Imposto de Renda: conquista civilizatória e reacomodação dos astros

Gilmar Mendes Lourenço.
Apesar de representar somente um primeiro passo no sentido da implementação da progressividade tributária no Brasil, a aprovação, por surpreendente unanimidade na votação pelo Plenário da Câmara dos Deputados (493 a zero), do projeto de Lei de ampliação da isenção do pagamento do imposto de renda (IR) para rendimentos mensais de até R$ 5 mil, e desoneração progressivamente menor para até R$ 7.350, consubstancia um progresso civilizatório.
Por uma retrospectiva histórica virtuosa, esse feito, que deve ser corroborado pelo Senado da República, traduz a ampliação da renda líquida disponível das famílias predominantemente da classe média, expediente comparável aos pulos estruturais conferidos pelo Plano Real, a partir de 1994, e a simplificação dos impostos indiretos, definida em 2024.
A diferença fundamental reside no timing das facilidades, pois, enquanto a desinflação acoplada ao Real e a diminuição do IR abrangem transferências instantâneas de ganhos à população com menor capacidade de enfrentamento do dragão inflacionário e do leão arrecadatório, as vantagens derivadas da reforma da tributação do consumo serão absorvidas entre 2026 e 2033, período estipulado para a transição sem traumas entre os dois regimes e a troca completa da arrecadação na origem para o destino final.
O entendimento da obtenção da adesão legislativa total ao IR menor, para o piso e a faixa intermediária da pirâmide social, coincide com uma autêntica virada de jogo da conjuntura política nacional, notabilizada pelo enfraquecimento do extremismo aloprado de direita, o princípio de crise de identidade do restante da direita e fração do centro, e o fortalecimento das inclinações de cunho progressista.
A análise política mais otimista argumenta que, por caminhos tortuosos e pavimentos esburacados, vem sendo edificado o inesperado resgate ou criação das circunstâncias de viabilização da candidatura à reeleição de Lula à cadeira de presidente da república, em 2026, depois da corrosão de popularidade enfrentada desde fins de 2023.
É interessante assinalar a constatação de razoável interregno de “lua de mel”, vivida entre governo federal e sociedade, mediada e até chancelada, não poucas vezes, por uma retaguarda legislativa marcada pela imprevisibilidade, por abarcar segmentos ideológica e programaticamente díspares, em parte ocupantes de postos-chave no primeiro escalão do executivo, numa concertação partidária que ultrapassava os estritos limites da frente ampla, vitoriosa no segundo turno do pleito de 2022.
Não obstante a persistência do ambiente de polarização, magnificado com os desdobramentos institucionais da trama antidemocrática que resultou no episódio de oito de janeiro de 2023, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição, acordada entre mensageiros da equipe eleita e o parlamento, no final de 2022, oportunizou o desencadeamento legal de um processo de expansão fiscal capaz de garantir o prosseguimento do cenário de recuperação econômica, amparado na mistura entre subida dos gastos do governo e do consumo privado.
Mais especificamente, a reorganização e implantação esticada dos programas de proteção à população vulnerável, esfacelados pela gerência predecessora, com destaque para o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e Farmácia Popular, dentre outras iniciativas assistenciais, conferiram apreciável fôlego incremental à popularidade do novo inquilino do Palácio do Planalto, o que ensejou o encaminhamento, negociação e tramitação no Congresso Nacional de aprimoramentos de base bastante relevantes.
No front fiscal, ainda em 2023, diálogos e entendimentos maduros entre governo e legislativo propiciaram a substituição da regra de ajuste das contas denominada “Teto de Gastos”, implantada em 2017 pelo time de Michel Temer, e abandonada, na prática, sob Jair Bolsonaro, por critérios de fixação de dispêndios mais flexíveis atrelados à trajetória das receitas.
Na linha da tributação, emergiram, em 2024, acordos que levaram à já mencionada conquista da flexibilização da carga indireta, reivindicação levantada por mais de quatro décadas pelo setor produtivo, elemento essencial à transformação do modus operandi da economia nacional.
O contemporâneo arcabouço, que reproduz a experiência internacional de estados nacionais avançados e emergentes, deverá obedecer a procedimentos de passagem de oito anos, a contar de 2026, para a permuta plena de tributos em cascata, federais (IPI e PIS/Cofins), estaduais (ICMS) e municipais (ISS), por dois gravames cobrados sobre o valor adicionado: um de responsabilidade do poder central e outro de entes federados.
Contudo, a eclosão de alguns blocos de componentes de perturbações constituiu campo fértil à semeadura e colheita de consistente encolhimento da adesão social ao incumbente de plantão, em regime de reacomodação dos astros em favor das correntes ortodoxas.
Dentre os incômodos sobressaiu a insistência de não descida dos palanques – notadamente digitais, reduto das bolhas de desinformações – por parte dos representantes dos dois principais líderes políticos nacionais, em terrenos diametralmente opostos na dinâmica ideológica.
Outro embaraço exprimiu a veemente recusa do mandatário em referendar a responsabilidade fiscal, ou a perseguição do equilíbrio das finanças públicas, preconizada pelo Ministério da Fazenda, coadjuvado pelo acendimento do “fogo amigo”; e a vitória do pragmatismo de centro, nas eleições para os cargos de prefeitos e vereadores, em 2024,
Igualmente explicativo da despencada da aprovação à condução oficial foi a antecipação da corrida eleitoral, protagonizada tanto pelo postulante à renovação do mandato quanto por adversários, governadores de estado principalmente, estes em disputa pela herança e benção, de maneira aberta ou disfarçada, do candidato interditado por decisão judicial.
Também pesou a multiplicação das barreiras erguidas pelo legislativo à operação do governo, facilitadas pela abundância de haveres dos fundos partidário e eleitoral, o manejo autônomo das vultosas emendas parlamentares, que eternizam a mesquinha caça aos votos, em descompasso ou até divórcio, e, consequentemente, prejuízo à execução das políticas públicas, e o ensaio de debandada do navio governista das agremiações integrantes da retaguarda congressual de amparo flutuante às matérias e projetos enviados pelo executivo.
Porém, o motor de arranque da insatisfação coletiva repousou na ausência de interesse de formulação e oferecimento à discussão política de uma agenda programática de longo prazo para o país, destinada à restauração da capacidade de gasto e investimento do estado, destituída de pressões inflacionárias, e ao revigoramento da eficiência da microeconomia.
Em outros termos, houve o adensamento da percepção social da priorização de variáveis centradas no suprimento de desejos de curto termo, umbilicalmente ligados ao velho populismo eleitoral, em detrimento da preparação e execução de estratégias de prolongado alcance, assentadas em projetos de investimentos em educação, ciência, tecnologia e inovação, em fase, ainda que com retardo, com o novo desenho global, dominado por inteligência artificial, digitalização e robótica.
Não bastassem essas adversidades, a contabilização de equívocos de concepção e/ou comunicação, expressos no anúncio bizarro de providências de eficácia no mínimo discutíveis, voltadas à elevação da arrecadação, colaboraram decisivamente ao erguimento de um ambiente desastroso à garimpagem de simpatias ao governo, em especial a elevação da alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), a disseminação da notícia mentirosa de taxação das transações via PIX e o escândalo dos desvios criminosos de recursos das contas de aposentados e pensionistas do INSS.
Em paralelo, é fácil notar um realinhamento da atividade econômica, em resposta à intocabilidade da austeridade monetária, manejada via juros altos pelo Banco Central (BC), em contraposição – exagerada, diga-se de passagem – aos impactos da frouxidão fiscal sobre o nível geral de preços.
Trata-se de um freio de arrumação dos negócios, fortemente afetados pela inadimplência de empresas e famílias, que já começa a contaminar negativamente as expectativas dos atores. Tanto que as sondagens da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e do Comércio (CNC) vem captando o aprofundamento do pessimismo de empresários da indústria e do comércio e de consumidores.
Só que a reversão da montagem e perenização do clima adverso se deu a partir da agudização das movimentações de forças políticas conservadoras, atuantes dentro e fora dos limites geográficos do país, por meio de uma conjugação perversa de ações de membros da família Bolsonaro e do poder de contágio da doença extremista no legislativo.
Por um lado, ressalta a repercussão nefasta da articulação promiscua entre Eduardo Bolsonaro, o filho zero três do ex-chefe de estado nacional, plantado em Washington desde março deste ano, e assessores diretos do presidente dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump, com a decretação do tarifaço de 50% sobre as importações procedentes do Brasil, seguida da aplicação de sanções a autoridades do Supremo Tribunal Federal (STF) e governo brasileiro.
Tal comportamento serviu como uma devolução, aos braços e brados de Lula, da retórica de intransigente defesa da soberania, em contraposição à subserviência à tutela nacional, e abertura de flancos à pregação da doutrina de justiça social, concretizada com a radicalização das despesas públicas inclusivas e a renúncia do IR para os pobres e parte do reduto médio.
De outro ângulo, pesaram as incursões nocivas da Câmara dos Deputados com o derrame, para deliberação em velocidade da luz, com dispensa de cumprimento dos protocolos regimentais e de qualquer interlocução, de assuntos atinentes à preservação de regalias e privilégios corporativos, que, na melhor das hipóteses, podem ser considerados polêmicos.
Foi o caso de auto blindagem (ou bandidagem) contra crimes de qualquer natureza, extensivo aos dirigentes de partidos, e o perdão amplo aos planejadores e executores condenados pela tentativa frustrada de demolição da democracia, por puro inconformismo com os recados do segundo turno das urnas eletrônicas, em 2022.
O repúdio generalizado da sociedade, manifestado com a ocupação das ruas e das redes sociais, com ações pacíficas, foi abraçado pela presidência e lideranças do Senado que preferiram o afastamento ou mesmo a negação das sandices avessas ao regramento democrático endossadas pela Câmara.
Mesmo que a contragosto, os deputados, sobretudo os das fileiras da oposição, escolheram a adoção de um escape estratégico e abandonaram o “irrestrito” apoio ao seleto clube de cerca de 141 mil contribuintes (0,14% do total), que ganham acima de R$ 50 mil por mês e, presentemente, pagam apenas 2,54% de imposto, segundo contas do Ministério da Fazenda.
Mais do que isso, de olho na impopularidade, que pode ser arma mortal nas eleições de 2026, os parlamentares tiveram uma pitoresca recaída e resolveram cerrar fileiras com as 16 milhões de pessoas contempladas na proposta de isenção lançada em novembro de 2024.
O projeto prevê taxação em escala de 0,8% a 10%, para quem ganha entre R$ 50 mil e R$ 100 mil mensais, piso de 10% para ingressos totais (abarcando os financeiros, exceto os oriundos de aplicações em LCAs, LCIs, CRAs, CRIs e outros bônus) acima de R$ 100 mil por mês, e 10% para o recebimento de dividendos por um único acionista de uma mesma companhia que suplante R$ 50 mil/mês.
Com tudo isso será possível bancar os R$ 31,3 bilhões disponibilizados pelo Tesouro às classes média e pobre. Hoje, quem recebe até dois salários mínimos mensais está isento do IR devido à aplicação do desconto simplificado. Estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) revelam que o 0,1% mais rico da população, que aufere em média R$ 5,3 milhões por mês, é alcançado por alíquota efetiva de 5,7%, semelhante a que incide sobre a renda mensal de R$ 7 mil.
Decerto que na falta de correções de problemas estruturais do IR, como os diminutos intervalos de tributação, a não cobrança sobre lucros e dividendos, desde1996, a não correção automática da tabela – que expõe defasagem média acumulada de mais de 150%, desde 2014 -, cuja discussão deverá acontecer somente em 2026 (será?), e o descaso quanto à revisão dos subsídios, em atendimento a demandas de segmentos poderosos, os efeitos da atual isenção na distribuição de renda serão cosméticos e, o que, é pior, podem ser neutralizados pela inflação ao longo do tempo.
Apenas como ilustração, a vasta relação de renúncias fiscais federais, orçadas em R$ 544,5 bilhões para 2025, ou 4,8% do produto interno bruto (PIB), é dominada por regimes especiais como Simples Nacional (alíquota efetiva média de 3,3%) e Lucro Presumido (10,6%), contra 22,4% do lucro real, e servem para agradar médicos, advogados, executivos e outros profissionais de elevados rendimentos.
Em tempo. A excelente “química” ou “quebra de gelo”, estabelecida entre os presidentes Lula e Donald Trump, em lance episódico durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro de 2025, e o diálogo entre ambos, por telefone, neste começo de outubro, por iniciativa do americano, podem reforçar a tendência de realinhamento das estrelas ao refletirem a combinação de pressões empresariais e atuação eficiente dentro das quatro linhas dos canais diplomáticos.
Isso se as conversações entre os staffs dos chefes de governo forem moldadas pela minimização do confronto de palavras e fim de sabotagens aventureiras terceirizadas, na perspectiva de destravamento de debates a respeito das complexas aspirações bicentenárias mútuas, preponderantemente no terreno comercial.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.