O desenho da maior recessão da história mundial
As estatísticas econômicas globais, relativas ao 2º trimestre de 2020, particularmente as estimativas de variação do produto interno bruto (PIB), para os principais continentes e nações, já disponibilizadas, corroboram a conformação da maior recessão da história, derivada dos efeitos nefastos causados pela pandemia do Novo Coronavírus, que apareceu na China, no final de 2019, e se espalhou rapidamente pelos mais distantes e diferentes lugares do planeta.
De fato, trata-se de desmonte de praticamente uma década de expansão generalizada e ininterrupta, que expressou sintomas de desaceleração entre o 2º semestre de 2018 e o 3º trimestre de 2019, surgidos por conta da intensificação da guerra de tarifas de comércio entre Estados Unidos (EUA) e China e algumas tensões geopolíticas, porém com perspectivas de gradual reversão no corrente ano.
As expectativas de reconstrução do cenário virtuoso foram desmontadas com a eclosão do Sars-CoV-2 e os enormes estragos subsequentes, associados ao avanço consistente da doença, enquanto a ciência não descobre a vacina, que impôs a adoção de providências de limitação da circulação de pessoas e paralisação das atividades de produção e distribuição, com permissão de funcionamento restrito aquelas consideradas essenciais.
Mesmo com o derrame de somas expressivas de recursos fiscais e financeiros, por parte de governos e bancos centrais, em quase todo o universo de economias avançadas e emergentes, voltado à salvação de vidas, empresas e empregos, o desastre vem revelando proporções inéditas.
Por enquanto a bomba inflacionária acoplada à exponencial subida do déficit e dívida pública e oferta de haveres creditícios a juros negativos permanece desarmada, em razão das posições defensivas tomadas pela iniciativa privada, sintetizadas em cortes de gastos e investimentos.
O caso chinês configura exceção, por, indiscutivelmente, conferir, desde o princípio, atenção compatível com a gravidade da crise sanitária. Nesse sentido, a postura asiática diferiu diametralmente de inúmeras nações que negligenciaram o potencial destrutivo do vírus, por ocasião do seu aparecimento, e empregaram confinamentos da população e interrupções econômicas apreciáveis, quando acordaram e perceberam a dimensão do problema.
No entanto, os mesmos países relaxaram as restrições a partir dos primeiros (e falsos, por sinal), indícios e pressuposições de controle da patologia e das permanentes pressões do mundo corporativo, palco da disseminação do igualmente falacioso embate entre economia e saúde.
Assim, depois de encolher -6,8%, entre janeiro e março do corrente exercício, em relação ao 4º trimestre de 2019, sendo a 1ª queda desde 1992, a economia chinesa cresceu 3,2%, entre abril e junho de 2020, de acordo com o Departamento Nacional de Estatística, o que resultou em decréscimo de -1,6%, no 1º semestre.
Não se trata da retomada em formato V do gigante chinês, como previa parcela dos meios especializados. Ao contrário, será uma recuperação lenta e gradual, baseada no trinômio formado por indústria, emprego e infraestrutura, fruto dos expedientes de apoio governamental, em especial a substancial elevação dos dispêndios públicos, a isenção de impostos e a diminuição das taxas de juros e reservas bancárias, ajustados a permanente necessidade monitoramento de recidivas da Covid-19. Nesse particular, emerge o risco de eterno estouro da bolha de endividamento e crédito.
Afora o caso chinês, os desdobramentos da endemia nos patamares de atividade e emprego vêm se mostrando devastadores, com diminutas chances de revivida em curto prazo. O PIB dos EUA diminuiu -9,5% no 2º trimestre de 2020, em relação aos três meses antecedentes, após retração de -5,0% nos primeiros três meses do ano, na mesma referência de cotejo, segundo o Escritório de Estatísticas Econômicas (BEA), ligado ao Departamento do Comércio do país.
Tal desgraça reproduz a pior performance desde a Grande Depressão da década de 1930, imputada à fragilização das despesas de famílias e empresas, com significativa compressão da produção e vendas das firmas e disparada do desemprego, fenômeno que ensejou recuo sem precedentes na massa salarial e lucros corporativos, a despeito da vultosa ajuda monetária, por meio de transferências diretas de renda à população menos favorecida, acionada pelo governo, e a cobrança de juros reais negativos nas operações de empréstimos e financiamentos.
Em sentido semelhante, a grandeza macroeconômica da Zona do Euro – 19 países da Europa que utilizam a moeda comum – exibiu o maior tombo da série histórica, que tem início em 1995, no 2º trimestre. A descida de ladeira foi de -12,1%, em confronto com o 1º trimestre, quando já havia caído 3,6%, em comparação com outubro-dezembro de 2019, de acordo com inferências preliminares da Agência Oficial de Estatísticas da União Europeia (Eurostat). Projeções denotam o retorno ao nível pré-pandemia, na melhor das hipóteses, apenas em 2023.
Aliás, o PIB dos 27 membros do UE caiu -11,9%, puxado por Alemanha, a 4ª economia mais encorpada do planeta e a maior do continente, que decresceu -10,1%, sendo este o maior declínio apurado desde os anos 1970, quando o Escritório Federal de Estatísticas (Destatis) passou a efetuar o levantamento e consolidação dos dados primários e respectivos cálculos.
Como se vê, apesar das grandes somas de socorro fiscal e financeiro, contidas nos pacotes de incentivos lançados para abrandamento ou até inversão dos impactos da instabilidade sanitária, as principais economias do mundo amargam decréscimos abissais.
Essas escorregadas sugerem que o surto ainda não teria completado a sua obra devastadora, inclusive com a produção de reviravoltas nas eventuais marchas de reativação do ciclo de negócios. Isso é particularmente verdadeiro nos estados do Sul e Oeste dos EUA, em vários países europeus e no Japão.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, ex-presidente do Ipardes.