Como entender a queda do desemprego no Brasil
Gilmar Mendes Lourenço.
Os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos ao trimestre móvel encerrado em agosto de 2023, revelam discreta, porém consistente, queda do desemprego no Brasil.
Depois de registrar o pico mais recente, entre janeiro e março do corrente ano, quando marcou 8,8% da força de trabalho, a taxa de desocupação vem esboçando uma rota cadente, chegando a 7,8%, entre junho e agosto, o que equivale ao menor patamar desde o intervalo compreendido entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015, quando se situava em 7,5%.
Naquela época, delineava-se pronunciada reversão da trajetória de expansiva da economia brasileira, por conta da exaustão do paradigma de estabilização e crescimento, ancorado quase que exclusivamente na impulsão dos gastos e endividamento do setor público e em estímulos ao consumo privado, em detrimento dos investimentos.
Diga-se de passagem, que a prioridade ao adensamento da demanda das famílias aconteceu desde a eclosão da crise financeira internacional, em setembro 2008, com a quebra do banco norte-americano Lehman Brothers, via aplicação de artificialismos na macroeconomia.
Especificamente, as autoridades abusaram do controle dos reajustes dos preços administrados (tarifas de energia elétrica e derivados de petróleo), da fixação das taxas de câmbio e juros) e da concessão de crédito abundante e caro, maquiado com o alargamento dos prazos de financiamento.
A não correção daquelas anomalias engendrou a tempestade perfeita, econômica e política, dos anos 2010, expressa na mais profunda e longa recessão da história da república e a subsequente construção de um arranjo institucional capaz de viabilizar a instauração e tramitação do impeachment e cassação da presidente Dilma Rousseff.
A despeito da preparação, encaminhamento e aprovação legislativa e implantação de algumas reformas com maior apego aos mercados, entre 2016 e 2018, e a superação da depressão da depressão econômica, a partir de 2017, observou-se a exacerbação das incertezas com o agravamento do imbróglio institucional e os desdobramentos negativos da pandemia de Covid-19, parte importados e outros Made in Brasil.
A presença daqueles embaraços serviu à decretação de nova estagnação cíclica da base econômica nacional, com impactos dramáticos na dinâmica do mercado de trabalho, tendo a desocupação atingindo 14,9%, em julho-setembro de 2020 e janeiro-março de 2021.
Ressalte-se que o desenho da inversão da curva ascendente do desemprego começou a ganhar contornos mais nítidos no segundo semestre de 2021, em consequência da combinação e otimização de três elementos de natureza social e política.
Foram eles, o avanço da imunização contra a Covid-19, com a generalizada adesão da população, propiciada pela excelência de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS), em contraposição ao indisfarçável negacionismo, patrocinado pelas autoridades federais, lideradas pelo chefe de estado; a acentuada flexibilização das medidas sanitárias restritivas à circulação de pessoas, definidas por governos estaduais e municipais; e o retorno dos desembolsos de recursos públicos destinados à proteção das famílias vulneráveis, autorizado pelo Congresso Nacional, e validado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Tal marcha experimentou significativa intensificação, a partir de abril de 2022, explicada por fatores exógenos e domésticos. No front externo emergiu os impactos multiplicadores dinâmicos do boom exportador, proporcionado pela disparada das cotações globais das commodities, com a invasão russa à Ucrânia, e os riscos de descontinuidade de abastecimento e a imposição de sanções comerciais à nação comandada por Putin.
No terreno interno sobressaiu a festança da multiplicação multiforme de dispêndios públicos correntes, via ampliação do Auxílio Brasil (junção do extinto Bolsa Família e Auxílio Emergencial, criado em abril de 2020, para abrandar os desdobramentos nocivos do alastramento do Sars-CoV-2 sobre a massa de rendimentos dos menos favorecidos) e renúncias temporárias de arrecadação de impostos (federais e estaduais) incidentes sobre o consumo, principalmente de combustíveis, energia e telecomunicações.
Tratou-se de alocação de vultoso volume de recursos públicos atrelada ao atendimento dos objetivos de reeleição do incumbente de plantão, com aval do parlamento, em afronta aos princípios elementares de responsabilidade fiscal, disfarçada em emendas parlamentares e calote de R$ 90 bilhões nas obrigações impostas por sentenças judiciais, conhecidas como precatórios, e divorciada das políticas públicas de longo prazo.
Esse expediente escuso representou verdadeira bomba capaz de explodir a execução das finanças públicas, em 2023, desarmada com a conquista da PEC da Transição, acordada entre novo governo eleito e poder legislativo, nos dois meses que sucederam o pleito eleitoral de 2022, ante a abdicação da tarefa de governar pelo candidato derrotado nas urnas eletrônicas.
Só que os tempos de farra esbarraram em um movimento de desaceleração dos níveis de atividade, no final de 2022, em fase com o panorama de estagflação, em escala mundial, fruto de exageros na frouxidão monetária e do choque de custos provocado pela guerra.
O rápido e surpreendente afastamento do ambiente adverso se deu por meio da organização e execução de alguns atalhos de política econômica, notadamente a reorganização das iniciativas oficiais de transferência de renda, catapultadas pela recriação do programa Bolsa Família, em março de 2023, em circunstâncias de disponibilidade de peça orçamentária expandida, e favorecidas pelo firme recuo da inflação, a despeito do conservadorismo reinante na gestão monetária.
Estudo desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Banco Mundial, em parceria com o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), aponta que 91,8% das famílias beneficiadas pelo programa estavam fora da linha de pobreza (R$ 218 mensais per capita), em setembro de 2023, a melhor marca desde sua criação há vinte anos.
Mais precisamente, das 21,47 milhões famílias abrangidas pelo Bolsa Família, 19,7 escaparam dessa condição perversa, sendo 3 milhões somente entre março e setembro deste ano. O benefício mínimo por assistido, de R$ 142 por mês, supera a linha de extrema pobreza (R$ 109 por mês).
No entanto, conforme demonstra a experiência pretérita, remota e recente, a adoção desse tipo de solução de desvio de turbulências possui fôlego limitado, se não for acompanhada do erguimento de alicerces reforçados de amparo à decolagem das transações e da geração de empregos, abarcando reformas indispensáveis à restauração da funcionalidade do estado e produtividade microeconômica.
Até porque, mesmo que superior em 4,6% ao observado entre julho e agosto de 2022, no trimestre em pauta, o rendimento médio real mensal dos trabalhadores cresceu apenas 1,1% em relação a março-maio de 2023, devido, primordialmente, à subida da informalidade, de 38,9% para 39,1% da população ocupada.
A esse respeito, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Novo Caged), do Ministério do Trabalho e Emprego, vem denotando perda de velocidade na abertura líquida de postos com carteira assinada, no país, ao longo do ano. A criação líquida de vagas diminuiu de 1.901.482, entre janeiro e agosto de 2022, para 1.388.062, em igual período de 2023.
Sem contar que, embora o lançamento de ações oficiais voltadas à facilitação da renegociação de dívidas, o endividamento das famílias brasileiras permaneceu elevado, no mês de agosto de 2023, de acordo com levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens Serviços e Turismo (CNC).
São 77,4% das famílias com algum tipo de passivo, 30% com pagamentos em atraso, superior a 60 dias, em média, 12,7% sem condições de quitação e 85,5% penduradas no cartão de crédito, que, na modalidade rotativo, cobra juros anuais médios de 445,7%, segundo acompanhamento do Banco Central (BC).
Por tudo isso, urge aos policy makers brasileiros a absorção da irrefutável constatação acerca do papel residual, ainda que relevante, das ações assistencialistas, indispensáveis à mitigação ou supressão das mazelas sociais, particularmente em momentos de inflexão da atividade econômica, demonstrada por não poucas evidências empíricas.
Em continuidade, soa imperioso o reconhecimento de que o desencadeamento de fases expansivas duradouras, em linha com o produto potencial, apoiadas em inserção externa competitiva e inclusão social e menos sensíveis à choques de oferta, só será factível com a revisão e criação de regras e prescrição e aplicação de mecanismos estáveis e transparentes, tendo em conta deslocamento da lógica racional dos agentes sociais, sobretudo em democracias comandadas pelo populismo.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.