Fundo do poço das estatais: retorno dos arrastões

Fundo do poço das estatais: retorno dos arrastões
Gilmar Mendes Lourenço.

O desempenho das empresas tuteladas pela gestão pública no Brasil sugere o não aprendizado com erros, lições e castigos decorrentes das investigações e condenações atreladas aos escândalos de corrupção e pagamento de propinas do Mensalão, na década de 2000, capitaneados pelos Correios, e do Petrolão, nos anos 2010, que vitimou a Petrobras.

A despeito de parte dos julgamentos e penalidades terem sido aliviadas e/ou anuladas por instâncias judiciárias que, paradoxalmente, reprovaram os episódios, é impossível deixar de enxergar a subida dos degraus de combate aos desvios de recursos retirados compulsoriamente da sociedade para a compra de apoio fisiológico ao poder executivo, vendido descaradamente por componentes do legislativo avessos às demandas nacionais.

O argumento de não compreensão pode ser de imediato comprovado pela identificação de que as companhias pertencentes à União amargaram déficit de R$ 2,73 bilhões, entre janeiro e abril de 2025, o que correspondeu ao recorde histórico para o quadrimestre, conforme levantamentos do Banco Central (BC), contra estouro de R$ 1,68 bilhão, no mesmo período de 2024.

Vale a pena recordar que as contas das empresas públicas federais haviam fechado o exercício de 2024 com perda de R$ 6,73 bilhões, o maior patamar dos acompanhamentos, começados em 2002, em um cenário de intensificação da mudança da tática de execução de controles mais rigorosos, concebida e deflagrada no governo de Michel Temer.

Mais precisamente, depois de expressivos esforços de saneamento das estatais subordinadas ao Tesouro Nacional, integrantes do Orçamento Geral da União (OGU), e não sujeitas ao regramento via mercado (como, por exemplo, Petrobras), empreendidos na administração Temer e, em menor medida, de Bolsonaro – ferrenha e intransigentemente empenhada no fracassado projeto de reeleição -, os resultados financeiros sofreram acentuada deterioração a partir de 2023.

O caso mais emblemático repousou nos Correios, esbanjando cifras vermelhas em 2022 (R$ 767 milhões), 2023 (R$ 597 milhões) e 2024 (R$ 2,6 bilhões), suplantando em mais de 70%, o R$ 1,5 bilhão, apurado em 2016, quando da então definição preliminar de aptidão à colocação na cesta de privatizações.

A péssima performance foi imputada à questionável concretização da programação de grandes inversões em tecnologia, renovação de frota e infraestrutura, dirigida ao adensamento e diversificação da capacidade e impulsão da eficiência da rede de coleta e distribuição, objetivando justamente a inversão do quadro de adversidades crônicas, conjunturais e estruturais.

O que se viu, na sequência, foi a obtenção de um prejuízo de R$ 1,72 bilhão, no primeiro trimestre de 2025, mais de duas vezes maior que o buraco experimentado em igual lapso de 2024, sendo ainda o mais elevado para o período desde 2017, e o maior entre as estatais, além de variação patrimonial (bens e recursos em caixa menos dívidas e obrigações) negativa em R$ 6,1 bilhões.

Um complicador adicional compreende a dependência, do balanço anunciado, de apreciação pelo plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), em função de suspeitas de descumprimento de emprego de procedimentos técnicos considerados padrão visando à minimização dos valores negativos em 2023.

Na verdade, com o vertiginoso declínio das receitas e a ampliação dos prejuízos e da concorrência, a rotina administrativa e financeira dos quase 84 mil funcionários – no final de 2024, aconteceu concurso público para a arregimentação de outros 3,5 mil, sob a alegação de substituição de desligamentos por aposentadoria -, sendo 46 mil carteiros, nas cerca de 10 mil agências – próprias, comunitárias, franqueadas e comissionárias, sendo somente 15% superavitárias – espalhadas pelo território nacional de modo a assegurar a universalização dos serviços postais, vem sendo marcada por inúmeras anomalias.

Dentre elas destacam-se os frequentes atrasos na quitação de débitos com transportadoras e fornecedores de combustíveis e a iminência de ocorrência de um apagão operacional, decorrente da deterioração física de várias agências e do atraso nas entregas de encomendas.

Destaca-se igualmente a escassez de itens de material de expediente, como papel, fitas adesivas e envelopes, morosidade na prestação dos serviços de Sedex, interrupção das entregas diárias e retardos no repasse de aportes obrigatórios para a previdência complementar dos funcionários.

A par disso, outro agravante, só que de natureza estrutural, foi o desprezo à inexorável necessidade de enquadramento aos ditames das modificações de hábitos da sociedade, particularmente com a despencada dos despachos das diferentes modalidades de correspondência, especialmente cartas, telex e boletos.

Em simultâneo ao salto de 10,5% do e-commerce, em 2024, a arrecadação líquida da empresa com vendas e serviços, incluindo encomendas, encolheu -1,74%, puxada pelo decréscimo de -12,0% na comercialização internacional, atribuída à “taxação das blusinhas”, ou a tributação das compras externas de até US$ 50, determinada pelo Ministério da Fazenda.

Diante da persistência e maximização do ambiente adverso, a direção da empresa manifestou propósito de redução de dispêndios de cerca R$ 1,5 bilhão, assentado na implantação de um programa de demissões voluntárias (que já possui mais de 4 mil adesões), no adiamento de férias de funcionários, no retorno pleno ao trabalho em modo presencial, na revisão criteriosa das benesses com os planos de saúde, na diminuição da jornada de trabalho e salários, e na eliminação de funções comissionadas, em grande parte preenchidas por critérios pouco transparentes.

A esse respeito, de acordo com a Coluna Radar, da Revista Veja, de 6 de junho de 2025, o Ministério Público Federal (MPF) está investigando crimes de coerção e abuso de poder, por meio da montagem de um cabide de empregos de familiares dos membros do staff superior dos Correios em entidades contratadas.

Apenas em caráter de ilustração acerca dos escabrosos dispêndios com pessoal, enquanto a receita total dos Correios recuou – 0,9%, em 2024, a massa de recursos endereçada ao pagamento de funcionários subiu 7,9%, impulsionada por reajustes, gratificações e benefícios inscritos em acordo coletivo, abarcando até a concessão de R$ 2,5 mil por funcionário no final do ano, denominada “vale peru”, o que atesta flagrante enfraquecimento da eficiência.

Recentemente sobrou para a estatal a execução do trabalho de atendimento presencial de aposentados e pensionistas do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) roubados por articulações nefastas conduzidas por entidades representativas de associações.

Por ocasião do mandato de Bolsonaro (2019-2022), a empresa foi encaixada no Plano Nacional de Desestatização (PND), conduzido pelo BNDES, tendo, no entanto, enroscado na burocracia de conveniência, reinante no Congresso Nacional, explicada por poderosas pressões geradas por interesses políticos e corporativos, especificamente do movimento sindical.

Nessas circunstâncias, não foi difícil para que motivações puramente ideológicas e anacrônicas, ou intenções de reaparelhamento partidário das estatais, levassem Lula 3 a retirar a companhia, junto com a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e o Ceagesp, do programa de privatizações, e preservar a condição de acionista majoritário da União, dotada de imunidade tributária e do monopólio postal nacional, que, inescapavelmente, redundará em encaminhamento das faturas ao Tesouro Nacional.

A cúpula da empresa também tenciona viabilizar a meta de investimentos de mais R$ 1,6 bilhão, em 2026, e a conquista de reforço de caixa de R$ 3,8 bilhões, na forma de empréstimo junto ao Banco dos Brics, comandado pela ex-presidente da república, Dilma Rousseff, o que vem acalentando delírios de constituição de plataforma de comércio própria e banco digital.

Para se ter uma ideia da pequenez desses montantes, basta verificar que o Mercado Livre pretende aplicar R$ 34 bilhões na ampliação da rede logística utilizada no Brasil, sem contar os projetos de Amazon, Shopee, DHL, Loggi, FedEx, dentre outras empresas do ramo de entrega de pedidos

Um outro exemplo frustrante correspondeu ao restabelecimento operacional do Centro Nacional de Tecnologia Avançada, retirado do pântano da liquidação pelo governo atual, com o objetivo de redobrar esforços voltados à fabricação de semicondutores.

Essa deliberação aconteceu a despeito da notória desvantagem comparativa nacional, principalmente em relação às nações asiáticas, da exigência de vultosos volumes de investimentos em ciência e tecnologia, e, o que é pior, da demorada maturação dos projetos.

Em semelhante direção figura a Telebrás, ligada ao Ministério das Comunicações, que, até os anos 1990, representava o monopólio da União no segmento de telecomunicações, sendo encarregada da telefonia fixa, do embrião da rede de celular e da transmissão de dados. Com a privatização do sistema, em 1998, a companhia foi desativada e ressuscitada mais de uma década depois, em 2010, sob Lula 2, sendo encarregada da gestão de banda larga visando à universalização do acesso aos serviços de internet.

O previsível malogro tornou a empresa novamente privatizável, no mandato de Michel Temer (maio/2016-dezembro/2018), ficou em “banho-maria” na gerência The Flash do ministro Paulo Guedes (2019-2022), e recobrou os expedientes de utilização política, em Lula 3.

Em 2024, a estatal amargou prejuízo de R$ 252,1 milhões, mais que o dobro do aferido em 2023, fruto inclusive da migração de buraco de R$ 77 milhões, do exercício anterior, o que, na apreciação do Tribunal de Contas da União (TCU, configura gambiarra fiscal.

Nesse contexto, soa inoportuna a proposta de acréscimo do contingente de colaboradores, passível de designação por apadrinhamento político, de 56 para 88, representando 19% do total de funcionários da empresa, o que exigirá dispêndios adicionais anuais de R$ 12,3 milhões, a despeito da existência de parecer técnico desfavorável emitido pela Secretaria de Coordenação e Governança das Estatais (Sest), conforme relatado no Editorial do jornal O Estado de S. Paulo, de 11 de junho de 2025.

Por tudo isso, é fácil perceber que a perene peculiaridade periclitante das organizações federais possui estreita relação com a combinação perversa de estratégias absolutamente dissociadas da dinâmica de mercado – o que, na maioria das vezes, as torna, segundo os princípios técnicos mais elementares, dispensáveis -, hospedagem de protegidos de políticos no corpo diretivo, e sua legião de assessores militantes, e, em consequência, abandono das melhores práticas recomendadas pelos manuais de gestão.

Logo, a continuidade do funcionamento das companhias estatais deve ser avaliada pontual e pormenorizadamente, obedecendo à verificação do cumprimento das exigências eminentemente técnicas, que, ao que tudo indica, ensejaria a escolha pela sobrevida e/ou preservação de um número extremamente reduzido delas.

Até porque, ao traduzirem a preponderância do controle político sobre a racionalidade econômica e serem dispensadas da nobre arte de competição de mercado, marca indisfarçável das economias capitalistas, as empresas públicas permanecem reféns da crescente provisão de haveres orçamentários para a cobertura de recompensas a sequestradores de plantão.

Isso propicia o surgimento e perpetuação de um círculo vicioso, formado por atividades ensimesmadas e/ou localizadas em mundo paralelo, notabilizadas por não poucas ineficiências e produção de sucessivas perdas operacionais e patrimoniais, a serem inevitavelmente equacionadas com operações de socorro com haveres do estado.

O mais gritante é que o aparelho de estado, por seu turno, encontra-se “capturado e algemado” por medonhas gangues e crescentes arrastões, encarregados da encenação de atos grotescos em comissões do parlamento e ocupadas prioritariamente com a fabricação de recortes para publicação em redes sociais, insensíveis ao imperativo de promoção de choques de gestão e indiferentes à potencialização das necessidades de financiamento e das dificuldades de rolagem dos passivos públicos.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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