Porque dizer não ao estado mínimo

Gilmar Mendes Lourenço.
As chances de intensificação do desequilíbrio das contas públicas, expressas na multiplicação de apostas de descumprimento da meta fiscal retrátil, ou a Nova Regra Fiscal (NRF), criada em 2023 em substituição ao desidratado e desprezado “teto de gastos”, e propaladas pelos meios especializados, sugerem um “prato apetitoso e farto” aos famintos defensores do “estado mínimo”.
Por motivações ideológicas e/ou puro oportunismo político, caracterizado pela antecipação do ciclo eleitoral de 2026, os propagadores do encolhimento da “intromissão” estatal no cotidiano das pessoas e empresas, engajados na bandeira erguida pelo Ministro da Fazenda da administração anterior, o liberal Paulo Guedes, tencionam fervorosamente a extinção do contrato social emanado da Carta Magna de 1988: o Welfare State brasileiro.
No entanto, a propagada dominância fiscal, levantada e sentenciada pelos experts, que se verifica por ocasião da constatação de incapacidade de cobertura das necessidades de financiamento da máquina pública sem a geração de tensões inflacionárias e seria a justificativa principal à preservação dos juros escorchantes cobrados no país, constitui fenômeno ainda fora do alcance do radar conjuntural.
Aos que duvidam dessa argumentação, a sugestão básica se resumiria à realização de consulta às estatísticas fiscais disponibilizadas pelo Banco Central (BC). Em sendo isso feito, será fácil perceber que o setor público consolidado apresentou superávit primário (receitas menos despesas, exceto a inscrição do fardo dos juros da dívida) de 1,35% do produto interno bruto (PIB), no acumulado dos cinco primeiros meses de 2025.
Quando efetuado o cálculo pelo procedimento do conceito nominal, que incorpora os encargos financeiros incidentes sofre o passivo público, chega-se a um déficit de 5,58% do PIB, em igual intervalo, e de 7,58% do PIB, no acumulado de doze meses encerrados em maio de 2025, que, por sinal, é inferior aos resultados dos exercícios fechados de 2023 e 2024, que situaram-se em 8,84% e 8,50% do PIB, respectivamente.
Já a dívida bruta do governo geral chegou a 76,1% do PIB, em maio de 2025, contra 76,5% do PIB, em dezembro de 2024, sendo inferior a maioria das nações avançadas e emergentes, e o endividamento líquido ficou em 62% do PIB, versus 60,4% e 61,5%, nos meses de dezembro de 2023 e 2024, respectivamente.
O nó górdio reside nos juros nominais que equivaliam a 6,93% do PIB e 7,77% do PIB, entre janeiro e maio e em doze meses, respectivamente, contra 6,56% do PIB, em 2023, e 8,09%, em 2024, consequência indiscutível da segunda maior taxa de juros primária do planeta, suplantada apenas pela Turquia.
As rodadas de elevação da Selic, promovidas, pelo Comitê de Política Monetária (Copom), do BC, para, na retórica ou “boa intenção”, combater a inflação de demanda – ou estimular a convergência no sentido do centro da meta, fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) em 3% ao ano, com margem de 1,5 ponto percentual – mostram-se absolutamente impotentes na derrubada dos componentes de custos (exógenos e endógenos) da espiral de preços e benevolentes no atendimento das vontades e interesses privados de otimização dos rendimentos de tesouraria.
O mais grave, contudo, é que a persistência do cenário de austeridade monetária começa a interferir no quadro de recuperação econômica, observada desde o segundo semestre de 2022, apoiada no acréscimo das exportações de commodities, e, notadamente, do consumo das famílias.
Com quedas de -0,2% e -0,5%, em abril e maio de 2025, em relação ao período imediatamente anterior, interrompendo dez meses consecutivos de variação positiva, o nível da produção da indústria atuante no país figura apenas 2,1% acima do pré-pandemia de Covid-19, fixado em fevereiro de 2020, e 15% abaixo do recorde identificado em maio de 2011.
Nessas circunstâncias, ao contrário daquilo que tem sido apregoado pelos mensageiros do apocalipse das finanças governamentais, o salto estrutural no desequilíbrio de caixa e passivo públicos, apurado na última década e meia, repousa menos na gastança patrocinada pela União e mais na apropriação de fatias crescentes dos haveres orçamentários por entes subnacionais, especialmente os municípios.
Apenas em caráter de ilustração quantitativa, enquanto a importância relativa dos dispêndios correntes do poder central pulou de 15,2% do PIB para 16,4% do PIB, entre 2010 e 2024 – com pronunciada influência dos recursos alocados no Bolsa Família, que subiram de 0,4% para 1,7% do PIB – e a dos estados passou de 9,5% do PIB para 10,1% do PIB, a dos municípios disparou de 7,8% do PIB para 10,8% do PIB, no mesmo período.
Essa anomalia na disputa e absorção federativa das cifras da arrecadação de impostos, taxas e contribuições, enseja a inescapável descoberta do peso descomunal da engorda das emendas parlamentares, que, de um lado, serve para turbinar a articulação não republicana dirigida à renovação e/ou eternização de mandatos de deputados, senadores e prefeitos, e, de outro, obscurece e/ou enfraquece a abrangência e eficácia das políticas de estado.
Ademais, de acordo com o BC, a dívida pública federal interna, lastreada em papéis emitidos pelo Tesouro Nacional e dotada de liquidez diária e garantia de recompra, está confortavelmente hospedada no segmento financeiro. Praticamente 80% do valor total dos bônus ofertados integram as carteiras dos bancos, fundos de pensão e investimentos e seguradoras, sendo destituídos de qualquer possibilidade de calote.
Isso porque, a regulação dos laços entre Tesouro e entidades financeiras no Brasil impede, com base em emenda constitucional aprovada em 2001, a repetição de episódios de confisco ou bloqueio de ativos, como ocorrido em 16 de março de 1990, no segundo dia de mandato do presidente Fernando Collor, de triste e dramática memória.
Como se vê, a interpretação predominante, assentada na necessidade inexorável de drástica diminuição do tamanho do estado, como uma espécie de “tábua de salvação” nacional, destinada à contração e quitação da dívida pública e modernização econômica, parece destituída de bases explicativas sólidas.
Decerto que se revela fundamental a precipitação de diálogos e entendimentos políticos voltados à conquista da estabilização da relação dívida/PIB, em médio e longo termo, por meio da racionalização e redução de despesas e da discussão e aprovação de reformas estruturais capazes de encetar a devolução da eficiência operacional ao aparelho estatal.
Trata-se de aprimoramentos institucionais que deverão abarcar a supressão das vantagens financeiras do legislativo e dos penduricalhos do judiciário (que corresponderam a 44% do ganho médio dos magistrados, em 2024, reengenharia dos procedimentos de gestão governamental, amparada no empenho na extinção de atividades e cargos desnecessários.
Igualmente importante seria o aprofundamento do processo de desestatização, com a viabilização da transferência, à esfera privada, de companhias protegidas sob o guarda-chuva do governo cronicamente ineficientes e/ou suscetíveis ao loteamento e apadrinhamento político.
Essas tarefas tornam-se mais complicadas em ambiente de exacerbação das incertezas decorrente da instabilidade política, ocasionada pelo perene e pleno funcionamento dos palanques eleitorais, com flagrante fragilização do executivo e fortalecimento da musculatura e insurreição legislativa.
O alargamento do poder do parlamento advém do glamour do gerenciamento das emendas e dos fundos (eleitoral e partidário) e da interferência na alocação das verbas ministeriais, independentemente da adesão à base governista ou de comprometimento nas votações das propostas progressistas encaminhadas pelo executivo.
Concretamente, o Congresso Nacional vive o “melhor dos mundos”, estando isento de responsabilidades e habilitado à colheita dos frutos bons propiciados pelas iniciativas oficiais e ao controle do derrame de recursos orçamentários, e, o que é mais gritante, em tempos de acentuada deterioração de qualidade do debate legislativo (se é que ele existe), em razão da construção de uma autêntica transição geracional.
O rito de passagem engloba o desaparecimento dos velhos tribunos, essencialmente analógicos, todavia craques, normalmente atentos e/ou presos aos interesses da população, coadjuvados ou contraditados, na maioria das vezes, pelos coronéis regionais, e o surgimento de novidades despreparadas para o debate democrático, dotadas de posturas de “pernas de pau”.
Na falta de curiosidade de apreensão das pautas aderentes aos anseios convergentes e divergentes dos atores sociais, os membros dos grupos de novatos, concebidos sob a matriz digital e afetos à agenda conservadora, preferem dedicar-se quase que exclusivamente à feitura de “pronunciamentos” ou narrativas inflamadas, endereçados a “plateias reborn”, bolhas sedentas pelo acesso aos “recortes” mobilizadores das redes sociais.
Não obstante, é preciso entender que a condição de encalhe ou aprisionamento do Brasil na armadilha de nação de renda média, notabilizada por não poucos e relevantes atrasos econômicos e acentuada desigualdade no tecido social, desautoriza a dispensa da tarefa reguladora e contracíclica do estado, contemplada na plataforma de direita.
A complexidade desse assunto provocativo exige uma abordagem ou qualificação pormenorizada e cuidadosa, ancorada em dados, informações e indicadores, a ser contemplada no artigo da próxima semana. Até lá.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.