Embate entre Lula e o Banco Central
Gilmar Mendes Lourenço.
À primeira vista pode parecer correta a avaliação dos observadores especializados e formadores de opinião de que o presidente Lula deveria abdicar da realização de frequentes e duras manifestações acerca de assuntos relacionados ao curso da orientação fiscal e monetária da macroeconomia brasileira.
Até porque, o chefe de governo designou alguns quadros expressivos da área política para dedicação integral ao planejamento do tratamento dos distúrbios relacionados à conjuntura e à montagem de uma agenda de longa maturação, liderados pelos ministros Haddad (Fazenda) e Tebet (Planejamento) e o vice-presidente, Geraldo Alckmin (Desenvolvimento).
Essa complexa empreitada deverá ser criteriosamente discutida, negociada e acordada com os agentes políticos, especialmente as lideranças do legislativo, e econômicos, incluindo os representantes das categorias da sociedade civil, como empresários e trabalhadores.
No entanto, há que considerar o desconforto demonstrado pelo chefe de governo com a obrigatoriedade de convivência com figuras remanescentes da gestão Bolsonaro, especificamente, o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, encarregado da liderança da gestão da política monetária e, por suposto, responsável pela vigência de juros estratosféricos no país.
Além do incômodo político causado pelo selo de autonomia do BC, conferido pelo parlamento, em fevereiro de 2021, depois de duas décadas de proposição e discussões, que liberta a autoridade monetária das ingerências e conveniências políticas e devaneios populistas, ressalta a condição de “mãos amarradas” do presidente no esforço de reversão do estágio de desaceleração da economia brasileira, vivenciado desde o último trimestre de 2022.
Ao contrário do quadro prevalecente no período 2003-2010, traduzido por “vacas gordas” oportunizadas pela prosperidade global e o super boom das commodities, decorrente do crescimento exponencial da economia chinesa, desta feita surge o imperativo de convivência entre desaceleração internacional e fraqueza fiscal doméstica.
Depois de experimentar em 2022 mais de um ano de recuperação dos estragos da pandemia de Covid-19, amparada em bases frágeis, como os auxílios eleitoreiros à população vulnerável e o funcionamento do mercado de trabalho com informalidade recorde, os patamares de ocupação dos fatores de produção delineiam amargo regresso ao estágio de estagnação cíclica, acusado desde o começo de 2017, em seguida à superação da maior recessão da história da república, entre 2014 e 2016.
Parece oportuno assinalar que após assumir pela terceira vez os destinos políticos do país e conseguir, com apoio das instituições da democracia, eliminar a tentativa de golpe de estado, praticada em oito de janeiro de 2023, Lula absorveu de chofre o conjunto nada desprezível de problemas de múltiplas naturezas.
Trata-se de um conjunto apreciável de adversidades impeditivo da rápida restauração dos mecanismos de inclusão e mobilidade social, instituídos pela Constituição de 1988, ativados nas gestões de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e ampliados a partir de 2003.
O serviço de oferta de abrangente cardápio de iniciativas oficiais de transferência direta de renda, principalmente o programa Bolsa Família e a valorização do salário mínimo, interferiu decisivamente no acréscimo de 3,9% ao ano do produto interno bruto (PIB), entre 2003 e 2010, a despeito da inflexão derivada dos impactos da crise financeira internacional de 2008-2009.
A rigor, há duas barreiras enormes e conjugadas no caminho da retomada do desenvolvimentismo com proteção social defendida pelo mandatário nacional. A primeira ameaça diz respeito ao alargamento da debilidade fiscal e financeira do setor público, por conta do desmantelamento das referências de responsabilidade na condução das finanças dos entes governamentais, por parte da gestão antecessora, com ênfase para as benesses concedidas em 2022, atreladas a vontades eleitorais.
O segundo obstáculo abrange os elevados encargos financeiros incidentes nas operações de crédito destinadas à cobertura do consumo das famílias, e investimento e giro dos negócios empresariais – começando com o piso representado pela taxa Selic, base das transações interbancárias e da rolagem do endividamento do setor público -, que funcionam como travas à reação sustentada dos níveis de atividade e emprego.
No que se refere à multiplicação do déficit e dívida governamental – mascarada pela aceleração da inflação em 2022 e viabilizada com o calote dos precatórios e o rompimento do Teto de Gastos, com pleno endosso do Congresso, favorecido pelo megafundo eleitoral e o orçamento secreto -, o ministro Haddad tem trabalhado em dois fronts simultâneos, de caráter estrutural, em entendimento com o Congresso Nacional.
As tarefas abarcam as tentativas de condensação das duas propostas de simplificação do aparato tributário, em estágio avançado na Câmara dos Deputados e Senado da República, e de formulação do novo arcabouço fiscal em substituição ao “teto furado”, provavelmente atrelado à linha evolutiva do endividamento, com provável reforço de amparo e monitoramento técnico do Fundo Monetário Internacional (FMI), a partir do exame de experiências internacionais de sucesso.
Nesse contexto, o inconformismo do incumbente com a dimensão dos juros reúne maiores chances de geração de atritos institucionais, com interferências diretas no comportamento dos chamados mercados de risco, expressos normalmente em subida do dólar e dos juros futuros e queda das bolsas.
De maneira aparentemente açodada, o presidente tem endereçado críticas ásperas e desqualificadoras contra três mecanismos econômicos em simultâneo: a extraordinária altura da taxa Selic, o sistema de metas de inflação e a autonomia do BC.
Mais precisamente, Lula tem efetuado um mero cotejo entre a magnitude de 13,75% a.a., da Selic, e de 5,77%, da inflação em doze meses encerrados em janeiro de 2023, medida pelo IPCA, do IBGE, para sugerir, reiteradamente, drástica redução dos juros, destinada à oxigenação do organismo econômico, algo factível com a obediência formal do BC aos ditames do poder executivo.
Essas comparações e recomendações simplistas merecem dois tipos de considerações, esclarecimentos e reparos. De um lado, surge a postura excessivamente defensiva do BC, consequência das maiores dificuldades de coordenação das expectativas em um ambiente de ausência de uma âncora fiscal portadora de confiança.
É prudente recordar que, já em atmosfera de mandato monetário autônomo, a taxa primária passou do piso histórico de 2% a.a., em março de 2021, para 13,75%, em agosto de 2022, demarcando um ciclo de 12 elevações seguidas, e escapando sem arranhões da campanha eleitoral, mesmo que a contragosto do governo e do ministério da Economia.
De outro extremo, emerge a convicção de represamento da inflação corrente, ligada ao pacote de renúncias fiscais federais e estaduais na comercialização de combustíveis e no consumo dos serviços de energia elétrica e comunicações, encarado como temporário.
Sem contar a defasagem nos preços dos derivados de petróleo, resultado adoção parcial dos reajustes em fase com o movimento da taxa de câmbio e das cotações globais do petróleo, acoplada às incertezas quanto à política de precificação a ser empregada pela Petrobras.
Esse elenco pontual de bondades eleitoreiras, implementado durante o segundo semestre de 2022, na esperança de validar a operação “caça votos” por meio da preservação dos rendimentos das classes média e alta da pirâmide social, causou retração da arrecadação do ICMS dos estados, não compensada pela órbita federal, evento que permanece na mesa de debates do novo pacto federativo.
Seria ocioso insistir que os juros não podem ser alterados por decreto, ao sabor dos ventos e interesses políticos dominantes. Isso porque constituem apenas um dos elementos-chave e transversais no alinhamento ou desarrumação dos preços relativos, que também englobam lucros corporativos, salários, aluguéis, impostos, câmbio e itens administrados (tarifas e combustíveis), membros dotados de forças heterogêneas no conflito distributivo.
Na realidade, apesar da pertinente atenção à magnitude da Selic, por conta da instantânea indexação à parcela expressiva do passivo público, a descida dos juros na ponta requer atitudes não subordinadas à condição jurídica do BC e que escapam das estreitas margens de manobra do Comitê de Política Monetária (Copom), responsável pelo monitoramento das metas de inflação, fixadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
A combinação entre barateamento e aumento da disponibilidade de crédito no Brasil depende da redução dos enormes spreads bancários (diferença entre as taxas cobradas nos empréstimos e financiamentos e as de captação dos recursos), o que, por ser turno, exige providências estruturais destinadas ao rompimento dos entraves de um mercado oligopolizado, concentrado em cinco instituições.
Na falta disso, em estágios de iminentes riscos de recrudescimento inflacionário, resta ao BC intensificar a utilização de políticas monetárias restritivas, notadamente quando da percepção de acentuação da frouxidão fiscal.
Em democracias maduras, a formulação de diretrizes, políticas e programas de desenvolvimento compõem a pauta de responsabilidades do poder executivo, alinhada aos impasses impregnados na disparidade das demandas sociais, equacionados por meio da interlocução do legislativo.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, ex-presidente do Ipardes e ex-conselheiro da Copel.
É ponto comum que todos aprovam o Banco Central independente. Então, só resta ao governo conviver com o contraditório e aceitar as rédeas curtas do Bacen no controle dos juros, contra golpeando com medidas efetivas de controle da inflação, como a propalada Reforma Fiscal que será anunciada ainda em Março, segundo o Ministro Haddad.