Argentina: incertezas políticas e nova derrocada econômica
Gilmar Mendes Lourenço.
A poucos dias da realização das eleições presidenciais, em primeiro turno, fixado para 21 de outubro de 2023, a população da Argentina convive com o entrelaçamento da exacerbação das incertezas políticas e agravamento de mais um desarranjo econômico.
De fato, a nação padece com anúncios genéricos de proposições de campanha, lançados por progressistas, ocupados com a impulsão do endividamento público, correntes radicais, defensoras da demolição das instituições, e grupos autodenominados “moderados”, adeptos do receituário dos garotos de Chicago.
Em paralelo, a perda do controle da inflação e retração dos níveis de atividade atormentam a vida das pessoas e a fuga de dólares, por expedientes legais ou não, em condições de reservas líquidas internacionais, em poder do Banco Central (BC), negativas, ampliam a leitura de perigo de calote da dívida, inclusive do pagamento da parcela do empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e catapulta o risco país, o que favorece a queima de papéis da dívida.
No terreno de batalha das expectativas políticas prevalece a insuficiente compreensão do complexo emaranhado, formado por um governo à esquerda do espectro, largamente rejeitado pela população, por conta da agudização das mazelas econômicas e sociais, a súbita ascensão da oposição de extrema direita, liderada por um lunático e franco atirador, e as inclinações declaradamente ortodoxas da frente de centro-direita.
Não bastasse as incontáveis dificuldades de percepção e absorção das plataformas e propostas formuladas pelos principais postulantes ao cargo de chefe de estado, que transmitem mensagens pouco animadoras, predomina a escassez de referências interpretativas confiáveis a respeito da evolução do ciclo eleitoral, produzidas por organismos de investigação independentes das coligações e agremiações em contenda.
Nesse contexto, sondagem realizada pelo Instituto Atlas Intel, por meio de aplicação de questionários on line, junto a 3.778 entrevistados, entre os dias 20 e 25 de setembro, e divulgada pelo jornal Perfil, revelou proximidade de empate técnico entre os três concorrentes situados na dianteira.
Enquanto o postulante peronista à Casa Rosada, Sérgio Mazza, do Unión por La Patria, titular da Economia da administração de Alberto Fernández, figurou com 30,7% das intenções de voto, o deputado Javier Milei, do La Libertad Avanza, contabilizou 27,9% das assinalações, e Patricia Bullrich, representante da coalizão de centro-direita, Juntos por El Cambio, ligada ao ex-presidente Mauricio Macri, registrou 27,7% das preferências dos consultados.
Já o peronista Juan Schiaretti e Myriam Bregman (que encampa alguns grupos de esquerda) contam 4,8% e 2,1% das indicações, respectivamente, sendo que 3,8% mencionaram que não sabem quem eleger, 1,8% disseram que votariam em branco e 1,4% anulariam o sufrágio.
Apenas a título de esclarecimento, a obtenção da cadeira máxima da nação, em primeiro turno, depende da arregimentação de 45% dos votos pelo primeiro colocado, ou 40%, com diferença superior a dez pontos percentuais em relação ao segundo lugar no pleito.
As simulações de segundo turno, programado para acontecer em 12 de novembro, denotam vitória da direita conservadora, capitaneada por Patricia (44,9% versus 34,9%, contra Mazza, e 36,8% versus 31,5%, ante Milei). Já a batalha entre Massa e Milei seria conquistada pelo segundo (43,5% contra 37,5%).
Mesmo com a simplificação científica expressa por inquéritos sensitivos baseados em mensuração indireta, os números apurados não ratificam e invertem o retrato extraído das eleições primárias de 13 de agosto de 2023, que expôs inesperada vitória do candidato de ultradireita, que angariou 30% dos votos, contra 28,3%, para Massa, e 27,3%, para Patrícia.
Porém, ingerido aquele efeito surpresa, prevalece indiscutível indefinição do cenário eleitoral argentino, que também sugere chances de desfecho não traumático ou menos catastrófico, derivada fundamentalmente da multiplicação das dúvidas dos eleitores quando do questionamento sobre a escolha em segundo turno.
Apenas a título de ilustração quantitativa, os indecisos representam 17%, em caso de contenda entre Massa e Milei, 20,1%, no eventual embate entre Bullrich e Massa, e 31,7%, em situação de enfrentamento entre Milei e Bullrich.
Outra interferência nada desprezível repousa na provável intensificação de diálogos e negociações e estabelecimento de acordos voltados à constituição de uma espécie de união nacional, destinada prioritariamente à viabilização do malogro da empreitada de Milei, abarcando membros da cúpula peronista não atrelados ao clã Kirchner.
Pela ótica dos percalços econômicos, ressalta a inflação de 124,4% em doze meses encerrados em agosto de 2023, a maior desde 1991 e entre os membros do G20, conforme acompanhamento do Instituto Nacional de Estadística y Censos de La República Argentina (INDEC), entidade oficial de estatística da nação, com resposta atrasada do BC, que subiram os juros em pesos de 97% ao ano para 118% a.a.
Em idêntica pegada adversa, o produto interno bruto (PIB) argentino encolheu -2,8% e -4,9%, no segundo trimestre de 2023, em confronto com os três meses imediatamente anteriores e igual intervalo de 2022, respectivamente. Não por acaso, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), projeta declínio de -2% e -1,2% da grandeza macroeconômica nacional em 2023 e 2024, respectivamente.
O nó górdio consiste nas crescentes dificuldades à cobertura financeira dos dispêndios públicos, de forma alternativa à emissão de moeda, dada a ausência de mercado doméstico de papéis governamentais e a exaustão da capacidade de acesso à créditos externos.
Para se ter uma ideia do tamanho da vulnerabilidade social da Argentina, estimativas do INDEC apontam que 40,1% da população, ou 11,8 milhões de um total de 29 milhões de pessoas, encontram-se abaixo da linha de pobreza (renda de US$ 5,50 per capita por dia, parâmetro estipulado pelo Banco Mundial), e 9,3% (mais de 3 milhões de pessoas), acomodam-se na extrema pobreza ou miséria (rendimento de US$ 1,90/dia per capita).
Em se retirando os indicadores sociais relativos ao intervalo alcançado pelos impactos negativos do surto de Covid-19, para efeito de comparação intertemporal, constata-se, no corrente ano, as piores condições de vida das diferentes camadas da população mensuradas desde 2004.
Isso é consequência da ausência ou, na melhor das hipóteses, precariedade das políticas públicas, durante décadas, que praticamente sepultaram as expressivas iniciativas de inclusão e mobilidade, presentes entre o último quartil do século 19 e primeiro do século 20, propiciadas pelos ganhos da cadeia de negócios articulada à agropecuária, e no pós Guerra, com a escalada da industrialização por substituição de importações.
De exemplo de raro sucesso na América Latina, no século passado, especialmente com a rápida e gradativa incorporação das normas de consumo das nações avançadas, neste começo de milênio, acéfala do encaminhamento de reformas estruturais, continuamente postergado, imprescindíveis à estabilidade macroeconômica e retomada sustentada do crescimento, a Argentina transformou-se em um dos poucos estados do continente a alargar o contingente e a proporção de famílias miseráveis.
O problema maior é que as bandeiras levantadas e as ideias expostas pelos credenciados ao posto de presidente não oportunizam vislumbrar sequer algum arremedo de saída crível para a crise.
Portador de retórica populista e de veemente ataque ao status quo, o radical Milei apregoa a implantação de providências absolutamente desconectadas da realidade, especialmente o retrocesso monetário, produzido pela abdicação do peso e dolarização da economia, em meio à insuficiência de moeda estrangeira e moratória da dívida externa.
Em igual sentido surge as proposições de extinção do Banco Central, mesmo com a disparada da inflação; ruptura fiscal, com a extinção dos subsídios; privatizações em larga escala; e eliminação dos programas sociais, em circunstâncias de multiplicação da pobreza.
De seu turno, Massa tem recorrido ao emprego de mecanismos de irresponsabilidade fiscal, com medidas eminentemente eleitoreiras, como a concessão de abonos aos servidores públicos, ativos e inativos, a ampliação do crédito subsidiado e a drástica diminuição do imposto de renda incidente sobre os salários.
Por fim, até aqui, o discurso de Patricia permite apreender incursões pouco consistentes, ancoradas na promoção de itens da cartilha liberal, como a aprovação da autonomia da autoridade monetária, a abertura comercial e o encerramento escalonado das iniciativas assistenciais.
Por essa ordem nada convencional de recomendações, de natureza puramente eleitoral, solidificam-se a apatia e as inquietações do povo argentino, absolutamente incrédulo quanto à capacidade de superação soberana deste novo terremoto político e econômico.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.