Welfare State Brasileiro e crise fiscal
Gilmar Mendes Lourenço.
As estatísticas disponíveis no trabalho “Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2024”, produzido pelo IBGE, englobando o intervalo 2012-2023, permitem, de um lado, a constatação de conquistas nada desprezíveis, e, de outro, a identificação de perenização de graves disfunções de natureza estrutural no tecido social, carentes de definitivo equacionamento.
A cobertura temporal do levantamento das informações e a construção de indicadores, com consistência metodológica e adequada representatividade dos painéis de unidades familiares observadas, reproduz o período de lançamento, execução e consolidação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), também do IBGE, considerada suficientemente abrangente e confiável por organismos pares em âmbito global.
Em linhas gerais, os dados brutos e derivados apresentados evidenciam que empuxes na massa de rendimentos e mobilidade social possuem estreita sintonia com o comportamento das variáveis subjacentes à combinação de perímetro econômico avantajado e pronunciada intervenção pública, ainda que, por vezes, transitando por vias tortuosas e interesses menos nobres, focada ou resultante na diminuição da desigualdade.
Mais especificamente, o lançamento e funcionamento de mecanismos eficazes, capazes de assegurar a obtenção da estabilidade macroeconômica, com declínio sustentado da inflação e recuperação dos níveis de produção e emprego, representa o grande trunfo para a promoção de ações voltadas à minimização da heterogeneidade social, liderada por políticas de estado.
Tanto é assim que, pela ótica dos rendimentos, nota-se decréscimo do índice de Gini (que varia entre zero e a unidade, indicando diminuição da concentração de renda à medida que se distancia de um) de 0,544, em 2021, para 0,518 em 2022 e 2023, sendo os menores patamares da marcha histórica.
Convém sublinhar que os picos do coeficiente foram contabilizados em 2018 e 2019, quando registrou 0,545 e 0,544, respectivamente, e a segunda menor dimensão foi constatada em 2020, ao anotar 0,524, em razão primordialmente do substancial volume incremental de recursos endereçado ao socorro financeiro das famílias vulnerabilizadas pelos efeitos da pandemia de Covid-19.
A ajuda adicional se deu com a aprovação do auxílio emergencial pelo parlamento, à revelia da vontade do chefe do poder executivo, um negacionista “militante e juramentado”, ao velho estilo do incumbente de Sucupira, Odorico Paraguaçu, personagem interpretado pelo brilhante e saudoso ator, Paulo Gracindo, na novela “O Bem Amado”, escrita por Dias Gomes e exibida em 1973.
Não poucos equívocos de avaliação do time do governante de plantão, acerca do timing e curva evolutiva do Sars-CoV-2, levaram à retirada e suspensão do pagamento do benefício, entre janeiro e março de 2021, com retorno a partir de abril daquele ano, o que, mesmo assim, causou o agravamento do quadro de repartição da renda, com a subida do índice para 0,544.
A desesperada e frustrada empreitada de reeleição, em 2022, conduziu à deliberação de uma super expansão das benesses, só que de maneira completamente voluntarista e “emocional”, destituída de critérios rigorosos para concessão e, o que é mais grave, com o beneplácito do Congresso Nacional.
Na prática aconteceu a incorporação do apoio transitório ao programa permanente Bolsa Família, com a alteração da denominação para Auxílio Brasil. Com isso, ao final do mandato de quatro anos, o inquilino do Palácio do Planalto teve um programa social “para chamar de seu”.
Em continuidade, a PEC da transição, acordada entre a equipe do candidato eleito à cadeira de presidente da república pela aliança de oposição de centro-esquerda, e o Legislativo, propiciou a preservação da dotação daqueles recursos sociais, em sua maioria alojados por ocasião da recriação, recomposição e adensamento do Bolsa Família.
Assim, depois de atingir o cume em 2020 (36,8%), a proporção de residentes em domicílios contemplados por repasses oficiais caiu para 29,7%, em 2021, e 25,8%, em 2022, subindo novamente em 2023 (27,9%). A média 2021-2023 (27,8%) suplantou a média anterior à pandemia (23,9%). O Bolsa Família responde por 2/3 do volume de repasses sociais e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) por quase 1/3.
Só as somas aportadas ao Bolsa Família saltaram de R$ 44 bilhões, em 2019, para R$ 174 bilhões, em 2023, em valores constantes, que descontam a interferência da inflação. Em uma década, o programa absorveu quase R$ 600 bilhões, já suprimida a inflação. As cifras agregadas do Bolsa Família, abono salarial, seguro-desemprego e BPC representam 3,2% do PIB.
No caso de 2023, emergiu também a interferência da reintrodução da política de valorização do salário mínimo, erguida na década de 1990, em simultâneo à desinflação promovida pelo Plano Real, sob a batuta dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FHC), pautada na definição política de reajustes anuais superiores à inflação pretérita, que se propaga sobre os valores de aposentadorias, abono salarial e BPC.
A pronta resposta do setor de serviços, disparado o maior absorvedor de mão de obra, à atmosfera virtuosa estaria na raiz da continuidade do firme desempenho do mercado de trabalho, mesmo com 46,4% da população ocupada sem vínculo empregatício, o que enfeixa um desemprego dissimulado ou, na melhor das hipóteses, esforços empreendedores com menor produtividade.
A taxa de desocupação fechou 2023 em 7,8% da força de trabalho, contra 14% e 9,6%, em 2021 e 2022, respectivamente, sendo a menor desde 2014, quando foi de 7% (igualmente a menor mensurada), influenciada pelo clima de manejo inapropriado da gestão macroeconômica, por meio do controle artificial dos preços administrados, do câmbio e dos juros, por prolongado tempo, cuja correção sacramentou a eclosão da mais intensa e extensa recessão da república nacional.
Em idêntico sentido, as pessoas classificadas abaixo da linha de pobreza, consideradas portadoras de renda per capita de sobrevivência de até US$ 6,85 por dia, conforme o critério de paridade do poder de compra (PPP), designado pelo Banco Mundial, ou R$ 22,2/dia, recuaram de 31,6% da população (67,7 milhões), em 2022, para 27,4% (59 milhões), em 2023, o que equivaleu ao escape de um contingente de 8,7 milhões dessa desconfortável condição.
Em igual interregno, a taxa da extrema pobreza ou miséria (US$ 2,15/dia/PPC ou R$ 7/dia) decresceu de 5,9% para 4,4%, a menor desde 2012 (tal como a pobreza), e, pela primeira vez, situou-se abaixo de 5%, com a redução de 12,6 milhões para 9,5 milhões de pessoas.
A população com acesso à internet aumentou de 68,6% para 92,9%, entre 2016 e 2023, mais de 90% daqueles em extrema pobreza possuem aparelho celular, e a frequência escolar de crianças de 4 e 5 anos chegou a 92,9%, em razão primordialmente do cumprimento das regras do Bolsa Família.
Contudo, os números e cálculos até aqui expostos, em vez de festejados, devem ser assinalados como parte de um elenco formador do ponto de partida de uma longa jornada em direção à inclusão social plena no país, e, por isso, servir como elemento chave aos esforços de planejamento e delineamento de prospecções basilares às decisões políticas de média e longa maturação.
Isso porque, não há como ignorar a pronunciada dependência daqueles ganhos da canalização permanente de vultosas cifras de haveres públicos para suprimento dos múltiplos pedidos de atendimento pelo Welfare State brasileiro, consagrado e instrumentalizado na Carta Magna de 1988, e operacionalizado nos governos de Itamar Franco, FHC e Lula 1 e 2.
Em sendo isso verdadeiro, as incursões de manutenção e extensão dos componentes de proteção social esbarram nas limitações impostas pelos alicerces fiscais da estabilização macro, resumidas nos enormes e crescentes déficits consolidados do setor público.
O pior é que, de acordo com a visão corrente, disseminada nos meios especializados, o apreciável buraco contrastaria com as recomendações de austeridade, emitidas pela Nova Regra, a ponto de precipitar expectativas de instabilidade financeira ou insolvência e/ou falência da máquina pública, volatilizando as cotações dos bônus de risco (dólar e ações) das carteiras das bancas de negociação.
É interessante esclarecer que a instalação da chamada crise fiscal se verifica somente quando o aparelho estatal explicita sua incapacidade de captura de recursos de terceiros, dirigida à cobertura das respectivas necessidades de financiamento de custeio e investimento e rolagem dos passivos, sem a geração de pressões inflacionárias.
Nesse particular, parece prudente destacar a existência de garantia de recompra dos papéis da dívida dos entes públicos nacionais transacionados no mercado, acrescida da proibição constitucional de decretação de calote, tal como em 16 de março de 1990, no segundo dia da administração de Fernando Collor, em um contexto de superinflação indexada, que preservava o poder ofensivo das elites e minava a capacidade defensiva da população mais pobre.
Ademais, um mergulho nos relatórios mensais emitidos pelo Banco Central (BC) possibilita perceber que o desequilíbrio das finanças públicas do país repousa em distúrbios essencialmente financeiros. Enquanto o déficit primário em doze meses até outubro de 2024 correspondia a 1,95% do PIB, o nominal (que inclui os encargos sobre o endividamento) equivalia a 9,52% do PIB, com inscrição de juros de 7,57% do PIB, contra 6,71% do PIB, em idêntico lapso de 2023.
Ressalte-se que a irradiação dos exorbitantes juros pagos pelo governo, para a repactuação dos saldos devedores, sobre as demais modalidades de empréstimos e financiamentos guarda íntima relação com a acentuada oligopolização bancária, com cinco instituições (duas públicas e três privadas), concentrando cerca de 85% das operações ativas.
Tal anomalia enseja a cobrança dos maiores spreads (diferença entre as taxas cobradas na ponta de consumidores e empresas e os dispêndios incorridos na captação dos recursos) do planeta, segundo inferências realizadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), algo solucionável com diligências rumo à radical ampliação da concorrência.
De outra parte, a premissa de necessidade de reforço do tratamento privilegiado da doença da desigualdade pode ser comprovada mediante a inserção comparada das principais variáveis sociais nacionais em amostras de nações avançadas e emergentes preparadas pelo Banco Mundial.
Por exemplo, o Brasil figura na penúltima posição, em um grupo de vinte e três países no índice de Gini, sendo melhor apenas que a Colômbia, e expressando maior concentração de renda do que México, Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai e Peru, dentre os latino-americanos. O certame é encabeçado por Países Baixos (0,257), Suécia (0,298), Irlanda (0,301), França (0,315) e Canadá (0,317).
Com respeito aos recursos portadores de futuro, atrelados a atenção (ou falta dela) ao capital humano, salta aos olhos a penúria do retrato educacional, crucial ao acesso restrito a postos de trabalho mais qualificados e melhor remunerados, em fase com os requerimentos de elevação continuada da produtividade, impostos pelas revoluções tecnológicas.
A fração de pessoas de 25 a 64 anos de idade que não concluíram o ensino médio, estimada em 40,1% no Brasil, é a sexta pior em um grupo de vinte e uma nações acompanhada, perdendo para Argentina e Chile no Cone Sul. As melhores performances são dos Estados Unidos (8,2%), Coreia do Sul (8,8%), Australia (14,8%), Alemanha (16,5%) e França (16,7%).
Em rota semelhante, a parcela da faixa entre 25 e 34 anos que terminaram o terceiro grau, calculada em apenas 23,7%, configura a quarta pior, em uma seleção de 21 estados centrais e em desenvolvimento, dividindo a zona de perigo com Índia, Argentina e África do Sul, com o top 5 preenchido por Coreia do Sul (69,6%), Canadá (67%), Japão (65,7%), Reino Unido (57,7%) e Noruega (56,4%).
Mais do que isso, um terço dessa classe não tem instrução ou sequer a educação básica e outros 12,5% concluíram o ensino fundamental sem alcançar o médio, o que sinaliza que praticamente metade da população em idade ativa possui escolaridade sofrível no Brasil.
Em semelhante perspectiva, embora expressando tendência decrescente, 10,3 milhões de jovens entre 15 e 29 anos ainda permanecem na modalidade dos que não estudam e não estão ocupados, denominados “nem-nem”, o que representa 21,2% do total do estrato, versus média de 13,8% nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Dentre o contingente localizado nos 10% dos domicílios com menor renda, 49,3% estavam nessa camada, contra 6,6% nos 10% lotados nos estabelecimentos com maior rendimento. A diferença subiu de 7 vezes para 7,5 vezes, entre os anos de 2022 e 2023.
Portanto, o pertinente e transparente debate a respeito da perseguição e viabilização do inescapável ajuste orçamentário não pode, independentemente da propensão ideológica ou política dos atores envolvidos, ignorar que há um longo e acidentado caminho a ser percorrido e vencido até a erradicação da vexatória pobreza e insegurança alimentar e, por extensão, o enfraquecimento da chaga das injustiças sociais no Brasil.
Para tanto, é preciso elaborar e implantar medidas estruturais balanceadas que permitam o desmonte dos procedimentos de tomada predatória e utilização inadequada dos recursos provenientes dos cofres públicos, através da invasão da estrutura orgânica do estado em benefício de desejos partidários/eleitoreiros, corporativistas e fisiológicos, alguns deles sob o disfarce das “malditas” emendas parlamentares, ou descarada corrupção, pagamento de propinas formação de “caixa dois” de campanhas, suficientemente demonstradas por inúmeras investigações.
Somente com a restauração da saúde fiscal e financeira do estado será factível a recomposição de uma atmosfera de negócios capaz de proporcionar a minimização das incertezas dos agentes e o desencalhe dos projetos de investimento de longa maturação, focados em elevação continuada da produtividade.
Decerto que, no varejo, urge a inafastável impulsão da eficiência das ações assistenciais oficiais, a partir da intensificação da fiscalização, especialmente quanto à para lá de suspeitosa disparada de casos de famílias unipessoais, e da cuidadosa revisão quantitativa e qualitativa do cadastro que hospeda os beneficiários.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.