O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.
Ensino Superior brasileiro: retrato sombrio
Gilmar Mendes Lourenço.
Os resultados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2022, divulgados pelo Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), no final de outubro de 2023, desnudaram o estado sombrio do ensino superior brasileiro, apesar da condição de dominância na obtenção de recursos públicos e concessão de apreciáveis benefícios, diretos e indiretos, à iniciativa privada.
É interessante esclarecer que, em sendo um dos alicerces do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), instituído em abril de 2004, o Enade consiste em um exercício de aferição da qualidade de algumas áreas de ensino, contemplando a observação criteriosa de cada curso específico em periodicidade trianual.
Se for acolhido, interpretado e, principalmente, absorvido, de maneira científica, o produto do exame pode representar ferramenta essencial tanto à formulação, execução, acompanhamento e avaliação de políticas governamentais setoriais quanto às escolhas estratégicas dos agentes públicos e privados atuantes neste terreno.
O painel de investigados em 2022 englobou 26 cursos, sendo 13 da área de tecnologia (comércio exterior, design de interiores, design gráfico, design de moda, gastronomia, gestão comercial, gestão da qualidade, gestão pública, gestão de recursos humanos, gestão financeira, logística, marketing e processos gerenciais), e 13 bacharelados (administração, administração pública, ciências contábeis, ciências econômicas, direito, jornalismo, psicologia, publicidade e propaganda, relações internacionais, secretariado executivo, serviço social, teologia e turismo).
Ao todo, foram pouco mais de 594 mil discentes inscritos, sendo 447,5 mil, o correspondente a 75,3%, em bacharelado, e 146,5 mil (24,7%), da vertente de tecnologia.
O processamento das provas realizadas proporcionou a geração de conceitos, calculados por instituição de ensino superior (IES), distribuídos em escala de 1 e 5, em sequência ascendente de importância, sendo 1 (entre 0 e 0,944), 2 (entre 0,945 e 1,944), 3 (entre 1,945 e 2,944), 4 (entre 2,945 e 3,944) e 5 (entre 3,945 e 5).
Levando-se em conta a expectativa de registro de notas finais correspondentes a 60 pontos (conceito 3) – não atingida por 25 cursos investigados, no agregado (conjunto das IES), diga-se de passagem – as mais elevadas aconteceram em comunicação social e jornalismo (56,89), secretariado executivo (57,82) e turismo (54,03), no caso de bacharelado, e design de moda (60,04), consubstanciando a honrosa exceção para o segmento de tecnologia.
Por um cômputo geral verificou-se que 45,2% dos aproximadamente 10 mil cursos acompanhados conquistou score médio (equivalente ao elástico grau 3), 29,2% foi contemplado com o selo de ruim ou péssimo (1 e 2) e apenas uma parcela residual, ou 5,5% do total, alcançou a qualificação satisfatória e excelência (4 e 5). As piores notas em bacharelado foram anotadas por Ciências Contábeis (29,53) Administração (40,77) e Serviço Social (41,63).
Os dados também revelaram performance pior na modalidade de educação à distância (EAD), que, por sinal, cresceu 700% em uma década, vis a vis aquela ministrada diretamente nas unidades locais de ensino. Mais precisamente, 33,7% dos alunos em conclusão de curso matriculados em EAD foram agraciados com nota 1 e 2 e apenas 3,7% alcançaram a comenda entre 4 e 5, contra 28,2% e 5,9%, respectivamente, no presencial, o que, não configura nenhum conforto.
Há poucas dúvidas de que esse quadro estarrecedor não representa uma obra circunstancial. O malogro, confirmado pelos números veiculados, advém de sucessivas e progressivas iniciativas espúrias, tomadas por diferentes “expoentes” a serviço da autocracia de plantão, preponderantemente entre 2019 e 2022.
Ao negarem continuamente a utilidade de ferramentas inclusivas, em suas múltiplas facetas, membros da cúpula do MEC chegaram a sentenciar que o ensino superior deveria ser reservado a uma casta de privilegiados na estrutura social e tratado como mercadoria de luxo, direcionada ao suprimento de uma demanda seleta.
Mais do que isso, sob o amparo da generalização de constatações episódicas de maniqueísmo ideológico de esquerda nos currículos e condutas das universidades públicas, os entes avessos à perseguição da diminuição da desigualdade e ampliação da mobilidade social pela estrada da construção e apreensão do conhecimento, preferiram enfraquecer e/ou desmontar os mecanismos de transferência de recursos necessários ao ensino, pesquisa e extensão e aniquilar os eficientes esquemas de financiamento estudantil montados por administrações predecessoras.
Por uma linha de argumentação central, parece lícito admitir que a modelagem do ensino nacional, em vez da priorização de processos de transferência e recebimento de conteúdos contemporâneos, em uma perspectiva de formação da diversidade intelectual e espírito crítico voltado à cidadania, vem sendo rotineiramente enfraquecida e desvirtuada.
Isso vem acontecendo na quase totalidade das esferas de oferta dos serviços, começando no fundamental, de responsabilidade das administrações municipais, passando pelo médio, sob a batuta dos estados, e chegando à graduação, abrangida pelo MEC.
Predominam posições e ações desesperadas e atabalhoadas de alocação de expressivas somas de recursos financeiros em protocolos e expedientes atrelados ao emprego da tecnologia da informação, padronizados para aplicação e recepção universalizada, por estudantes e professores, respectivamente, dissociados das peculiaridades (fortalezas e fraquezas) locais.
Trata-se da profusão de incursões avessas ao debate e negociação democrática, planejadas e deliberadas de cima para baixo, por um reduzido número de espertos, em autêntico sequestro, ou mesmo supressão, da forma mais primitiva de direito autoral, caracterizada pela nobre tarefa do docente manifestada na produção e preparação das aulas, em perfeita consonância com o conteúdo programático das disciplinas.
Nesse sentido, o Enade apenas explicitou os equívocos e lacunas qualitativas persistentemente presentes no ensino de terceiro grau nacional, cuja correção e preenchimento requer comportamentos arrojados capazes de derrubar a passividade do quintal do MEC sintetizada na afirmação do ministro Camilo Santana de que “falta de perna para a supervisão”.
De posse das informações do Enade, caberá ao MEC, a partir de visão integrada com horizonte de longo prazo, a concepção e implantação de políticas públicas que venham referenciar a atuação das instituições e dos diferentes cursos, incluindo regras para esforços de nivelamento de conhecimento dos ingressantes, visando à diminuição dos déficits acumulados ao longo da trajetória estudantil ou da própria vida de exclusão dos bancos escolares ou do mercado de trabalho.
Igualmente ao MEC cumprirá o papel de permanente monitoramento dos serviços disponibilizados pelas entidades, notadamente quanto ao aperfeiçoamento das práticas pedagógicas, em fase com as rápidas e profundas transformações manifestadas pelo tecido social.
Também na agenda de ajuste do MEC deverá ser incorporada a revisão radical nas diretrizes gerais e específicas que oportunizaram a proliferação da tipologia EAD, sobretudo com a benevolência acoplada às restrições sanitárias com o surto de Covid-19, quando as escolas interromperam as atividades, que, prevalecente na faixa entre 31 e 40 anos de idade, vem se multiplicando desprovida de eficiência e credibilidade, o que mais gritante.
De seu turno, às entidades de ensino competirá, com base nas deficiências identificadas, a promoção de modificações estruturais ou rearranjos no modus operandi, abarcando desde os projetos pedagógicos e matrizes curriculares até a rentabilidade microeconômica e aderência e retorno social dos cursos ofertados, ambientados ao século 21.
Nesse contexto, deverá ser corajosamente perseguida a rápida retirada de costumes anacrônicos, herdados dos tempos ditatoriais, como a fixação arbitrária da relação de obras a serem suprimidas das bibliografias e bibliotecas e a escalação de alunos de confiança, adotada por corpos diretivos, chefes de departamento e coordenadores insensíveis à pulsação da sala de aula e inaptos ao diálogo e debate acadêmico.
Cumpre encerrar com a anotação e lançamento de uma premissa básica subjacente ao ciclo educacional que reconhece no ensino universal e de qualidade o programa social mais compatível com o propósito de abrandamento do processo de concentração de renda e extinção da pobreza e miséria, e, em consequência, o suprimento da vontade coletiva de encontro de vigoroso e duradouro crescimento econômico.
Ressalvadas as diferenças históricas e culturais, a experiência da Coreia do Sul constitui exemplo da forte correlação existente entre vultosas e permanentes inversões em educação e expansão econômica sustentada, acompanhada de expressivos acréscimos de produtividade.
Já faz tempo que a educação no Brasil é ruim. Agora vai de mal a pior!