Programa Lula 3 e os economistas
Gilmar Mendes Lourenço.
O eixo central da plataforma do candidato Lula, contratada com a população brasileira por meio de expressão majoritária de esperança de mudança, nos dois turnos das eleições presidenciais de 2022, reside na recomposição das bases do virtuosismo econômico e dos mecanismos de combate à desigualdade na apropriação da renda.
Aqueles alicerces foram sendo gradativamente destruídos, ao longo da década passada e princípio da atual, por conta da aplicação de um elenco de iniciativas falhas, com ênfase para a fracassada nova matriz econômica, no mandato de cinco anos e meio de Dilma Rousseff, entre janeiro de 2011 e maio de 2016, apoiada na intervenção no arranjo de preços relativos, em nome da contenção populista da inflação, e na concessão desmedida de benesses tributárias e creditícias aos “amigos da Rainha”.
O organismo econômico e político emitiu elevada fatura em retribuição e protesto a administração disfuncional e desconectada das tendências esboçadas no ambiente externo e doméstico, sintetizada no impeachment da chefe de estado e na maior recessão da história, entre abril de 2014 e dezembro de 2016.
Tal anomalia foi compensada parcialmente pelos efeitos de lampejos de reformas institucionais, durante a gestão tampão do vice-presidente, Michel Temer, entre maio de 2016 e dezembro de 2018, particularmente a Lei de Responsabilidade das Estatais, a flexibilização da legislação trabalhista e os esboços de um programa de desestatização e de modificações nas regras da previdência, ladeados pela conjuntura cadente da inflação e dos juros.
Já no tempo de transição do decênio precedente para o atual, os fundamentos requeridos pelo resgate da concatenação entre expansão econômica e inclusão e mobilidade social sofreram quase que um extermínio, em consequência da tentativa de venda de uma espécie de “demagogia liberal”, que encobria o propósito de rápida e progressiva marginalização de diversos segmentos da população vulnerável, transformado em verdadeira diretriz de governo.
O ferrenho desejo de ruptura desse movimento de retrocesso civilizatório conferiu a chance de retorno ao poder do ex-presidente Lula, cuja eleição foi viabilizada por ampla coalização aglutinadora de correntes de segmentos de esquerda, centro e direita do espectro ideológico, na perspectiva de desencadeamento de uma gestão redentora.
A expectativa da administração Lula 3 engloba a necessidade de convencimento coletivo acerca do interesse e dedicação de desmanche dos inúmeros canais de corrupção, em sua maioria construídos durante os comandos petistas, principalmente o Mensalão e os assaltos à Petrobras, que não foram apagados com os equívocos e abusos cometidos pelos protagonistas da operação Lava Jato.
Se essas linhas programáticas gerais configurarem o núcleo de concepção e proposição do novo governo, a ser transformado em políticas de ação no transcorrer dos próximos quatro anos, há poucas dúvidas quanto aos deslizes impregnados nas iniciativas de comunicação do presidente e do núcleo duro do Partido dos Trabalhadores (PT), deixando a nítida impressão de intenção de consagração antecipada, no estilo “venci e tenho carta branca”.
O apego a doutrinas velhas e práticas pouco eficazes no passado tem sido capitaneado pela presidente da agremiação, Gleisi Hoffmann, e o presidente do BNDES, Aloisio Mercadante. O dueto foi o grande responsável pela prorrogação da desoneração dos impostos federais incidentes sobre combustíveis, em oposição aos argumentos fiscalistas do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Mercadante, de maneira escancarada, vem buscando a formação de uma entidade informal, paralela ao Ministério da Fazenda, ao anunciar a realização de um Seminário, pela entidade de fomento, para a garimpagem e sistematização de sugestões ao delineamento do novo arcabouço fiscal.
Se, por um lado, o mandatário foi empurrado ao envolvimento full time, junto com os titulares dos demais poderes e instâncias da sociedade civil, na intransigente defesa da democracia, depois da incursão golpista de 8 de janeiro de 2023, por outro, tem levantado provocações que, especificamente dirigidas à autoridade monetária, ainda que possam ser pertinentes, soam inoportunas.
O conteúdo crítico desferido por Lula tem abarcado temas associados às variáveis de estabilização macroeconômica (taxa de juros, sistema de metas de inflação e autonomia do Banco Central), em detrimento do exame cuidadoso dos parâmetros de desenvolvimento, notadamente aqueles relacionados ao empuxe da competitividade sistêmica.
A autonomia do BC está condicionada à demonstração de ida ao encalço de três objetivos centrais: preservação da estabilidade monetária e coordenação das expectativas; abrandamento das flutuações da economia; e perseguição do alcance de patamares de pleno emprego.
Com o derrame de reparos, o governo tenciona, deliberadamente, promover a minimização, ou mesmo a interdição, do debate de assuntos que deveriam ocupar e assumir maior importância na formulação de um projeto articulado e consistente de estado-nação.
Portanto, urge a priorização da preparação e anúncio da âncora fiscal, sucedânea do vácuo deixado pela derrocada do teto de despesas primárias da União, e do trabalho de manejo e combinação dos dois projetos de reforma tributária, em avançado estágio de tramitação na Câmara dos Deputados e Senado.
Igualmente relevante seria a firme explicitação do posicionamento oficial menos preso a respeito de temas caros à heterodoxia da esquerda, em especial a reforma administrativa, focada na diminuição do tamanho e multiplicação da eficiência da máquina pública, e patrimonial, incorporando as imprescindíveis privatizações e concessões.
Outro elemento crucial repousa na montagem de uma política de industrialização contrastante com a farra de privilégios tributários e creditícios conferidos aos derrotados “campeões nacionais”, dos anos 2000, capaz de articular a concessão de incentivos à qualificação de segmentos e empresas dispostas a disputar posições competitivas no front externo.
A contrapartida dos favores às organizações produtivas deverá englobar ainda o compromisso com o fortalecimento do mercado interno e a realização de vultosas inversões em pesquisa, desenvolvimento e formação de mão de obra, em fase com a quarta revolução industrial, em pleno curso no planeta, dominada pela disseminação de processos digitais e inteligência artificial.
Decerto que, ao estipular desenho do novo modus operandi do organismo econômico e, em consequência, interferir decisivamente no conflito distributivo, a consecução da pauta ensaiada exigirá a intensificação de diálogos com os atores sociais envolvidos e amplo entendimento com as diferentes frações representadas no parlamento.
Nesse contexto, enquanto cientistas sociais engajados na empreitada de mutações na dinâmica política, alavancas ao desenvolvimento nacional mais equânime em oportunidades cidadãs, cabe aos Economistas substancial colaboração para a “virada da chave”.
Tais profissionais devem incitar, em seu campo de jogo, a menor proliferação de diagnósticos e recomendações de políticas ligadas à vontade dos rentistas hospedados na ciranda financeira, sedentos por maximização de ganhos em operações de tesouraria, que constituem, em simultâneo, causa e efeito da rolagem dos fluxos crescentes do endividamento público.
Mais do que isso, os especialistas da categoria dos Economistas carecem de irrestrita abnegação à ressurreição da salutar produção de reflexões e cotejo de opiniões divergentes, em alto nível, de questões de longa maturação, indispensáveis ao fornecimento de subsídios úteis ao encaminhamento da correção das mazelas latentes na matriz econômica e no tecido social brasileiro.
Para tanto, é prudente não esquecer que os níveis de atividade e emprego e, por extensão, a produtividade do país, atuam em “modo estagnação” desde a exaustão do ciclo de industrialização por substituição de importações, no final da década de 1970, e do seu padrão de financiamento, amparado em poupança pública e externa.
Não há qualquer enigma a ser decifrado. O rompimento dessa crônica rotina de apatia não neutra, que serve apenas para alargar a distância entre elites e camadas do piso da estratificação social, depende de negociação e definição de escolhas políticas consensuadas e diametralmente opostas das secularmente formuladas e executadas por essas paragens.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, ex-presidente do Ipardes e ex-conselheiro da Copel.