Política macroeconômica de Guedes em “ponto morto”
A breve exposição feita pelo representante brasileiro no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, neste janeiro de 2022, o ministro da Economia, Paulo Guedes, englobou afirmações imprecisas e incursões desconectadas da realidade mundial e nacional que não resistiriam a apreciações técnicas criteriosas.
Em tom professoral, o ministro sugeriu o descarte da natureza transitória dos focos inflacionários em escala planetária, distúrbio já levantado e alertado, há algum tempo, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Ademais, na qualificação do drama inflacionário, Guedes omitiu os elementos explicativos da escalada de preços no Brasil, bastante superior à das principais nações avançadas e emergentes.
Enquanto a variação anual de preços está em 8,4%, na Rússia, 7,4%, no México, 7%, nos Estados Unidos, 6,5%, na Espanha, 5,3%, na Alemanha, 5%, na Zona do Euro, 4,8%, no Canadá, 4%, em Cingapura, 3,9%, na Itália, 2,8%, na França, 1,5%, na China, e 0,8%, no Japão, por aqui o IPCA e o INPC superam a barreira de 10%.
O chairman da economia também assegurou que o país teria se antecipado ao resto do mundo no desmonte do arsenal de instrumentos monetários e fiscais expansivos, em 2020 e 2021, mirando a contenção da espiral de preços. Pelo jeito, ao menos até aqui, não deu certo.
Ainda segundo Guedes, em contraste com o ocorrido no restante do planeta, a nação já teria alcançado a posição fiscal imediatamente anterior ao surto do Novo Coronavírus, quando “a economia estava bombando”, e exibiria condições de vigorosa retomada da dinâmica de geração de postos de trabalho e sustentado declínio da dívida pública.
Em análoga batida, o ministro exprimiu desproporcional euforia com a autorização da largada das tratativas destinadas ao cumprimento dos requisitos para avaliação do pedido formal, protocolado pelo governo Temer, em 2017, para ingresso do Brasil no seleto clube de países que compõem a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A apreciação da solicitação pela entidade poderá durar anos e estará condicionada ao estabelecimento de compromissos e ações governamentais concretas na direção do alcance de padrões internacionais no combate à corrupção, diminuição do desmatamento, inclusão social, respeito aos direitos humanos e esforços de mitigação dos efeitos nocivos provocados pelas mudanças climáticas, aspectos absolutamente ausentes da agenda da atual administração federal.
O discurso equivocado e/ou pouco convincente de Guedes, desconectado dos recados provenientes da cesta de indicadores econômicos e sociais, serviu para evidenciar o flagrante descaso oficial no reconhecimento, avaliação e adoção de providências de tratamento das principais mazelas econômicas e sociais que atingem a nação.
Por sinal, esse alheamento dos agentes públicos de 1º escalão do cotidiano das pessoas e empresas tem surpreendido até aqueles integrantes do ambiente corporativo e político ainda alinhados com o governante de plantão e defensores da postulação de reeleição do chefe de estado.
De fato, a predominância do atendimento das vultosas prioridades explicitadas pela pauta eleitoral de Bolsonaro e seus principais aliados tem intensificado o proposital desinteresse da esplanada dos ministérios em minimizar os efeitos e reverter o persistente quadro de estagnação econômica, experimentado pelo país desde a superação da recessão verificada ente 2014 e 2016.
Há visível desatenção das autoridades federais para a preocupante acomodação dos níveis de atividade e emprego, agravada pela precária gestão da crise sanitária e o descontrole inflacionário, sendo este associado aos choques de oferta externos, derivados dos desarranjos das cadeias globais de suprimento e do caráter geograficamente heterogêneo do ritmo de evolução da Covid-19, das estratégias de vacinação e do aparecimento e avanço de novas cepas.
Acrescente-se, como fator de empuxe da inflação, a ausência de previsibilidade na precificação dos combustíveis e a desvalorização da taxa de cambio, ou a apreciação do dólar no mercado doméstico, atrelada essencialmente ao déficit de uma orientação macroeconômica consistente, transparente e fincada em sólidos pilares voltados ao equilíbrio fiscal.
O castelo de areia da retórica liberal, defendida por Guedes, foi sendo rapidamente derrubado por apreciáveis resistências encontradas no legislativo e, principalmente, no executivo, traduzidas em frequentes e inoportunas interferências do comandante do país, que servem para exacerbar as incertezas quanto ao retorno do equilíbrio intertemporal das finanças públicas e atiçar os mercados de risco, especificamente juros futuros e dólar.
Os resquícios de política econômica ancorada nos fundamentos da estabilização e programas de longo prazo foram destruídos por ocasião do episódio de autorização parlamentar, via emenda à Constituição, de estouro do teto de gastos e calote de metade do valor dos precatórios com pagamento previsto para o corrente ano, suspostamente destinados à cobertura do Auxílio Brasil, que substituiria o programa Bolsa Família e incorporaria a ajuda emergencial, adotada, de maneira descontinuada, em 2020 e 2021.
Em outros termos, o desejo de perpetuação no poder do grupo capitaneado pelo mandatário da nação, com participação especial da fisiologia legislativa conduzida pelo bloco de partidos do centrão, culminou em uma autêntica cirurgia na peça orçamentária de 2022, em benefício da multiplicação de favores ao clientelismo paroquial, hospedado no Congresso Nacional, em detrimento da mitigação das enormes e crescentes perdas e sacrifícios amargados pela base da pirâmide social brasileira, atestadas pelo alargamento da desigualdade, pobreza e miséria.
Nessa perspectiva argumentativa, o titular da Economia ignorou os sinais de alerta emitidos por pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) reproduzindo o recorde histórico de endividamento das famílias brasileiras, em 2021.
Dados e informações coletadas junto a aproximadamente 18 mil entrevistados, em todas as capitais das unidades federativas e no Distrito Federal, apontam que 70,9% dos consumidores mencionaram possuir algum tipo de dívida junto ao sistema financeiro formal, contra 60,2%, em 2016, ápice maior contração econômica da república, estabelecida durante o governo da presidente Dilma Rousseff.
A mesma sondagem mostra que 25,2% das famílias estão com os pagamentos das prestações em atraso, em média superior a dois meses, e 10,5% acusaram não dispor de condições para a regularização dos passivos, versus 9,2%, em 2016.
O retrato torna-se mais dramático quando se observa que 82,6% das pessoas consultadas possuem dívidas contraídas por meio de operações com cartão de crédito, a mais cara modalidade de financiamento do mercado, que, nas transações no rotativo, cobra juros médios anuais de quase 350%, conforme cálculos do Banco Central do Brasil (BC). Em idêntico sentido, o BC estima que os compromissos assumidos com endividamento consomem 1/3 dos fluxos de rendimentos anuais dos brasileiros.
Outro inquérito efetuado pela CNC revela que ¼ dos R$ 84 bilhões a serem injetados na economia nacional em 2022, como resultado do pagamento do Auxílio Brasil, de no mínimo, R$ 400 mensais, a 17,5 milhões de famílias, deverá ser utilizado para encerramento ou abatimento de contas atrasadas.
Portanto, em vez de persistir no uso de expressões genéricas e destituídas de conteúdo ou veracidade, o ministro poderia abandonar o comodismo da política econômica em “ponto morto” e dedicar mais tempo ao exame de propostas e execução de medidas menos imprecisas para a retirada do país do pântano depressivo.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor e ex-presidente do Ipardes.