Bagunça política e carência de planejamento: o caso brasileiro
Gilmar Mendes Lourenço.
Em entrevista bastante lúcida, concedida ao jornal Folha de S. Paulo, no princípio de junho de 2024, o líder do governo Lula 3 no Congresso Nacional, senador sem partido pelo estado do Amapá, Randolfe Rodrigues, manifestou a premência de reversão das fragorosas derrotas das proposições encaminhadas pelo poder executivo para acolhida, apreciação e deliberação da Casa de Leis, ou mesmo da série de derrubada dos vetos presidenciais.
Randolfe sugeriu que o alcance desse ambicioso objetivo depende do maior distanciamento do executivo da agenda ortodoxa, infestada de assuntos relacionados aos costumes, como a suspensão das saidinhas de presos do regime semiaberto e a não criminalização das notícias falsas, que, inclusive, vem aglutinando e reforçando o poder de barganha das correntes oposicionistas mais radicais.
Na mesma linha, o senador manifestou o desejo de convencimento da cúpula de governo acerca da obrigação de priorização do envio de medidas das pautas ligadas aos estímulos conjunturais e às sinalizações e condicionantes estruturais à desejada retomada da pujança da economia, que extrapole os episódios conhecidos como “voo de galinha”.
De fato, as providências de incentivo à intensificação da recuperação dos níveis de atividade, ocupação e rendimentos revelam indiscutível capacidade de concatenação entre as vontades do Palácio do Planalto e da multifacetada retaguarda de forças políticas, hospedada de maneira fragmentada no parlamento e/ou acomodada na esplanada dos ministérios.
A incursões focadas na economia serão igualmente relevantes à conformação de um clima de amenização do comportamento truculento e avesso ao diálogo e entendimentos, típico de parcela dos adversários situados à extrema direita do espectro ideológico.
Até porque, é dispensável ser um astuto observador dos movimentos pendulares da democracia brasileira para perceber o inescapável, ainda que desconfortável, imperativo de adequação entre a operação um legislativo pulverizado e ortodoxo, na mais condescendente das avaliações, e um governo de centro-direita, portador de bandeiras progressistas, com incontáveis compromissos de inclusão social, forjado em vitória com margem apertada de votos, em 2022, graças à adesão de “última hora” de segmentos conservadores descontentes com o status quo.
Em tais circunstâncias, o esboço de resolução dessa complicada equação tem esbarrado em alguns poderosos obstáculos, erguidos, paradoxalmente, pela desarticulada coalização de poder, o que permite enxergar a formação e consolidação de uma espécie de auto oposição.
Decorridos mais de um terço do tempo da nova gerência, ou um pouco mais se for computado o começo em novembro de 2022, com o abandono do incumbente de plantão, destronado pelo voto popular, e as negociações da PEC da Transição, não há qualquer indicação de existência de um plano abrangente e consistente de longa maturação.
Prova disso é o empenho do ministério da Fazenda, liderado por Fernando Haddad, na encrencada empreitada da eliminação da desoneração da folha de pagamento – a ser compensada por restrições à utilização de créditos de PIS/COFINS pelas empresas – e obtenção de aprovação da extinção da isenção tributária para aquisições inferiores a US$ 50, procedentes de fabricantes asiáticos, mais competitivos e praticantes de dumping internacional.
Ao serem oferecidos como ingredientes de salvação do desequilíbrio fiscal e financeiro das instâncias públicas, com a ampliação de receitas e, por extensão, diminuição do déficit primário, esses expedientes fazem lembrar os remendos tributários, reiteradamente encomendados pelo ex-titular da pasta, Paulo Guedes, na gestão anterior.
Mais do que isso, predominam lacunas de ideias e projetos que ultrapassem o perímetro da plasticidade orçamentária, propiciada pela nova regra fiscal, e o anúncio e adoção de providências comprovadamente malogradas no passado, e, por isso, de triste memória, particularmente por carregarem as marcas do abandono da responsabilidade fiscal e a multiplicação desavergonhada da corrupção.
Ao avançar em velocidade reduzida, a nobre tarefa de regulamentação da reforma tributária, especificamente a simplificação dos impostos de incidência indireta, vem oportunizando flancos para atuação daqueles lobbies fieis à “Lei de Gerson”, desejosos de “levar vantagem em tudo”, o que pode penalizar os agentes econômicos e sociais com menor força defensiva e/ou o atributo de intermediação de interesses.
Outro vazio compreende a recusa de fatiamento de definições e atribuições com os aliados de centro, integrantes da frente ampla do segundo turno do pleito de 2022, evidenciada pela contínua desaprovação das recomendações de maior racionalidade na condução das finanças públicas, criteriosamente elaboradas pela equipe da ministra do Planejamento, Simone Tebet, torpedeadas ora pelo chefe do estado e seu entorno, ora pelos “cérebros” do Partido dos Trabalhadores (PT) e, na maioria das vezes, pelos dois grupos.
Sem contar a conduta de repetição de comportamentos anacrônicos, nocivos ao cotidiano macro e microeconômico e multiplicadores de incertezas, atestada pela intervenção explícita no comando da estatal Petrobras e a tentativa de intromissão no destino de empresas de grande porte, privatizadas nos anos 1990.
É difícil notar sequer lampejos de preparação de iniciativas de vanguarda, destinadas a favorecer o ambiente de negócios, por meio do lançamento de proposituras com potencial de devolução da funcionalidade indutora do estado e alavancagem da eficiência privada, em longo termo.
Dentre os espaços passíveis de planificação quase que em branco sobressaem as reformas administrativa, patrimonial e financeira e, notadamente, a insuficiente preocupação com a imposição de reparação do impacto devastador da, ainda que correta e imprescindível, valorização do salário mínimo sobre as contas governamentais, dada a indexação de mais de 60% dos benefícios previdenciários.
Até aqui, afora retóricas de conteúdo genérico e esforços localizados e personalizados, principalmente na área ambiental, o destaque da vitrine governamental corresponde a um manequim antiquado, típico de um governo desinteressado em escapar do pântano de caducidade de ideias e adentrar no terreno de ações avançadas, em contraste com a dedicação de renovação de concessão de benesses à indústria automotiva, com o retorno do emprego do mecanismo de conteúdo local para petróleo e gás natural, por exemplo.
No fundo, é o retrato de um governo fatigado e com identidade rasurada, e carente de habilidade negocial e, sobretudo, de votos, em um parlamento beneficiado pelo milagre da multiplicação das emendas impositivas – que saltaram de R$ 9,7 bilhões, em 2015, ano de criação, para previsão de R$ 53 bilhões, em 2024 – e avesso ao comprometimento com estratégias de estado, algo jamais visto desde a redemocratização brasileira, em 1985.
Não obstante, parece crucial entender que a construção de empreendimentos políticos sólidos, em democracias maduras, requer conversas e interlocuções entre atores diferentes e, não poucas vezes, discordantes (até mesmo ocasionais), e não entre ferrenhos inimigos, desejosos no desaparecimento do oponente.
Ainda que árdua, por conta da perpetuação do cenário de radicalização extremada da postura dos atores políticos, tomados pelo demônio da recusa de descida dos palanques das campanhas eleitorais e dedicados sobremaneira à destruição de reputações, notadamente nos veículos comandados em redes sociais, essa obra precisa ser concluída, sob pena de ensejar a disparada dos riscos de ruptura institucional.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.