Semipresidencialismo caipira: escandalosa proteção de mandatos e carreiras

Gilmar Mendes Lourenço.
O dia 17 de março de 2025 coincidiu com as celebrações ou lamentações dos dez anos das alterações incorporadas à Constituição brasileira que definiram o caráter obrigatório das emendas parlamentares individuais ao Orçamento Geral da União (OGU).
Uma observação atenta da evolução desse fenômeno permite identificar a abertura de uma verdadeira vala de escoamento de haveres públicos, ocasionando piora qualitativa da corrente de despesas e acirramento das contendas travadas entre as diferentes órbitas (horizontais e verticais) de poder.
Ademais, a dimensão financeira dessa modalidade de interferência da Casa de Leis na montagem e implementação do orçamento, despojada do cumprimento de regras de fixação de prioridades e voltada ao atendimento de redutos de votos dos entes agraciados, não encontra precedente em qualquer outro país avançado ou emergente do planeta.
Em seu nascedouro, a despeito de ser rotulada e festejada como mera variante de ampliação da densidade de poder político do Congresso Nacional, a retificação foi deliberada, de forma extremamente oportunista, em meio à corrosão de popularidade do governo de Dilma Rousseff, que apodrecia no terreno econômico, político e institucional.
Lembre-se que a nação foi empurrada na direção do abismo da maior e mais longeva recessão econômica da república e, em paralelo, a gerência da presidente cometia respeitáveis crimes de responsabilidade, em especial a efetivação de gastos suplementares sem aval do parlamento e a cobertura de programas sociais por bancos oficiais.
Por sinal, aqueles comportamentos irregulares serviram de álibi à instauração do processo de impeachment, em maio de 2016, e subsequente cassação da mandatária, em agosto do mesmo ano, com a posse provisória e depois definitiva do vice, Michel Temer.
A partir da anexação do expediente impositivo à Carta Magna, as emendas passaram a constituir um mecanismo que permitiu a fácil e crescente transferência de recursos federais, por parte de deputados e senadores, para as respectivas bases eleitorais, o que comprimiu drasticamente o poder alocativo das gestões do executivo, em completo desalinhamento com as prioridades de implementação das estratégias de estado, em sua maioria contratada nas urnas.
Para piorar, em 2019, o parlamento alargou o perímetro arbitrário com a inscrição das emendas de bancadas estaduais e a criação das Pix – destinadas diretamente às instâncias subnacionais (governos e prefeituras), sem a especificação da finalidade dos dispêndios -, o que praticamente eliminou o atributo de transparência dos repasses, que, corresponderam, por exemplo, a 12% dos investimentos feitos pela União, no biênio 2023-2024.
Na mesma balada de sede e fome por quantias oriundas da arrecadação de impostos foram estabelecidas normas que favoreceram vultoso acréscimo da obrigatoriedade das emendas individuais, que saltaram de 1,2% para 2% da receita corrente líquida da gestão federal, entre 2019 e 2024.
Em consequência da aplicação desses remendos legais, predatórios do orçamento, as cifras de despesas manuseadas diretamente pelo legislativo pularam de R$ 11,1 bilhões, em 2014, para R$ 50,5 bilhões, estipulados para 2025, pelo OGU, aprovado a toque de caixa com quase três meses de atraso, em 21 de março de 2025.o que equivale a variação de 354,1%, já com o desconto da inflação acumulada no período.
Se for adicionada a dotação extra de R$ 11,2 bilhões, tratada com os entes superiores do Congresso, chega-se a R$ 61,2 bilhões, que representam pouco mais de ¼ (27,3%) do total de gastos discricionários (de empenho não obrigatório) deste exercício, orçados em R$ 225,8 bilhões.
Do valor total projetado sem os extraordinários, R$ 24,7 bilhões serão para as emendas individuais (com quantia fixa para cada deputado e senador encaminhar como desejar), R$ 14,3 bilhões para as bancadas estaduais e R$ 11,5 bilhões para emendas de comissão (de execução não obrigatória). Houve ainda a introdução de dispositivo que proíbe o cancelamento de emendas sem consulta antecipada e aprovação do respectivo autor.
Por conta da fragilidade política do executivo atual, aparentemente acuado nas cordas e dotado de minoria legislativa que resulta em cansativas negociações e entendimentos para a tramitação e aprovação de projetos de forma pontual, amparadas na exacerbação das condutas de “toma lá, dá cá”, o Supremo Tribunal Federal (STF), que já havia considerado inconstitucional o chamado “Orçamento Secreto” (OS), em 2022, optou pela entrada novamente em campo e no jogo.
Tanto que, em 2024, o ministro Flávio Dino sentenciou a suspensão da autorização dos desembolsos do dinheiro das emendas e assumiu a tarefa de articulação da construção de procedimentos capazes de explicitar a forma e o conteúdo de exposição e pagamentos.
A postura intransigente e, sobretudo, correta, diga-se de passagem, de Dino, forçou a preparação, discussão e homologação de um acordo entre os caciques do parlamento e do governo visando ao rearranjo dos ritos, centrado na priorização das nomeações (mandante e receptor), valoração e projeto beneficiado, acompanhado do cronograma de aplicação das verbas.
Os aprimoramentos conquistados, vistos por Dino como suficientes para a liberação das cifras retidas, repousaram na uniformização das atas e planilhas dos encontros de comissão e bancadas e no enunciado e codificação dos dados acerca das transações e soluções de veiculação pública, o que não parece pouco.
No entanto, sobraram lacunas no quesito transparência, sugerindo que a obscuridade e as discrepâncias continuarão barrando as iniciativas de interrupção, ou ao menos disciplinamento e rastreabilidade, das antidemocráticas farras promovidas com o rateio de parcela expressiva dos orçamentos públicos, já altamente deficitários por motivos outros.
Uma ilustração patética dessa fonte de distúrbio residiu na recente aprovação de resolução legislativa, em 14 de março de 2025, por abrangente arco de alianças, que contou com a participação de membros da base do governo e da oposição, da esquerda (Partido dos Trabalhadores – PT) à direita (Partido Liberal -PL), incluindo os extremistas, e exceptuando os nanicos Novo e Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
É assombroso perceber que a minuta do relatório parlamentar teria sido elaborada a portas fechadas, por um reduzido número de participantes, e disponibilizada ao conjunto de legisladores cinquenta minutos antes da votação, com rejeição de solicitações de extensão de tempo para apreciação.
O texto reunia a acintosa proposição de flexibilização dos limites individuais para os autores e permissão de permuta do destino estadual dos recursos, sem a necessidade de formulação de qualquer justificativa, geral ou pormenorizada. Como foi aprovado, o baile seguirá.
Vale sublinhar a fração recusada do documento, por vazamento antecipado a entidades civis, que minimizava os encargos das consultorias de Orçamento, fiscalização e controle, compostas por profissionais concursados do parlamento, absolutamente independentes das injunções e interesses políticos (públicos ou privados), que passariam a se reportar a uma “secretaria especial”, encabeçada por membro indicado pelos congressistas.
Se autorizado, esse pedaço configuraria um retrocesso de mais de trinta anos, dado que aquelas instâncias, essencialmente técnicas, foram criadas na década de 1990, por sugestão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que apurava desvios de emendas protagonizados pelos “Anões do Orçamento”, que envolviam somas incomparavelmente menores do que as alocações atuais, ainda que usadas para propósitos espúrios.
Cumpre recordar que, naquela época, disciplinou-se que as emendas individuais supririam as demandas das localidades municipais, as de bancadas cobririam os pleitos levantados por autoridades estaduais e as de comissão seriam dirigidas ao suporte financeiro de empreendimentos nacionais.
A resolução final, de março de 2025, refletiu desmesurado empenho dos senhores das leis no trabalho de ocultação do destino de fração considerável do numerário extraído da população, hospedado como a maior carga tributária entre as nações de renda média, com a introdução de instruções disfarçadas ou subterfúgios legais.
Mais do que isso, houve o reforço do arcabouço embaraçado, por meio da imputação da solicitação formal do expediente aos líderes das agremiações partidárias e de bancadas estaduais, semelhante ao que efetuavam relator e comissões na era do OS, e da blindagem dos patrocinadores das emendas de comissão.
Decerto que essa maquiagem incremental evidencia a permanente resistência do “parlamentarismo de extorsão”, ou “semipresidencialismo caipira”, em interpretação mais elegante, na derrubada das enormes barreiras ao controle social do orçamento nacional.
Em outros termos, preservaram-se os principais canais de favorecimento aos comandantes e/ou grupos controladores e/ou padrinhos, e aliados próximos, da importante etapa distributiva das dotações, e à alimentação das campanhas eleitorais, o que oportuniza a maximização de práticas veladas e imorais que orientam as ações de eternização no poder, com proteção dos mandatos e carreiras ou bloqueio da salutar renovação política.
Não surpreende que, em contraposição ao ambiente de requentada legislativa do desvirtuamento da Constituição, a marcha mais imediata deverá comportar novos bloqueios no fluxo das verbas pelo Judiciário, em continuidade ao movimento pendular precipitado em 2022 pela Corte Suprema.
Caso contrário, a população continuará testemunhando cenas grotescas de irregularidades cometidas por autênticos corretores ou atravessadores de emendas, e mordedores das licitações viciadas que vem sendo investigadas pela Polícia Federal (PF) e o Tribunal de Contas da União (TCU).
Tais incursões podem ser constatadas no derretimento de asfalto novo, sob o calor do sol, em tempos de drásticas mudanças climáticas; no despejo de sacolas de dinheiro por janelas; na constituição de “caixa dois” eleitoral e no enriquecimento patrimonial pessoal, dentre outras barbaridades de malversação de haveres governamentais, comprobatórias da natureza vigorosa e, o mais gritante, compensadora da corrupção brasileira.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia