Desigualdade social e sequestro do Estado no Brasil

Não bastasse a “perda de mão” no enfrentamento das distorções conjunturais, especialmente a escalada da inflação e o empobrecimento da população, a política econômica do atual governo não oferece qualquer referência consistente de ao menos um arremedo de programa de longo prazo, capaz de retirar a nação da incômoda condição de estagnação estrutural.

Ao contrário, o que se percebe é desprezo à priorização da busca intransigente de eliminação do principal e secular obstáculo ao desenvolvimento brasileiro: a vergonhosa e brutal desigualdade social produzida pela apropriação do estado por um reduzido número de agentes públicos e privados, viabilizada pelo manejo distorcido da atividade política.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, revela que, em 2021, o rendimento mensal real domiciliar per capita foi de R$ 1.353, o menor constado pelo levantamento histórico começado em 2012, com declínio de -4,5% e -6,9%, frente a 2012 e 2020, respectivamente.

Os cálculos do IBGE também revelam a tendência cadente da contribuição das transferências diretas de renda no orçamento das famílias, que passou de 4,4%, em 2012, para 3,4%, em 2019, em razão, primordialmente, das apreciáveis dificuldades impostas pela conduta liberal do novo governo à preservação do encaixe dos vulneráveis no programa Bolsa Família.

A participação subiu para 7,2%, em 2020, por conta do pagamento do auxílio emergencial, concebido e aprovado pelo parlamento, destinado às pessoas desprovidas de renda por causa da pandemia, e decresceu para 4%, em 2021, devido à interrupção da vigência do benefício, no primeiro trimestre do ano, respaldada em diagnóstico, no mínimo precipitado, do ministério da Economia, de proximidade do fim da circulação do vírus e recuperação em V dos níveis de atividade.

Em paralelo, o acompanhamento do IBGE constatou ampliação da concentração de renda no país. O índice de Gini (que varia entre zero e um, denotando aumento da desigualdade à medida que se marcha na direção da unidade) subiu de 0,524, em 2020, para 0,544, em 2021, regressando ao patamar de 2019.

Em 2021, o rendimento médio do 1% do contingente populacional que abriga os mais ricos representava 38,4 vezes o auferido pelos 50% detentores de menor renda, significando que essa ampla fração menos favorecida de pessoas recebeu, em média, R$ 415 por mês, a menor cifra da série apurada, sendo 7,4% e 15,1% inferior àquela verificada em 2012 e 2020, respectivamente, o que correspondeu a 107,4 milhões de brasileiros sobrevivendo com R$ 13,83 por dia.

Em semelhante batida, o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) apurou que 47,3 milhões de brasileiros, ou 22,3% da população total, encerraram o exercício de 2021 abaixo da linha de pobreza (ingresso de recursos inferior a US$ 5,90 por dia), o pior resultado em uma década.

Já simulações feitas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) Social, baseadas em microdados da PNAD, mostram que 23 milhões de brasileiros, ou 10,8% da população total viviam abaixo da linha de pobreza extrema, ou US$ 1,90 per capita por dia, em 2021, contra 7,6%, em 2020, ou com renda menor que R$ 7 por dia, significando o mínimo recorde da série de cálculos começada em 2015.

Não por acidente, a frequência de carência de recursos para o suprimento das necessidades de alimentação aumentou de 30% da população, em 2019, para 36%, em 2021, recorde da série implantada em 2006. Para os 20% mais pobres, houve salto de 53% para 75%, no intervalo em pauta.

Sondagem efetuada pelo Instituto Vox Populi, entre novembro de 2021 e abril de 2022, junto a 12.745 unidades domiciliares, em 577 municípios de 26 estados e Distrito Federal, aponta que 58,7% dos brasileiros acusa algum grau de insegurança alimentar (situação de fome no presente ou medo de carência alimentar futura).

Em contrapartida à flagrante situação de penúria da população, nota-se o aprofundamento da utilização do dinheiro retirado compulsoriamente da sociedade, na forma de impostos, taxas e contribuições, para o pagamento de verdadeiros sequestros do aparelho de estado por políticos e empresários inescrupulosos, abundantes na nação, que costumam colocar interesses pessoais acima do imperativo de atendimento das demandas coletivas.

A carga tributária bruta brasileira, estimada em 33,9% do PIB, o grau mais elevado já dimensionado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) – que cumpre os protocolos de mensuração contidos no Manual de Estatísticas de Finanças Públicas de 2014, do Fundo Monetário Internacional (FMI) -, é uma das mais robustas do mundo e a maior no conjunto dos mercados emergentes, contra capacidade de suporte contributivo inferido em 23% do PIB.

Se for levado em conta que o déficit nominal consolidado do setor público, que inclui o serviço da dívida, foi de 4,4% do PIB, em 2021, pode-se aferir a absorção governamental de 38,3% do esforço produtivo nacional, com retorno social comprovadamente deficiente e insuficiente.

Do montante arrecadado, 66,3% compreendem gravames federais, 26,81%, estaduais, e, 6,87%, municipais, o que configura pronunciada distorção do arranjo federativo, que colabora para a depressão das margens de manobra das instâncias subnacionais junto ao poder central, tornando-se reféns dos procedimentos clientelistas.

O mais gritante, contudo, consiste no caráter regressivo da estrutura de recolhimento, com predomínio da incidência indireta (impostos sobre bens e serviços e contribuições sociais), 71,5% do total, versus 28,5% da cobrança direta (renda, lucros, ganhos de capital e propriedade), o que penaliza o fluxo orçamentário dos mais pobres.

Por essas circunstâncias inóspitas, em 2021, o Brasil situou-se no 59º lugar, no ranking de competitividade – formulado anualmente pelo International Institute for Management Development (IMD Business School), escola de negócios localizada em Lausanne, na Suíça -, em um painel de 63 nações, ficando à frente de apenas de África do Sul, Mongólia, Argentina e Venezuela.

A eliminação dessa situação caótica e virada do jogo dependerá de um engajamento coletivo rumo ao protagonismo da cidadania, caracterizado pela multiplicação da mobilização e engajamento dos atores sociais, em favor de cobranças mais incisivas de elaboração e execução transparente dos orçamentos públicos no Brasil, o que exigirá disposição para conversas, cotejo de ideias, confronto de opiniões, revisão de posições arraigadas e entendimentos.

Só assim será possível da promoção de reformas institucionais indispensáveis ao alcance do desenvolvimento inclusivo, da inserção externa competitiva e de uma reindustrialização, centrada na combinação entre incorporação e difusão do progresso técnico e incremento de iniciativas sustentáveis, em fase com ações visando substancial redução das emissões de carbono.

Até porque, nações carentes de densidade e capacidade política de diálogo, convencimento, negociação, convergências e alianças constituem terreno fértil a atitudes populistas, em substituição à adoção de planos de governo e políticas públicas, e a truculências golpistas e outras epifanias subversivas, focadas em propósitos de destruição dos pilares da democracia.

Em sua despedida do Senado, em 1983, o presidente Tancredo Neves, destacou, de maneira emblemática e profética que “união nacional, diálogo, entendimento, conciliação, trégua são nomes de um estado de espírito que está se formando na comunidade nacional”.

Em idêntica perspectiva, no discurso de conclusão dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, em 05 de outubro de 1988, o deputado federal e presidente do Congresso, Dr. Ulisses Guimarães, o “senhor diretas” do movimento “Diretas Já”, de 1983 e 1984, afirmou: “a história nos desafia para grandes serviços, nos consagrará se os fizermos, nos repudiará se desertarmos.”

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor e ex-presidente do Ipardes.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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