A postura do governo brasileiro
Depois de cumprir quase três decênios de atuação parlamentar apagada e medíocre, na mais polida, generosa e tolerante das avaliações, o atual mandatário brasileiro revelou aguçada percepção dos ventos políticos dominantes, logo após a votação do impedimento da presidente Dilma Rousseff, em agosto de 2016, e a subsequente complicada gestão de Michel Temer.
Cumpre lembrar que o governo Temer padeceu com as resistências políticas derivadas da acusação de participação ativa na organização de uma espécie de golpe parlamentar contra a ex-presidente Dilma Rousseff e, sobretudo, do vazamento, em 17 de maio de 2017, de um áudio contendo uma conversa comprometedora com um grande empresário, em março daquele ano.
Decerto que Bolsonaro tirou proveito da predominância de um cenário de negação dos comportamentos impregnados nas políticas tradicionais; de repúdio à corrupção generalizada, identificada e investigada no âmbito da Operação Lava Jato, com destaque para a articulação promíscua entre membros dos poderes executivo, legislativo e gigantes corporações privadas, lideradas por empreiteiras.
Igualmente usufruiu dos evidentes sinais de fadiga da aliança hegemônica de poder, instaurada a partir de 2003, principalmente com a observação dos estragos provocados pela Nova Matriz Econômica, intervencionista e populista, no aparelho de produção e no tecido social, especialmente de 2011 em diante, com a desarrumação da estrutura de preços relativos atrelada à manipulação política dos preços e tarifas públicas e da taxa de câmbio.
Assim, em circunstâncias de flagrante deterioração da agenda baseada no populismo redistributivista, fortemente dependente do bônus internacional e da solvência do setor público, o lançamento de uma plataforma bastante genérica de proposições conservadoras, no terreno dos costumes, e liberais, no front econômico, apresentou apreciável apelo e capacidade de convencimento popular.
A dinâmica do ciclo eleitoral, dominada por elevado número de postulantes ao cargo máximo da nação, portadores de diagnósticos parciais e/ou equivocados das mazelas que afligiam a sociedade e bandeiras gerais e confusas, na maior parte dos casos, em um contexto de polarização ideológica, representou campo fértil para a simplificação do evento na mensagem “nós contra eles”, marcado por expressiva e, por vezes, criminosa, utilização das mídias digitais, e escape dos debates, por parte do candidato que ostentava a primeira colocação nas sondagens de opinião, aspecto favorecido pelo lamentável incidente de tentativa de assassinato do mesmo.
Paradoxalmente, o desfecho do episódio eleitoral, com a vitória da aliança ortodoxa-liberal, não oportunizou, no transcorrer do período de transição ou mesmo depois da posse, a realização de uma empreitada de transformação detalhada do programa de campanha em plano de governo.
Ao contrário, o presidente preferiu a manutenção dos palanques, montados em 2018, e a continuidade da feitura de constantes ataques contra os redutos derrotados, em inúmeros fóruns, o que serviu para despertar descontentamento dos grupos aliados e, pior, a deflagração de movimentos de reordenamento das hostes oposicionistas de centro e esquerda, derrotadas nas urnas.
O mais gritante, porém, é que em cumprimento ao preceito de desprezo ao presidencialismo de coalisão, reinante desde a redemocratização nacional, iniciada em 1985, Bolsonaro não esboçou qualquer intenção de formação de sólida retaguarda legislativa, crucial à tramitação e aprovação dos projetos prioritários, e escalou uma equipe de gestão caracterizada pela desconexão, inexperiência e incapacidade de realização de esforços de articulação política.
Mais especificamente, trata-se de um time composto por quatro grupos – militar, ideológico, religioso e econômico – desprovidos de ligações relevantes e integrados por guerreiros empenhados no direcionamento de flechas em múltiplas direções, que, de forma perene, atingem diversos extratos sociais minoritários, comunidade sindical e empresarial, entidades políticas, instituições da república, imprensa, atores externos e outros agentes da sociedade civil.
A inclinação burocrática e retrógrada prevalecente nas ações das pastas ocupadas por oriundos da caserna, a natureza ultrapassada das teses levantadas, defendidas e disseminadas no interior dos ministérios conduzidos por supostos representantes divinos e o paradigma conservador – ditado por um astrólogo residente no exterior, arauto da teoria da terra plana -, que, em vez de lubrificar, passou a enferrujar as desgastadas engrenagens do Estado, contribuíram, de forma decisiva, para o delineamento de um governo dotado de feições caricatas.
Dentre as proezas destacáveis surgem o alinhamento incondicional do país com os desmandos e loucuras cometidas pelo ex-presidente dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump, derrotado nas eleições de 2020, os não poucos incidentes diplomáticos com parceiros comerciais e/ou geopolíticos estratégicos e a abdicação de participação ativa na pauta de sustentabilidade, debatida e perseguida pelos estados e instâncias globais.
As incursões econômicas também se mostraram bizarras e/ou desvinculadas da premência de conciliação entre a perseguição do equilíbrio fiscal e financeiro estrutural da esfera pública e a modernização e melhoria da eficiência da microeconomia.
Enquanto, na retórica, o staff de Paulo Guedes sugeria fazer, em um ano, tudo o que não feito em mais de três decênios, na prática nada andou em consequência de falhas de avaliação, irrealismo propositivo e insuficientes ensaios de entrosamento de jogadas com o Congresso, o que minou as chances de avanço das reformas institucionais, a exceção da previdenciária, cuja deliberação decorreu essencialmente de árduo trabalho legislativo.
A ilha de excelência repousou nas iniciativas do Banco Central (BC) que, ao admitir, com algum retardo, a trajetória depressiva dos níveis de atividade, em paralelo ao declínio consistente dos índices de inflação, desencadeou sucessivas rodadas de cortes dos juros primários do país.
A postura correta da autoridade monetária não conseguiu contaminar, de modo virtuoso, o lado real do sistema, em função da não diminuição dos juros finais, em um estágio de elevada inadimplência de firmas e consumidores e alargamento do poder de oligopólio exercido pelas corporações financeiras de grande dimensão, e da exacerbação do pessimismo dos agentes em relação ao futuro.
Não por acaso, a catástrofe sanitária causada pelo Novo Coronavírus atingiu o organismo brasileiro em condições de extrema debilidade, com sintomas de um quadro de estagnação econômica e regressão social, destituído de perspectivas de reação e melhora em curto termo.
A penosa trajetória de evolução exponencial e o descontrole da pandemia em território nacional são dramática e suficientemente conhecidos, tendo contado com a extraordinária contribuição da posição passiva e negligente do presidente da república, por meio da minimização da patologia, estímulo à desobediência das medidas de isolamento e distanciamento social decretadas por governadores e prefeitos e insensibilidade à dor das famílias dos milhares de mortos.
Não menos importante foi a defesa do uso de medicamentos ineficazes, desprezo à ampliação da fronteira do conhecimento científico e emprego de justificativas esfarrapadas por sua inação, notadamente aquela em que sublinha estar de mãos atadas por proibição do Supremo Tribunal Federal.
Isso se torna especialmente verdadeiro ao se constatar que as providências mitigadoras dos desdobramentos econômicos e sociais do rápido alastramento da Covid-19 no país só foram viabilizadas com a influência determinante do parlamento, preponderante o auxílio emergencial aos vulneráveis, o orçamento extraordinário, o socorro financeiro aos estados, a disponibilização de crédito subsidiado e a preservação de parcela dos empregos formais.
Os exemplos patéticos e concretos da desastrada performance governamental no enfrentamento do curso da doença repousam na derrota no embate político das vacinas, travado com o governador de São Paulo, e no enrosco das importações dos imunizantes da AstraZeneca, fabricados na Índia, e da liberação dos insumos da Coronavac, produzidos na China, resultado da escassez de habilidade e de vômitos de grosserias dos encarregados das relações exteriores brasileiras.
Por tudo isso, é fácil perceber que, em vez de pavimentar os caminhos de diplomacia de 1ª linha, no espaço internacional, compatível com os anseios e demandas dos entes domésticos, o governo brasileiro optou deliberadamente pela adoção de uma postura de pária, em clara e subserviente imitação aos atos de Donald Trump.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, ex-presidente do IPARDES.