Populismo eleitoral e força do presidencialismo de cooptação

Se referendar a decisão do Senado da República e aprovar o relatório da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 1/2022, que permite a ampliação de benesses com haveres públicos no decorrer do calendário eleitoral, a Câmara dos Deputados estará a rasurar a Carta Magna, ignorar os rigorosos fundamentos de controle das finanças públicas, ratificar a exacerbação da farra orçamentária e destruir a âncora fiscal da estabilização.

Na prática, o Congresso Nacional legalizará as pedaladas fiscais, empregadas no princípio do segundo mandato da ex-presidente, Dilma Rousseff, em 2015, e que resultaram na interrupção do tempo de gestão da sucessora de Luiz Inácio Lula da Silva.

Naquele caso, os crimes de responsabilidade consubstanciaram somente a justificativa legal para a instauração do processo de impedimento e cassação de Dilma, ocasionada por não poucos atritos com a sua base parlamentar, especificamente a negação de apoio ao então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, alvo de investigações no Comitê de Ética, e pelo desastre da execução da Nova Matriz Econômica.

No evento atual, os legisladores autorizarão a declaração de “estado de emergência”, até 31 de dezembro do corrente ano, de maneira análoga à decisão de abril de 2020, por ocasião dos desdobramentos econômicos e sociais do descontrole da evolução do surto de Sars-CoV-2, a partir da exagerada ou equivocada premissa de contextos de perturbações semelhantes nas duas situações.

Com esse tipo de conduta, os ocupantes de funções legislativas emitirão uma espécie de “cheque em branco” ao governo federal e sancionarão nova rodada não planejada de injeção de recursos públicos e, por extensão, a probabilidade de explosão de gastos e endividamento.

Sob a argumentação de premência do combate à fome e à miséria, mazelas que atingem mais de 33 milhões de pessoas, até então ignoradas e/ou negligenciadas pelo executivo e descobertas apenas no apagar das luzes do primeiro semestre de 2022, pelos legisladores, a casa aprovará acréscimo de 50% no Auxílio Brasil, programa de amparo à população vulnerável, substituto do Bolsa Família, que passará de R$ 400 mensais para R$ 600 mensais, concessão de vale de R$ 1 mil por mês a caminhoneiros autônomos, ajuda aos taxistas de R$ 200 por mês, e aumento da vale-gás de R$ 53 para cerca de R$ 120, a cada dois meses, até o final do ano,. As somas incrementais serão de R$ 41 bilhões.

Sem contar os subsídios indiretos de R$ 60 bilhões, voltados à diminuição do preço de venda de derivados de petróleo, energia elétrica, transportes e comunicações, viabilizados pela zeragem dos impostos da União e a drástica diminuição das alíquotas do ICMS, também até o fim do corrente exercício. Isso deve ensejar arranjos financeiros para compensação de parcela da perda imediata de arrecadação de estados e municípios. Houve também a renúncia de IPI e IOF, calculada em R$ 33,6 bilhões e R$ 28 bilhões, para 2023 e 2024.

De fato, salta aos olhos as condições de vida extremamente precárias da esmagadora maioria da população, decorrente do débil funcionamento do mercado de ocupações, com informalidade superior a 40% da força de trabalho e acentuada diminuição da renda média, em um ambiente de inflação anual acima de dois dígitos desde setembro de 2021.

Conforme relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 61,3 milhões de brasileiros (29% da população total) enfrentaram insegurança alimentar em 2021, sendo 15,4 milhões de forma grave, considerada a privação de qualquer tipo de alimento por um dia ou mais.

Não obstante, as próprias autoridades palacianas tem feito questão de propagandear a ocorrência de diminuição do desemprego, recordes na geração de postos de trabalho com carteira assinada e apreciáveis acréscimos de arrecadação, derivados diretamente da desgarrada inflacionária e apreciação das commodities globais, o que vem incitando a enganosa avaliação de existência de sobras de recursos em caixa.

Mais do que isso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, prossegue insistindo na eficácia da política econômica, elaborada e implementada por sua equipe, que estaria assegurando uma retomada em V dos níveis de atividade, e que seria um exemplo para o resto do mundo.

De acordo com o chairman da Economia, por essas paragens, o Banco Central teria se antecipado à impulsão inflacionária vivida por economias centrais e emergentes e acionado as medidas de austeridade monetária, requeridas à reversão da marcha ascendente dos preços.

É preciso entender que a curva inflacionária brasileira vem sendo fortemente afetada por motivações exógenas (disfunções logísticas herdadas da pandemia, invasão da Ucrânia pela Rússia e retorno de quarentenas na China), que se traduziram em extraordinárias subidas nas cotações internacionais, sobretudo das commodities.

No entanto, convém não ignorar as forças domésticas de empuxe, particularmente a derrubada da retaguarda oficial de segurança alimentar, a bagunça da precificação dos combustíveis e a irresponsabilidade orçamentária e financeira do setor público, chancelada por articulações promíscuas entre governo e a maioria do parlamento, polarizada pelo centrão, seduzida pelo derrame de vultosas verbas para suprimento de currais eleitorais.

É dispensável ser um arguto conhecedor e/ou observador do cenário conjuntural para perceber que o êxito no enfrentamento dos fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação depende estritamente da utilização sincronizada de instrumentos de restrição monetária e fiscal, ladeados pela explicitação de mecanismos de desindexação que, ao promoverem a restauração da confiança dos agentes, contribuem para a eliminação do comportamento inercial dos reajustes de preços.

Os fracassos das estratégias ortodoxas, heterodoxas e mistas, implantadas ao longo dos anos 1980 e começo da década de 1990, e o sucesso do plano Real, em 1994, servem para provar a natureza infrutífera da imposição de controles artificiais de preços, em especial dos itens administrados, que, na melhor das hipóteses, servem para represar, transitoriamente, a potência das tensões inflacionárias.

Trata-se de uma operação “panela de pressão”, cuja abertura deve ser realizada com redobrado cuidado. Do contrário, a explosão lançará a fatura que, inevitavelmente, será paga pela sociedade com aumento da carga tributária e/ou o retorno da cobrança do imposto inflacionário.

A continuidade do flagrante desrespeito aos princípios básicos de perseguição do equilíbrio fiscal – imprescindível ao sufocamento do principal foco inflacionário pelo lado da demanda, sintetizado na necessidade de monetização dos déficits públicos -, presente no conteúdo da “PEC do desespero” constitui a aplicação de injeção na veia das camadas vulneráveis da sociedade na busca de colheita imediata de dividendos para o empreendimento da reeleição.

Só que essa radicalização do populismo distributivo de benesses, diante da proximidade do pleito presidencial, pode não ser suficiente para atingir o objetivo de recomposição da popularidade do chefe de estado, postulante à reeleição, por conta dos enormes estragos provocados pela prolongada conivência com a inflação e outras anomalias macroeconômicas que penalizam o piso da pirâmide social.

Até porque, diferentes pesquisas qualitativas constatam que a maior proporção dos haveres aportados para o Auxílio Brasil será destinada ao pagamento de dívidas das famílias contempladas que, o que é pior para as hostes governistas, tem manifestado reiteradamente intenção de voto no candidato das oposições.

De seu turno, a expressiva fração da oposição que optar pela concordância com a aplicação do pacote de supostas bondades, carrega a preocupação com a preservação da simpatia popular em um período eleitoral em que um terço das cadeiras será renovado, com alguns interessados na reeleição e outros na disputa de vagas de governador de estado.

Ademais, os segmentos fora da base governista renovam apostas nas circunstâncias de “cachorro morte” do atual mandatário, prisioneiro de seus próprios erros, com chances de desembarque da contenda ainda no 1º turno, a despeito do piso de aprovação por 1/3 da população, formado por meio dos efeitos multiplicadores de fervorosos devotos e seguidores, empenhados na manipulação das plataformas de comunicação digitais.

De qualquer maneira, não há dúvidas quanto ao caráter indecoroso do espetáculo protagonizado, ancorado em roteiro tácito, formulado pela cúpula do executivo e a maioria do Congresso (da direita à esquerda), que deve desmontar os expedientes mais elementares de repúdio à dominância fiscal, notadamente quanto ao cometimento de verdadeiros estelionatos eleitorais.

A um só tempo, o conjunto de leis que estipulam a obrigatoriedade de cumprimento do teto de gastos, o disciplinamento de despesas durante o calendário eleitoral, as diretrizes orçamentárias, a responsabilidade fiscal e a regra de ouro – que proíbe endividamento público para fazer face à expansão de dispêndios correntes – será despejado na latrina.

O que se vê é um verdadeiro vazio de vontade política para a discussão, negociação e promoção medidas estruturais direcionadas à erradicação da pobreza e fortalecimento da rede de proteção social, com ênfase para inversões focalizadas em educação, saúde e alimentação, em paralelo à perseguição do alcance de um arranjo orçamentário virtuoso, em médio prazo.

Daí que não surpreende a eficiente atuação, ainda que improvisada, do presidencialismo de cooptação brasileiro, que substituiu o regime de coalizão, instaurado por ocasião da redemocratização, em 1985, e consolidado na Assembleia Constituinte, em 1988.

Na mais benevolente das avaliações, prevalece a complacência do parlamento, recompensada pela avalanche de emendas do relator, ante os desmandos praticados por um governo desgastado e desesperado, no encalço da contratação e aquisição de mais um mandato popular, por meio do preenchimento, em noventa dias, das lacunas produzidas pelo despreparo, incompetência e ausência de visão estratégica de quase quatro anos.

Poucos atentaram que, em clima de ressaca global, o grupo de bênçãos eleitoreiras bilionárias deve impulsionar as despesas financeiras do aparelho de estado, alvoroçar o comportamento dos ativos de risco (dólar e juros futuros) e reanimar a fúria inflacionária, o que, paradoxalmente, deve prejudicar a categoria da população que, no discurso, se tenciona acudir.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor e ex-presidente do Ipardes.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *