O que as urnas anunciaram em 2024

Gilmar Mendes Lourenço.
O retrato do segundo turno dos pleitos municipais de 2024 conferiu maior nitidez, tanto em sucessos quanto fracassos, às feições identificadas na primeira etapa, celebrada em 06 de outubro, quando foram eleitos a maioria dos prefeitos e todos os postulantes às Câmaras de Vereadores, sobrando algumas cidades mais populosas, incluindo parcela das capitais.
Sem ensejar qualquer reparo ao avanço civilizatório consubstanciado das urnas eletrônicas, o produto das eleições carrega o resgate de velhos e salutares hábitos políticos, como a percepção das mensagens trazidas no horário eleitoral gratuito de rádio e televisão; o fortalecimento do centro-direita e direita; o esfacelamento da esquerda, que, mesmo contando com a máquina federal, experimentou o pior desempenho desde a redemocratização nacional, em 1985; e a perda de protagonismo das duas figuras ou cabos eleitorais estelares: Lula e Bolsonaro.
Lula, mais empenhado na reconstrução da imagem internacional da nação, manchada no quadriênio antecedente, não demonstrou robustez, disposição e interesse em mergulhar em conflitos desgastantes com candidaturas lançadas por agremiações integrantes da retaguarda parlamentar do governo e, Bolsonaro, posicionado em alguns certames “em cima do muro”, não conseguiu emplacar vários extremistas.
Os dados consolidados atestam, de modo eloquente, a péssima performance da esquerda do espectro ideológico, conduzida pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que, contabilizou vitória em apenas uma capital, Fortaleza, por score apertado, com diferença de 11 mil sufrágios, e malogros nada desprezíveis. Ressalte-se a reeleição em primeiro turno da promessa João Campos (PSB), no Recife.
Na verdade, impregnado por concepções e retóricas ultrapassadas, que levaram, por exemplo, ao reconhecimento, de imediato, da vitória fraudulenta do ditador, Nicolás Maduro, na corrida presidencial da Venezuela, a agremiação teve que acolher a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL), à prefeitura de São Paulo, escolhido a dedo pelo presidente Lula.
Mesmo com as grandiosas cifras utilizadas durante a campanha (R$ 8,8 milhões), em sendo campeão de rejeição, por conta das marcas invasoras do passado, Boulos foi derrotado pela segunda vez seguida na competição ao cargo de prefeito paulistano, desta feita de forma acachapante (59,4% versus 40,6%), em quase todos os distritos. Em 2020, fora derrotado por Bruno Covas.
Ademais, a esquerda amargou a obtenção do menor volume de votos para prefeitos, neste século, inclusive no reduto cativo, representado pelos municípios do Nordeste. O PT situou-se em nono lugar em quantidade de prefeituras (252, 4,5% do total), atrás do PSDB (276, 4,5%), em fase de desidratação terminal.
A esquerda também reiterou a natureza apequenada e quase paralisante resultante do não desmame da mitologia de Lula, que, em contraste com a postura “livre, leve e solta” do final dos anos 2000 e começo da década de 2010, presentemente enfrenta trânsito político mais congestionado.
De outra parte, mesmo com a considerável expansão do PL, que conquistou 16 prefeituras de municípios com mais 200 mil eleitores (de um universo de 103), contra duas, em 2020, a direita acusou o aparecimento de novos aspirantes a expoentes e o enfraquecimento do capitão-mor, o ex-chefe de estado, Jair Bolsonaro.
Na condição de inelegível e distante dos amplos espaços oportunizados pela presença e participação no poder, desde o insucesso da reeleição, no final de 2022, o ex-chefe do executivo teve que contemplar o revés de extremistas, formados nas categorias de base e por ele apadrinhados.
Sem contar a diminuição da densidade política do ex-presidente em São Paulo, por não ter abraçado a postulação à recondução de Ricardo Nunes (MDB), alavancada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que, por sinal, deverá prestar contas ao poder Judiciário a respeito da impertinente afirmação de ligação do adversário com o crime organizado.
Além do MDB, com adesão do PSD (presidido por Gilberto Kassab), em São Paulo, os êxitos mais expressivos da corrente que trafega do centro à direita aconteceram em Goiânia – União Brasil, do governador Ronaldo Caiado, que rivalizou com o PL de Bolsonaro, no segundo turno -, Belo Horizonte (PSD), Porto Alegre (MDB) e Curitiba (PSD), neste último com a derrocada das pretensões da ultradireita raiz e negacionista da ciência.
Logo, a partir de janeiro de 2025, PSD e MDB passarão a acumular o maior número de prefeituras do país, 891 (16% do total) e 864 (15,5%), respectivamente, e cada um deles será responsável por cinco capitais. Na sequência aparece o PP (752, 13,5%), União Brasil (591, 10,6%), PL (517, 9,3%), Republicanos (440, 7,9%) e PSB (312, 5,6%). As agremiações de centro-direita estarão encarregadas de 20 capitais.
Essencialmente, essa reacomodação revela que à procura de distanciamento dos embates belicistas e ideologizados – travado entre radicais, hospedados notadamente nas mídias digitais e condutores, na mais generosa das avaliações, de assuntos e bandeiras nacionais, em detrimento de respostas a questões concretas, ligadas ao cotidiano das cidade -, os eleitores decidiram alocar a confiança na identificação de entregas palpáveis e no retorno da política tradicional, com o desejo de rearranjo do centro (ideológico e/ou fisiológico), ainda que dominado por pobreza de propostas e projetos.
Tanto é assim que a dimensão da reeleição superou 80%, a maior em dois decênios, e chegou a 93,7%, nos 112 municípios mais beneficiados com os recursos intermediários por deputados federais e senadores, o que evidencia a eficiência eleitoral do expediente das emendas.
Nessas circunstâncias, à primeira vista, parece razoável supor o acentuado estreitamento das porteiras de entrada e passagem da esquerda, em condições de competitividade, em direção à deflagração e ao cumprimento do episódio eleitoral de 2026.
Isso porque, há a indiscutível interferência da diminuição do glamour das estratégias de inclusão social, consideradas uma espécie de monopólio pelo PT, em razão, de um lado, do abalo da credibilidade de execução das políticas de proteção, associado aos escândalos de corrupção pretéritos, e, de outro, da concordância de preservação das iniciativas de transferência direta de renda pela maioria dos atores políticos, de distintos matizes ideológicos, condicionada à responsabilidade fiscal, em certas ocasiões por mera conveniência de atendimento de interesses de curto prazo.
É prudente esclarecer que os instrumentos inclusivos foram plantados na Constituição de 1988, implementados e aprimorados em mandatos de presidentes progressistas, como Itamar Franco (PMDB) e de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), coadjuvados pela política de valorização do salário mínimo, e consolidados nos tempos do PT.
Já a mobilidade social, lapidada como extensão ou derivação das incursões assistencialistas pela social democracia e o petismo, tem sido enunciada e enaltecida, apoiada em preceitos liberais, na plataforma de centro-direita, como justificativa ao irrestrito incentivo às ações empreendedoras e, em consequência, a libertação das pessoas da subordinação às benesses oficiais.
Há que sublinhar igualmente a influência do ganho de musculatura municipal do centro-direita, majoritário no legislativo e proprietário do maior pedaço do vultoso fundo eleitoral e dos repasses orçamentários via as nebulosas emendas parlamentares, destinadas aos currais eleitorais.
Embora debilitado politicamente, sequestrado pelo fisiologismo legislativo e portador de um razoável elenco de ideias anacrônicas, porém transitando além dos limites da esquerda, Lula tende a constituir opção robusta no próximo capítulo eleitoral, sobretudo se a economia continuar surpreendendo.
Isso se tornará mais factível diante das chances de não surgimento de uma alternativa potencial de centro-direita, dotada de perfil moderado e capacidade de percepção do grau de heterogeneidade do tecido social conexão com os anseios do eleitor.
Daqui para a frente os diálogos e entendimentos deverão se despojar da insistência em vazios propositivos e encampar a discussão, tramitação e aprovação da pauta do bloco de reformas institucionais, com mais de trinta anos de atraso, como complementação e reforço da estabilidade monetária, obtida com o Plano Real, em 1994, âncoras definitivas da retomada sustentada do crescimento econômico, menos sensível aos movimentos de rápidas decolagens e repentinos e bruscos pousos.
O esforço ou viés reformista deverá ser acompanhado de providências voltadas ao estabelecimento de sintonia fina entre a perseguição do controle transparente da evolução das contas públicas, da eficiência microeconômica, em fase com o paradigma da quarta revolução industrial global, e da melhoria dos indicadores sociais.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.
Excelente texto, a clareza didática do texto facilita ao leigo o entendimento.