Combo de proteção aos vulneráveis versus predadores do patrimônio público
Gilmar Mendes Lourenço.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, mensurou que a taxa de desemprego no Brasil repetiu, no terceiro trimestre de 2025, a alentadora mínima histórica de 5,6% da força de trabalho, registrada no intervalo trimestral móvel encerrado em agosto deste ano, o que equivale a seis milhões de pessoas sem trabalho à procura de ocupação.
O mesmo acompanhamento revelou estabilização da informalidade da mão de obra em degrau elevado, revelado por 37,8% da população ocupada sem carteira assinada e vínculo previdenciário, sem contar a subutilização, o que corresponde a 38,7 milhões de trabalhadores, e rendimento médio real (com desconto da inflação) de R$ 3.507, recorde da série de levantamentos, iniciada em 2012, e 4% maior que o apurado no mesmo período de 2024. O montante total de rendimentos reais também se manteve estável no maior patamar desde 2012 e cresceu 5,5% em um ano.
A natureza vigorosa e consistente da recuperação do mercado de trabalho nacional, a partir de abril de 2023, surpreende por persistir mesmo com a escalada e manutenção dos juros (primários e finais) em níveis incompatíveis com a preservação da sustentação da atividade econômica.
Não há outra explicação para tal descompasso a não ser a pronunciada compensação da austeridade monetária, praticada pelo Banco Central (BC), em nome do controle da inflação, por meio da adoção de uma política fiscal ativa, centrada na ampliação dos recursos aportados nos programas oficiais de proteção à população vulnerabilizada por múltiplos motivos, em especial a crônica apropriação do produto social por grupos privilegiados de agentes dotados de substancial poder econômico e/ou político.
Mais de ¾ da variação dos gastos federais do começo 2023 a setembro de 2025 decorre do combo que engloba a política de valorização dos salário mínimo e as transferências diretas às famílias, como previdência do INSS, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS), abono salarial e seguro-desemprego.
Paradoxalmente, o retumbante adensamento da presença e participação das iniciativas governamentais dirigidas à inclusão e mobilidade social nos orçamentos das famílias integraria o time titular dos itens explicativos da acentuada resistência das relações informais na dinâmica laboral.
Aos que tentam relativizar a expansão amparada no consumo das famílias, com a argumentação do empuxe exportador, inclusive com penetração em fronteiras geográficas alternativas ao tarifaço americano, basta mencionar o acréscimo de 2,4% das vendas externas do país, entre janeiro e outubro de 2025, e de 8% das importações, justamente em reposta à impulsão da demanda doméstica, catapultada pelos consumidores.
É claro que o arrazoado predominante nos redutos especializados sugere outro tipo de interpretação a respeito da postura da autoridade monetária, destacando que a subida e estacionamento dos juros na estratosfera traduz esforços de neutralização dos focos de inflação, produzidos pela progressiva e expressiva ampliação dos dispêndios públicos correntes, que provocam a multiplicação das necessidades de financiamento e, em consequência, do endividamento do governo.
Considerando o desaparecimento, ou ao menos a amenização, da interferência dos chamados choques de oferta (alimentos, energia, câmbio, dentre outros) – para os quais, diga-se de passagem, a estratégia de juros nas alturas não faz sequer cócegas, sendo absolutamente inócua – na espiral de preços, parece razoável recomendar ao Conselho Monetário Nacional (CMN) insistir no convencimento do Comitê de Política Monetária (Copom), do BC, para a saída do engessamento ou confinamento metodológico e a realização de uma espécie de “segunda chamada” no intocável sistema de metas de inflação, que vem se transformando em tabu.
Em sendo isso realizado, aquele colegiado chegaria facilmente à percepção de que a Selic (padroeira de todos os juros) poderia operar a 12% ao ano sem provocar maiores dissabores (ou não), e, o que é melhor, inverter a conformação de desaceleração da economia, apontada por outros indicadores quantitativos de produção e comercialização e antecedentes.
Para tanto, a instância do BC teria que, inevitavelmente, avaliar os três principais componentes determinantes do hiato de três pontos percentuais da Selic, em relação ao “adequado”, não o desejável, neste estágio, que coloca o Brasil na segunda posição internacional em juros reais, atrás somente da Turquia.
Os elementos da elasticidade dos juros primários nacionais, com desdobramentos claramente alargados sobre os diversos elos da cadeia de empréstimos e financiamentos, podem ser expressos na ascensão do desequilíbrio fiscal e financeiro do setor público, na oligopolização do sistema de intermediação financeira e na interferência política do rentismo nas deliberações monetárias.
Pelas contas do BC, o setor público consolidado acusou déficit primário de R$ 79,2 bilhões, ou 0,84% do PIB, ente janeiro e setembro de 2025 (mais que o triplo do piso de 0,25% do PIB, estabelecido pela Nova Regra Fiscal), ante desnível de R$ 93,6 bilhões, ou 1,08% do PIB, em igual tempo de 2024. Já o desequilíbrio nominal (que abarca os encargos da dívida) somou R$ 763,9 (8,13% do PIB), contra R$ 743,8 (8,59% do PIB), em idêntico período de 2024.
E por falar em encargos do passivo dos governos, os juros nominais foram de R$ 684,7 bilhões (7,28% do PIB), contra R$ 650,3 bilhões (7,51% do PIB), nos primeiros nove meses de 2024.
Nessas circunstâncias, a dívida líquida do setor público chegou a R$ 8,1 trilhões, ou 64,8% do PIB, e a dívida bruta do governo geral (DBGG), que abrange União, INSS e administrações estaduais e municipais, foi de R$ 9,7 trilhões, ou 78,1% do PIB, em setembro de 2025.
Partindo da premissa de prosseguimento da marcha para frente dos dispêndios públicos, neste final de 2025 e em 2026, algo bastante corriqueiro em ano eleitoral – até porque, ajuste fiscal se faz em começo de mandato, quando o capital político é abundante – e agudizado em tempos de polarização, o BC deveria ocupar-se em viabilizar a compressão e/ou conserto dos outros dois pontos de atritos.
Mais especificamente, diante da certeza de ausência de circunstâncias propícias ao encaminhamento de providências dirigidas à minimização dos impactos desequilíbrio das finanças públicas, em curto termo, o BC deveria encetar expedientes de correção das duas outras frentes de problemas umbilicalmente atreladas, sintetizadas na escassa concorrência bancária e ansiedade especulativa dos verdadeiros “gigolôs” da rolagem dos bônus do endividamento ou predadores do patrimônio público, também conhecidos como “time da bufunfa”.
A título de exemplo, o spread bancário (diferença entre a taxa cobrada na ponta e o custo de captação das instituições) médio subiu de 18,3 pp, em setembro de 2024, para 20,3 pp, em setembro de 2025, conforme o BC, a despeito da competição digital e do avanço das startups financeiras (Nubank, Neon, PagSeguro, PicPay e Start Bank), sendo avaliado como o mais elevado do planeta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Não obstante, soa relevante sublinhar que o estilo de reativação dos negócios em curso é eminentemente voltado ao curto prazo, diretamente associado ao atendimento de projetos eleitoreiros, e desprovido de planejamento da oferta de mecanismos capazes de melhorar as expectativas privadas, em longo prazo, e incitar a elevação robusta do investimento.
Lembre-se que o investimento constitui a variável determinante da qualidade do crescimento futuro, subordinado a escolhas do governo e da comunidade empresarial na direção da priorização da combinação entre fortalecimento do mercado interno e inserção global competitiva, em fase com a incorporação dos avanços tecnológicos em aceleração no mundo, capitaneados por robótica, digitalização e inteligência artificial (IA, o que exigiria inversões na base educacional e formação profissional.
Essa alteração de jogo requer o encampe das inescapáveis reformas institucionais, notadamente no terreno tributário, depois dos primeiros passos dados com a flexibilização da cobrança indireta e a ampliação da isenção do imposto de renda-pessoa física, e administrativo, voltado ao reencaixe da máquina pública dentro do orçamento.
Vale assinalar que a máquina carrega os inconvenientes de ser pesada, inchada, lerda, pouco eficiente e arraigada a artimanhas burocráticas e, não poucas vezes, labirínticas, o que abre flancos a toda a sorte de corrupção e obstaculiza o cumprimento do encargo basilar de promoção da otimização da justiça social.
Aliás, a tramitação parlamentar da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) começa a “fazer água” ainda em fase embrionária e demonstram reduzida capacidade de resistência institucional às pressões políticas e/ou corporativistas exercidas por servidores dos poderes executivo, legislativo e judiciário, além dos funcionários públicos estaduais e municipais.
Igualmente vital emerge a premência de um empurrão na montagem de novo arranjo federativo, com a redefinição de receitas e responsabilidades entre União e entes subnacionais, e amplo desapego patrimonial, focado na melhoria da eficiência do estado, com o despojamento de soluções autoritárias e de preconceitos, perpetuados por correntes ideológicas favoráveis ou contrários as privatizações, concessões e parcerias público privadas (PPPs).
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.


