Jornalismo opinativo e risco de manipulação de estatísticas

Jornalismo opinativo e risco de manipulação de estatísticas
Gilmar Mendes Lourenço.

Em sua coluna no jornal o Globo, de 24 de julho de 2023, a jornalista Mirian Leitão, integrante do time titular daquele veículo de comunicação, externou pensamento diametralmente oposto aos preceitos básicos de seriedade e responsabilidade ao criticar uma possível nomeação do economista e professor da Unicamp, Márcio Pochmann, ao cargo de presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em diferentes contendas ensejadas pela manutenção da polarização ideológica na nação, Pochmann, que já ocupou a chefia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT), estaria entrincheirado nas fileiras da esquerda e traria enorme perigo de manipulação dos índices de inflação do IBGE, na convicção ou devaneio de Mirian.

Ao fazer essa afirmação disparatada, na mais benevolente apreciação, aquela influente formadora de opinião expressou escancarada ignorância acerca do contínuo controle social acoplado à produção de estatísticas no Brasil, intensificado com a redemocratização, a partir de 1985.

Ao mirar a credibilidade de Pochmann, tiro e julgamento de Mirian acertaram, ainda que de raspão, o alvo errado e, o que é pior, lançaram arranhões à reputação do IBGE, ao despejar, nas entrelinhas, suspeitas quanto à indiscutível transparência e idoneidade da instituição e de seu qualificado corpo técnico, com fortes respingos sobre a imagem dos congêneres subnacionais.

Na verdade, a dedicação profissional à observação, avaliação e prospecção de fenômenos econômicos e sociais requer acurada atenção dos economistas, e demais cientistas atuantes na área de relações humanas, com os meandros da produção e utilização das estatísticas, quantitativas e qualitativas, necessárias ao cumprimento das atividades subjacentes ao planejamento das iniciativas de reforço, mitigação e prevenção tomadas por agentes públicos e privados.

Isso porque, o percurso histórico brasileiro é repleto de acontecimentos, no mínimo nebulosos, associados ao emprego inadequado de dados, informações e indicadores. As anomalias abarcam desde ferrenhos ataques aos resultados adversos ao plantão político, tentativas de interferência distorciva na geração e até negacionismo informacional.

Acumulam-se exemplos desses três grupos de condutas inconvenientes. No caso do uso incorreto, são bastante comuns as identificações de esforços analíticos na direção demonstrativa daquilo que as bases de dados estão longe de refletir, em procedimentos que configuram verdadeiras “salas de torturas” para fazê-las confessar aquilo que não cometeram e/ou são incapazes de elucidar.

É assinalável igualmente a participação de especialistas em manifestações de repúdio ao reconhecimento das derradeiras palavras proferidas pela percepção da realidade, quando divergentes dos números, absolutamente confortáveis às justificativas de dispensa dos imprescindíveis trabalhos de revisão, reparo ou refazimento, impregnadas da ignorância acerca da natureza simplificada dos modelos matemáticos na representação do universo ou de parte dos eventos econômicos e sociais.

Já os traços de intervenção inapropriada nas linhas de montagem das informações podem ser encontrados em episódios conhecidos como manipulação, principalmente nos tempos da espiral inflacionária, durante a ditadura militar (1964-1985), centrados especialmente em atos de infiltração política na elaboração (deturpação) científica dos índices de preços oficiais – delegada à uma instituição privada desde os anos 1940 -, voltada à diminuição matemática do fogo disparado pelo dragão.

Ficou bastante conhecido o expurgo de itens nevrálgicos no cálculo da inflação, na época do milagre econômico (1969-1973), em atendimento aos propósitos dos representantes do capitalismo de estado, selvagem e autocrático, em promover brutal arrocho na massa de rendimentos dos trabalhadores e, por extensão, aprofundamento da concentração de renda e desigualdade social.

Pouco mais de meia década depois, em 1979, por ocasião do segundo choque global do petróleo, quando as cotações internacionais do óleo mais que duplicaram – com a deposição do comandante do Irã, Mohammad Reza Pahlavi, aliado dos Estados Unidos (EUA) -, ocorreu especial encomenda do ministério da Fazenda à organização incumbida da coleta de preços e medição da inflação, para promoção da retirada daquelas variações abruptas, definidas conceitualmente como choques ocasionais de oferta.

Por isso, experiências ou simulações de obtenção de níveis gerais de preços por meio da supressão de elementos sazonais, derivados das chamadas “acidentalidades”, com reduzidas chances de perenização, normalmente provocam arrepios na classe trabalhadora, sabidamente o ente mais frágil no arranjo do conflito distributivo, formado por lucros, juros, câmbio, impostos e aluguéis.

No que diz respeito à negação da relevância de erguimento e manutenção de apreciável arsenal estatístico, as diversas barreiras físicas e orçamentárias colocadas pelas autoridades do poder executivo, no período 2019-2022, à viabilização das etapas de levantamento do Censo Demográfico 2020 (2022), de responsabilidade do IBGE, constituem prova definitiva dos crimes cometidos por atores permanentemente incomodados com a contínua atualização e disponibilização de estatísticas de qualidade.

Pouco mais de trinta anos antes, em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello, também arredio a episódios transparentes de elaboração de blocos articulados de informações aderentes à autenticidade dos fatos, “fez o diabo” para impedir a realização do Censo Demográfico 1990, efetivado em 1991, com severas limitações financeiras.

Não obstante aquelas injunções de caráter político e alguns estragos causados pela preponderância de vontades alheias à fabricação e análise criteriosa de múltiplas informações, parece oportuno entender que, nos últimos três decênios, o Brasil passou a constituir espaço privilegiado de oferta de complexas e diversificadas retaguardas estatísticas, subsidiárias ao exercício de escolhas estratégicas de governos e da microeconomia.

Pelo prisma oficial, no terreno da administração federal, a atuação de excelência do IBGE alçou o país à condição de referência, entre os estados avançados e emergentes, na coleta e organização de informações econômicas e sociais, conjunturais e estruturais, acopladas ao processo decisório dos distintos componentes da sociedade, fruto da adoção de métodos e critérios em fase com a vanguarda do conhecimento no restante do mundo.

Trata-se de pesquisas mensais, trimestrais e anuais de acompanhamento da evolução das principais variáveis explicativas dos movimentos pendulares das atividades dos segmentos produtivos e do heterogêneo tecido social, com coberturas amostrais superiores ao padrão estabelecido por organismos internacionais, sobretudo a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Esses aprimoramentos podem ser atestados pelos produtos propiciados pelo Sistema de Contas Nacionais, autêntico aprofundamento dos modelos insumo-produto e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de apreço internacional.

Acrescente-se o papel do Banco Central (BC) na arregimentação dos registros administrativos de comércio exterior, receitas e despesas públicas e transações financeiras, portados por outras unidades de governo, reunindo-os em relatórios específicos com farta quantidade de indicadores, ilustrados pelo índice de atividade econômica (IBC-Br), considerado prévia do produto interno bruto (PIB), do IBGE.

Sem contar os braços regionais da produção de estatísticas primárias e derivadas, conectados em rede com o IBGE, e a serviço das demandas determinadas pelo planejamento imediato e de médio e longo termo, com destaque à Fundação SEADE (SP), IPARDES (PR) e Fundação João Pinheiro (MG).

No front privado, as entidades de representação de classe têm realizado, preponderantemente nas últimas duas décadas, notável trabalho de confecção de indicadores quantitativos e opinativos, com sofisticado aparato metodológico e excelentes planos amostrais, factíveis em consequência da expressiva adesão dos filiados, oportunamente convencidos da utilidade do fornecimento contínuo de informações, com garantia de sigilo.

No elenco de organizações pioneiras em tais incursões figuram os sistemas controlados pelas confederações nacionais da Indústria (CNI) e Comércio (CNC), as federações de indústria, com ênfase para FIESP e FIRJAN, os movimentos sindicais, embalados pelo DIEESE, dentre outras.

Além do rastreamento de parâmetros correntes, usualmente mensais, que servem, na maioria das vezes, como complemento ou anteparo à produção oficial, ressalvadas as discrepâncias metodológicas, as associações que reúnem os empresários efetuam sondagens setoriais destinadas à captura e delineamento de percepções acerca do futuro, cruciais à implementação de providências antecipatórias, potencializadoras de oportunidades e minimizadoras ou eliminadoras de ameaças.

Enquanto o cardápio do CNI apresenta mensalmente as investigações “Indicadores Industriais”, “Sondagem Industrial” e “Sondagem da Indústria da Construção”, além da mensuração do “Índice de Confiança do Empresário Industrial”, a CNC prepara a “Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor” e os indicadores “Intenção de Consumo das Famílias” e o “Índice de Confiança do Empresário do Comércio”

Por essa apreensão virtuosa, não é difícil notar a abundância e os predicados dos fundamentos estatísticos ao planejamento no Brasil, plenamente acessível ao conjunto dos envolvidos (governo, empresas, exportadores, importadores, trabalhadores e consumidores), com a disseminação e universalização das tecnologias de informação.

Mesmo assim, ainda prevalece a insistência em posições improvisadas no curso do debate deliberativo público e privado, motivada pelo voluntarioso desejo de não despojamento de falidos métodos e regras de gestão, incompatíveis com o imperativo de perseguição de eficiência das políticas e programas do governo e táticas privadas.

Esses assuntos devem merecer espaços crescentes nas discussões de pauta e construção de colaborações reflexivas da crônica especializada, sob pena de perpetuação de pontos de vista rasteiros, destituídos dos princípios lógicos mais elementares, a procura de conspirações em cada esquina.

Até porque, os preceitos da velha matemática permite inferir que o limite da variável da função conformada por eventuais ou frequentes manipulações de estatísticas oficiais, consumidas pelo planejamento nacional e regional, tende a menos infinito.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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