Compra de votos em plena luz do sol
A frase utilizada para título deste artigo foi emprestada pelo amigo Masimo Della Justina, brilhante economista e professor universitário, que, além de autor de diversos livros dedicados a ampliação da fronteira do conhecimento no campo das ciências sociais, é portador de um elenco invejável e diversificado de oportunas e ácidas expressões.
Na verdade, o episódio de aprovação relâmpago, pelo Congresso Nacional, do conteúdo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 1/2022, que, ao instaurar o questionável “estado de emergência” permite ao poder executivo federal promover vultosa expansão dos dispêndios sociais em período eleitoral, representa iniciativa vergonhosa e dotada de múltiplas dimensões.
Foram quebrados vários ritos dos regimentos do Senado e da Câmara dos Deputados, como a dispensa de encaminhamento e análise por algumas comissões, para exame da admissibilidade e do mérito, antes da emissão dos pareceres, com direito a instalação e realização de uma sessão fantasma com duração de apenas um minuto.
As mais salientes extensões do ultraje fabricado pelos legisladores podem ser resumidas na veemente negação do aparato legal e no retardo temporal no entendimento do estágio de calamidade social e correspondente encaminhamento de medidas de contenção.
A primeira faceta, percebida no retrato da indecorosa destruição das ferramentas fiscais da estabilização macroeconômica, abarcando o aceite passivo de novo estouro do teto de gastos, desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal e possibilidade de descumprimento da regra de ouro, que proíbe a emissão de dívida pública para financiamento das despesas correntes, foi suficientemente contemplada no artigo que publiquei em 08 de julho de 2022.
Quanto à segunda anomalia, não é difícil notar a hipocrisia contida na atuação específica do conluio entre governo e legislativo, centrado no atrasado reconhecimento do estado de pauperização de parcela expressiva da população do país.
De acordo com senadores, deputados e staff da esplanada dos ministérios, a mazela da fome advém do conserto parcial dos estragos do surto do Novo Coronavírus e dos impactos da crise global – precipitada pela invasão da Ucrânia pela Rússia, o retorno das quarentenas na China e as disfunções das cadeias de suprimento internacionais desde a eclosão do Sars-CoV-2 – nos níveis de atividade e preços domésticos.
Trata-se de raciocínio convenientemente distorcido dos inquilinos do poder em Brasília, incluindo os comandantes da máquina pública e os ocupantes do parlamento, que tem minimizado a interferência da ausência de crescimento econômico, por quase uma década, e o intencional desmanche das estratégias oficiais de proteção social, desde a deposição da presidente Dilma Rousseff, em 2016.
Cumpre recordar que as sementes do Welfare State brasileiro foram plantadas na Constituição de 1988 e colhidas sob as gestões de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, entre fins de 1992 e 2002, e nos mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, com o reagrupamento e ampliação das ações positivas dos predecessores.
O déficit de sensibilidade social dos representantes da União e da Casa de Leis pode ser observado no consentimento, a partir de 2017, do congelamento dos valores das transferências e do volume de beneficiários do programa Bolsa Família e na suspensão da política de valorização do salário mínimo, baseada em reajustes anuais superiores à inflação pretérita, expediente praticado desde 1994, a reboque da extinção da hiperinflação pelos mecanismos acionados pelo Plano Real.
Em outras palavras, depois de registrar consideráveis avanços na inclusão e mobilidade social e diminuição da desigualdade e da pobreza, nos anos 1990 e 2000, acoplados à combinação entre controle da doença inflacionária e execução e continua ampliação da abrangência dos programas de assistência à população vulnerável, o Brasil passou a contabilizar progressiva deterioração dos indicadores sociais, notadamente entre 2017 e 2021.
Conforme cálculos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a amplitude da miserabilidade na nação saltou de 1,9% da população, no triênio 2015-2016, quando figurava fora do Mapa da Fome, preparado pela entidade, para 7,3%, no período 2017-2021, o que corresponde a 15,4 milhões de pessoas.
Portanto, o surgimento da pandemia de Covid-19 serviu apenas para desnudar – para aqueles agentes políticos com cacife decisório que deveriam ter enxergado e interferido, ainda que de maneira paliativa, mas preferiram “dar as costas” – e aprofundar o cenário de caos da infraestrutura social, produzido pela deliberada omissão de dirigentes públicos.
Tais atores estiveram permanentemente empenhados na rápida retirada da presença e participação do estado do cotidiano dos agentes privados (empresas e famílias) e, em consequência, na extinção de conquistas históricas recentes da sociedade, incluindo, porque não dizer, a estabilidade das instituições determinantes do funcionamento da democracia, fincada pelo “Movimento das Diretas Já”, em 1983-1984, e adensadas pela promulgação da Constituição de 1988.
Ressalte-se que o Congresso esboçou alguns sinais de grandeza quando, em abril de 2020, diante da condição acéfala e/ou autêntica paralisia do conjunto do governo, demonstrando falta de capacidade de planejamento e reação a eventos fortuitos de apreciável envergadura, autorizou a edição de um grupo de instrumentos anticíclicos.
Dentre eles sobressai a criação e pagamento do auxílio emergencial às famílias privadas de rendimentos por causa da pandemia e a instituição do Orçamento Extraordinário, vigente até 31 de dezembro daquele ano, de modo a propiciar a cobertura das despesas adicionais na área da saúde.
Porém, as propensões virtuosas foram sendo substituídas, ao longo da marcha de flutuações no enfrentamento da patologia pelas instâncias de poder. Depois de um começo sorrateiro e pouco confortável, rapidamente a metamorfose legislativa assumiu formas escancaradas.
Sem maiores pudores, ocorreu a adesão majoritária ao executivo do turno, costuradas pelas facções arregimentadas pelo bloco conhecido como centrão, acostumado à rotina do “toma lá da cá”, amparada na premissa de que “governo melhor do que esse, só o próximo”, na caça de verbas destinadas ao suprimento de redutos eleitorais.
As negociações entre autoridades palacianas e parlamento, e deliberações subsequentes, passaram a tratar de temas menos relevantes ao atendimento dos interesses da população – como a triplicação dos valores do fundo eleitoral, o orçamento secreto, que esconde as emendas do relator, os agrados às bancadas e o calote dos precatórios – e mais ligados à necessidade de aperfeiçoamento do fisiologismo, impregnado no modus operandi político nacional, mesmo que ao custo de subversão das regras republicanas e democráticas às vésperas do desencadeamento oficial das campanhas eleitorais.
Enquanto as nobres tarefas de elaboração e execução orçamentária foram repassadas diretamente à elite do centrão, liderada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o Chefe da Casa Civil, senador Ciro Nogueira, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, tornou-se subalterna aos ditames da lógica política, orientada à captura do estado, em uma versão moderna das antigas oligarquias e do coronelismo.
Nessas circunstâncias, a chancela da farra eleitoreira à luz do dia, conferida em julho de 2022, constitui mais uma etapa do longo drama de malversação de haveres públicos, inaugurado com a emenda para a reeleição, em 1997, e multiplicada com o Mensalão, em 2015, e o Petrolão, no primeiro quinquênio dos anos 2010.
Curiosamente, a festança motivada pela premência de recolocação do atual mandatário no páreo da disputa presidencial deixará uma enorme conta a ser paga prioritariamente pelo restante da sociedade, mais precisamente pelos componentes do piso da pirâmide, que configuram efetivamente os mais necessitados.
O caminhão de supostas bondades carrega aproximadamente R$ 50 bilhões de aportes pelo Tesouro Nacional, incluindo o reforço ao Auxílio Brasil, a duplicação do Vale Gás, a ajuda aos caminhoneiros autônomos e taxistas, a restituição aos governos estaduais de créditos do ICMS incidentes sobre o álcool e, como não poderia faltar, a alocação de aproximadamente R$ 8 bilhões para repartição em emendas a deputados simpáticos ao comando e/ou alojados nas cúpulas partidárias.
Esse tipo de socorro será bancado pelo alargamento da dívida e/ou pelas receitas correntes, que, por sinal, tem exibido pouca aderência com o curso dos negócios, dado que vem sendo engordadas pela excrecência da não correção da tabela do imposto de renda e, artificialmente, pelo imposto inflacionário.
Por tudo isso, parece razoável supor que, mais uma vez, os parlamentares optaram por ignorar os alertas dos assessores especializados, que prospectam o nefasto panorama de agravamento da inflação e interrupção da recuperação econômica.
A perspectiva ruim deriva da inescapável impulsão da despesa governamental desprovida de sólidos critérios fiscais e, notadamente, da exacerbação das expectativas negativas decorrente da extinção do equilíbrio entre as fontes de financiamento do jogo eleitoral.
Não menos importante será o desastre nas intenções de investimentos corporativos, provocado pela multiplicação da insegurança jurídica, acoplada, desta feita, ao atropelo de não poucos vetores legais para acomodar as vontades eleitoreiras do plantonista do planalto, sob o pretexto de concessão de apoio a segmentos sociais que atravessam sérias dificuldades, consequência, em maior proporção, da apatia ou inexistência do governo.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor e ex-presidente do Ipardes.