de minerais (-1,6%), a segunda consecutiva.

Ademais, com variação acumulada de 1%, no ano, e 1,5%, em doze meses encerrados em setembro de 2025, a atividade fabril nacional situou-se em nível 2,3% superior ao da etapa anterior à pandemia de covid-19 (definida como o mês de fevereiro de 2020) e 14,8% inferior ao pico, atingido em maio de 2011.

Em semelhante toada, os itens de performance levantados por sondagem da CNI revelam inquestionável desaceleração da indústria de transformação durante 2025, com contração de -2,4% e -4,4%, na massa de salários e nos rendimentos médios reais, respectivamente, entre janeiro e setembro, em relação ao mesmo período de 2024.

Só no mês de setembro, a utilização da capacidade instalada, o faturamento real e o emprego caíram -0,4%, -1,3% e -0,2%, respectivamente, perseverando na tendência apurada em agosto.

Por uma observação no terreno do conflito distributivo, é fácil apreender que a indústria se mostrou presa fácil da avalanche da financeirização, brotada do Consenso de Washington, em 1989, que definiu os critérios de cumprimento da cartilha do neoliberalismo.

Sob o disfarce da natureza imprescindível das reformas em prol das vontades do mercado, capitaneadas por ortodoxia fiscal, desestatização, redução da dimensão do estado, flexibilização do regramento trabalhista e manutenção dos juros elevados, as firmas industriais aceitaram a maximização do rentismo especulativo em troca do acréscimo dos seus ganhos não operacionais, também conhecidos como lucros de tesouraria.

Em quase todos os momentos predominou a visão liberal e o sepultamento de ideias desenvolvimentistas, traduzidas no planejamento tocado pelo estado, como as do industrial Roberto Simonsen (1889-1948), e o repudio a pensamentos e denúncias como as de Antônio Ermírio de Moraes (1928/2014), comandante de um império a partir do Grupo Votorantin, que destacou, em não poucas ocasiões, o caráter “pornográfico” dos juros brasileiros.

Para a confirmação do conservadorismo retrógrado ou de convivência pacífica e harmônica com o mundo das finanças, basta observar a escolha feita, pelo novo presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, de Roberto Campos Neto, ex-chairman do Banco Central (BC), para comandar o Conselho Superior de Economia da entidade.

Sem esquentar a cadeira, Campos Neto já foi defendendo a premência da busca de “soluções privadas para embaraços públicos”, por meio da execução do ajuste fiscal pelo lado das despesas. E a vida industrial que continue: escancaradamente liberal, em tempos de bonança, e intransigentemente keynesiana, em épocas de vacas magras.

Mesmo se o estado – que, obeso e lerdo, deve ser substancialmente reduzido e/ou substituído pela lógica da eficiência privada – desejar prosseguir no derrame de contribuições financeiras, diretas e indiretas, a família, eternamente agradecida, persistirá no aprofundamento da missionária evangelização da doutrina crítica.

Trata-se de colossal apologia à assimetria de comunicação, ancorada em informações ruidosamente imperfeitas, com foco benevolente na virtude das árvores, em detrimento do olhar sobre a química ou verdade da floresta, que só encontra justificativa no fato de que, como no verso de “piruetas”, de Chico Buarque, “o espetáculo não pode parar”, repleto de encenações e apresentações de ferramentas por lideranças empresariais, assíduas frequentadoras dos corredores do poder.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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