Temporada de afagos populistas à classe média

Temporada de afagos populistas à classe média
Gilmar Mendes Lourenço.

Em clima de despencada da aprovação e alargamento da decepção popular e, em consequência, de adensamento do risco de comprometimento da empreitada de reeleição, em 2026, Lula 3½ decidiu operar no modo recuperação do eleitorado, especificamente com a abertura da caixa de bondades e o derrame de velhos e novos estímulos.

Partindo do pressuposto da carência de problemas de maior envergadura nos programas de atendimento aos vulneráveis, desta feita o alvo privilegiado para afagos restauradores de confiança repousa na classe média, em razão do enorme efeito eleitoral, indutivo e multiplicado, desse pedaço da matriz social.

Trata-se de segmento flutuante e heterogêneo que reúne substancial massa de descontentes, que escolheram “tapar o nariz” e esquecer o passado, no segundo turno do pleito de 2022, e sufragar Lula com o objetivo quase que exclusivo de se libertar de mais quatro anos de administração autocrática – dedicada ao atropelo dos pilares do estado de direito -, incompetente e negacionista em todas as frentes de trabalho, se que isso existiu.

Recorde-se que o grosso da inquietação e insatisfação da sociedade está umbilicalmente atrelado à perversa conjugação de disparada da inflação e dos juros. A ascensão da inflação permanece associada aos choques de oferta de alimentos e energia – alguns de origem exógena e outros fruto de intempéries climáticas (excesso de chuvas ou estiagem) e da precariedade da logística de distribuição das sucessivas supersafras -, e a desgarrada dos preços dos serviços, absolutamente imunes às pressões das importações.

Acrescente-se as pressões inflacionárias de demanda surgidas do aumento exponencial das necessidades de financiamento do setor público, desde os esforços para a edificação da PEC da Transição, no final de 2022, direcionada à acomodação das promessas sociais da campanha eleitoral, agravados pelo abrandamento da Nova Regra Fiscal, criada em 2023 em substituição ao Teto de Gastos, e flexibilizada e/ou descumprida antes mesmo do primeiro aniversário.

O conjunto de ingredientes anunciado abarca a edição de Medida Provisória (MP) que acrescenta, como destino dos haveres do Pré-Sal – sujeito a curva decrescente a partir de 2027, a não ser que ocorra a exploração da margem equatorial -, projetos de infraestrutura social e de enfrentamento das dramáticas alterações climáticas.

A alocação de R$ 15 bilhões alocados nas faixas 1, 2 e 3 do Programa Minha Casa Minha Vida ensejaria o emprego dos montantes oriundos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que contempla os grupos 2 e 3, para o financiamento subsidiado, bancado pelo Tesouro Nacional, apartado para um provável novo intervalo de atendidos, com renda mensal entre R$ 8 mil e R$ 12 mil.

Em linha análoga houve a inserção no regime de gratuidade do auxílio gás às 20 milhões de famílias inscritas no Cadastro Único e o encampe definitivo do Programa Pé-de-Meia (em pelo menos três municípios, o número de bolsistas inscritos supera o de estudantes matriculados nos estabelecimentos escolares, revelando bagunça estatística ou contaminação por fraudes), ainda acéfalos de explicitação de fontes de recursos na peça orçamentária relativa a 2025.

Há igualmente a vontade de ampliação dos limites de empréstimos concedidos por instituições financeiras públicas federais e regionais a estados e municípios – cujos dispêndios, por sinal, superaram os da União, no segundo semestre de 2024 – para até 45% do correspondente patrimônio de referência.

Também como elementos destacáveis aparecem a liberação dos saldos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) aos optantes pelo saque aniversário, a antecipação do décimo terceiro salário para aposentados e pensionistas do INSS, em abril/maio ou maio/junho, e a construção de canal de acesso às linhas de crédito consignado pelos trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Esse último incentivo é particularmente relevante em um contexto de estratosférico custo e resistência do endividamento das famílias em patamares recordes – a despeito da constatação dos maiores níveis de rendimento e menores taxas de desemprego, apuradas pela série histórica da PNAD Contínua do IBGE, iniciada em 2012 -, por conta especialmente da dobradinha formada por inflação e juros, com desdobramentos contracionistas na renda líquida disponível.

Outra vertente audaciosa compreendeu o projeto de lei, encaminhado pelo poder executivo ao legislativo, que isenta do pagamento do Imposto de Renda-Pessoa Física (IR-PF) os trabalhadores com rendimentos mensais de até R$ 5 mil, oferece um abatimento crescente para a faixa entre R$ 5.001 e R$ 7 mil/mês, e, a partir disso, desonera somente até dois salários mínimos.

A iniciativa deverá resultar em renúncia de impostos de cerca de R$ 27 milhões, em 2026, que será coberta integralmente com a cobrança de tributação mínima da categoria de renda mais elevada, conforme cálculos, ou melhor pressuposições, do Ministério da Fazenda.

Seria uma espécie de resgate de um audacioso compromisso de campanha, viabilizado pela compensação, paliativa e transitória, da ausência de circunstâncias propícias ao diálogo, articulação e negociação política para o ataque à flagrante regressividade, determinada pela insuficiência de alíquotas crescentes que alcancem o pico da pirâmide de rendimentos.

Em um ambiente institucional inóspito não se vislumbra qualquer margem de manobra para a aprovação de uma atualização na tabela do gravame, a instituição de novas taxas de contribuição, abarcando lucros e dividendos, e feitura de abrangentes modificações no arcabouço de aplicação direta sobre a renda.

Tais transformações só seriam factíveis com a eliminação dos tratamentos especiais que propiciam que 0,06% do contingente dos mais abastados sejam atingidos por alíquota média de 2,54% sobre a soma das rendas, após todas a deduções previstas na declaração.

De outra parte, parcela expressiva da massa de rendimentos dos estratos do “andar de cima”, como rotula o jornalista e escritor Elio Gaspari, origina-se do ingresso de lucros e dividendos, pagos por organizações empresariais submetidas a esquemas especiais, ou subtributação, como o Simples (alíquota média de 4% a 6%) ou Lucro Presumido (taxação de 11%), amenizando o fardo de impostos de médicos, dentistas, advogados, profissionais liberais e contratados sob o regime de pessoa jurídica (PJ).

Nesse sentido, o documento entregue ao Congresso Nacional prevê que ao redor de 141 mil pessoas portadoras de renda superior a R$ 600 mil por ano, ou R$ 50 mil mensais, ficarão sujeitas à cobrança de uma quota mínima escalonada, começando com 0,5% e chegando ao teto de 10%, para os detentores de renda de R$ 1,2 milhão/ano.

Ficarão de fora, da taxação na fonte, os dividendos repartidos por empresas entre os sócios, quando suplantarem a taxação corporativa de quase 34%, uma das mais elevadas do mundo e a maior entre as nações de renda média, que penaliza, em grande medida, os investidores.

Portanto, cumpre reconhecer que, em um raro episódio de lucidez e pragmatismo, ainda que de cunho populista e imediatista, de olho nas eleições de 2026, a comunicação oficial conseguiu associar o conteúdo da providência do IR à premência de imposição de reparos à um aparato cheio de anomalias.

Mais do que isso, depois de incontáveis falhas cometidas na transmissão de mensagens de ações positivas, aparentemente o governo venceu um round no convencimento da sociedade acerca do interesse de perseguição da diminuição da desigualdade social, por meio de estratégia não convencional de distribuição de renda, à margem das iniciativas assistencialistas, dirigidas às camadas mais pobres da população.

Quase sempre amparado em emissão de faturas de déficits orçamentários e endividamento público, o ativismo estatal voltado à proteção social, em condições de volatilidade do arranjo macroeconômico, costuma ensejar repiques de inflação e ascensão dos juros, antes mencionados, prejudicando, sobremaneira, aquela vasta fração populacional que, ao menos na retórica, se tenciona preservar.

Decerto que, se autorizado pelo parlamento, o modelo sugerido deverá afetar o fragilizado equilíbrio federativo, na perspectiva de diminuição, mesmo que temporária, dos repasses do fundo de participação de estados e municípios, obedecendo densidade eleitoreira mais avantajada do que a adotada por Jair Bolsonaro, em 2022, quando zerou os impostos federais sobre gasolina, diesel, álcool e gás e forçou governadores a acompanharem a renúncia da União com a diminuição da alíquota do ICMS, e despejou benesses a taxistas e caminhoneiros.

As inferências estatísticas revelam o gigantismo da presente incursão no conflito distributivo. Aproximadamente 65% do total de 26 milhões de declarantes serão agraciados pela isenção e mais de 90% dos submetidos à cobrança de IR estarão na zona de retirada do pagamento ou de redução da cunha de incidência.

A resposta às benevolências fiscais na recomposição plena da confiança na condução oficial resolução dos problemas mais prementes que afligem a população será conhecida apenas em outubro de 2026, quando a intensificação da postura intervencionista poderá ser melhor avaliada.

Na ocasião, os impactos das medidas poderão ser cotejados com as críticas e plataformas propositivas do campo conservador – preenchido e, sobretudo, dominado pela corrente de extrema direita – até aqui, em sua maioria, representadas por bandeiras e pretensões de enésima geração ou pouco qualificadas, presentes nos palanques derrotados em 2022.

Além disso, ao que tudo indica, a postura dos ortodoxos será afetada pela inevitável fragmentação, em circunstâncias de transcurso do julgamento, condenação e prisão do líder maior, ao qual – que “só passa o bastão depois de morto” – nutrem fascínio e fiel e/ou cega devoção.

A título de não esquecimento, a penalização do capitão et caterva deriva sumariamente do crime de “tentativa” de supressão da democracia brasileira, duramente recobrada, em 1985 – depois de vinte e um anos de regime de arbítrio, repressão e violação de liberdades individuais e coletivas -, caracterizando o período mais longevo dos 135 anos de República.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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