Gasto público no Brasil: proteção ou maldição?
Gilmar Mendes Lourenço.
A derrota definitiva do ministro da Fazenda de Lula 1 (2003-2006), Antonio Palocci, em 27 de março de 2006, em peleja travada com a então responsável pela pasta das Minas e Energia, Dilma Rousseff, serve como ilustração patética e prática do tradicional embate acontecido no interior de várias administrações governamentais, envolvendo pães-duros contra gastadores.
Decerto que os preceitos básicos da ciência econômica tratam com mais elegância a categorização daqueles conflitos políticos ao sugerirem disputas entre ortodoxos e heterodoxos ou estabilizadores e desenvolvimentistas ou ainda conservadores e progressistas.
Um mergulho retrospectivo permite a identificação de algumas batalhas entre expoentes da formulação de estratégias macroeconômicas e programas de desenvolvimento, particularmente nas diferentes etapas de implantação da industrialização substitutiva de importações, entre o começo dos anos 1930 e o final da década de 1970.
Sem o propósito de esgotamento dos casos de cotejos, cumpriria destacar o verificado entre Mário Henrique Simonsen (Fazenda) e João Paulo dos Reis Velloso (Planejamento), durante a gestão ditatorial de Ernesto Geisel (1974-1979), sintetizado no duelo entre a proposta de aplicação de adequação recessiva ao choque do petróleo de 1973 e a de defesa de captura dos petrodólares, abundantes no mundo, para a cobertura financeira dos vultosos projetos de investimentos previstos no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND).
A escolha da alternativa dois permitiu o preenchimento dos vazios da matriz produtiva brasileira, ainda que do espectro da segunda revolução industrial, e mega inversões em infraestrutura, em troca da acumulação de apreciável passivo junto à comunidade financeira internacional, contratado a juros flutuantes.
Ainda no decorrer da ditadura da farda, especificamente sob João Baptista de Figueiredo (1979-1985), a “queda de braço” ocorreu entre Simonsen (Planejamento), coadjuvado por Karlos Rischibieter (Fazenda), contra Delfim Neto (Agricultura) e Mario Andreazza (Interior).
Aquele duelo abarcava, de um lado, a recomendação de ajuste conservador à crise internacional, provocada pelo choque do petróleo e dos juros, de setembro de 1979, e, de outro, o lançamento de incentivos fiscais, financeiros e cambiais à operação na contramão das adversidades externas.
A vitória da segunda corrente ensejou os desconfortáveis pedidos de demissão de Simonsen e Rischibieter, a ascensão de Delfim ao posto de czar da economia e a multiplicação do endividamento externo, a falência do estado, a ciranda financeira, a superinflação e o fracasso de todas as tentativas de debelá-la, entre 1981 e 1993, o que serviu para conformar a famosa década perdida, dimensionada em 13 anos.
No princípio do processo de redemocratização, em 1985, batizado de Nova República, a contenda foi protagonizada por Francisco Dornelles (Fazenda), arauto do emprego de austeridade monetária e fiscal, e João Sayad (Planejamento), representante legítimo e portador das bandeiras articuladas pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), especialmente por seu presidente, Ulysses Guimarães, com os principais movimentos sociais e a vanguarda da classe empresarial, ferrenha opositora ao regime de arbítrio.
O malogro de Dornelles, somado à fragilidade política do presidente José Sarney, substituto do eleito, Tancredo Neves, que nem chegou a tomar posse por conta de adoecimento e falecimento, deixou o caminho livre para a elaboração das experiências heterodoxas da geração conhecida como os planos “cruzado”, na segunda metade do decênio de 1980.
A insucesso daquelas incursões, por privilegiarem o ataque às causas e não os efeitos da patologia inflacionária, ensejou o brutal confisco dos ativos financeiros, imposto pela atrapalhada equipe da ministra Zélia Cardoso de Melo, da administração de Fernando Collor, em 1990, que resultou em retumbante revés.
Já na época da desinflação, ensejada pelo plano real, os desencontros entre Pedro Malan (Fazenda) e José Serra (Planejamento), guerreiros da responsabilidade fiscal e crescimento, respectivamente, foram equacionados com a designação do segundo para o ministério da Saúde, com uma gestão de excelência que o habilitou à condição de candidato pelo PSDB à sucessão presidencial, em 2002.
Exatamente na sequência surgiu o antagonismo entre Palocci e Dilma, anunciado no começo deste texto, que traduzia uma espécie de pendenga entre morte e redenção.
Enquanto Palocci anunciava o objetivo de perseguição de zeragem do déficit nominal, levantado e conduzido pelo ex-ministro Delfim Netto, conselheiro informal do governo Lula, em razão dos crescentes superávits primários herdados dos tempos de Malan, na era de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Dilma encampava os pleitos de ampliação dos dispêndios e investimentos públicos, amparada na premissa de que “gasto é vida”.
O mais grave, porém, é que o certame foi ganho pelos adeptos do pensamento de infinitude dos recursos públicos, notadamente se forem alocados quase que exclusivamente na combinação entre impulsão do consumo privado e fabricação de represamento inflacionário via manejo populista dos preços administrados.
Como consequência, a nação foi despejada no ninho das cobras, experimentando a maior e mais longa recessão da história republicana, com retração do PIB superior a 8%, no interregno 2014-2016, em paralelo ao aprofundamento da instabilidade política, nascida com as inúmeras manifestações de rua de 2013 e maximizada com o apogeu da descoberta e investigação de casos de malversação de recursos públicos, pela operação lava jato, que desembocaram no impedimento e cassação da presidente, em agosto de 2016.
A atual refrega, que traduz evidente antecipação do combate para ocupação do posto maior na sucessão do presidente Lula, em 2026 ou 2030, reúne o grupo encabeçado pelo chefe da Fazenda, Fernando Haddad, a cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT) e do governo, liderada pela presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, e o titular da Casa Civil, Rui Costa.
Em inúmeros episódios, o time de Haddad vem defendendo fervorosamente o cumprimento da nova regra fiscal, carimbada com a meta de déficit primário zero, em 2024, e o elenco estrelado do “fogo amigo” vem se empenhando no resgate da farra do gasto público.
O próprio Haddad deixou escapar, em entrevista à CNN Brasil, a organização de uma espécie de “bolão”, por parte do núcleo duro de sua agremiação partidária, com a intenção precípua de mensuração do tempo de permanência do ministro à frente da pasta.
Isso é especialmente inquietante se for levado em conta que o expressivo desequilíbrio das finanças públicas, em 2023, fora acomodado pelo Congresso Nacional, ainda em 2022, com a aprovação da PEC da Transição, negociada com a futuro staff de governo, incorporando as despesas incrementais derivadas da adequação do contrato social da campanha vitoriosa nas urnas.
Nessas circunstâncias, parece prudente a criteriosa apreciação e negação da cultura de negligência a crescentes e permanentes estouros orçamentários que, não necessariamente, pode ser compreendida como “vida” pelo complexo sistema das relações econômicas.
Ao contrário, a ruptura da prevalência dos costumes perdulários impõe duras discussões acerca da introdução de contingenciamentos e bloqueios de liberações de recursos, adoção de encorpado programa de cortes de dispêndios públicos e reavaliações dos critérios de indexação das rubricas obrigatórias, em sua maioria impulsionadas pela concessão de reajustes reais do salário mínimo, ainda que com inevitável revisão da meta fiscal.
Sem contar a interferência decisiva exercida pela natureza pesada da máquina pública, carente de ampla reforma administrativa que, dentre outros atributos, permite o reencaixe do estado, nos diferentes níveis, no estrito perímetro delineado pela peça orçamentária.
Mais do que isso, em sendo entendida como inexistência ou predominância de lacunas de políticas de estado, a farra com verbas públicas pode ocasionar exacerbação das expectativas negativas dos agentes sociais e precipitar o regresso da doença inflacionária e, por extensão, a prescrição e uso de remédios amargos, prejudiciais à saúde dos mais pobres.
Não bastasse essa argumentação, as estratégias macroeconômicas implementadas na segunda metade dos anos 1990 e primeira do decênio 2000 constituem prova cabal que esforço e ajuste fiscal podem não significar morte ou maldição se buscarem prioritariamente o enfraquecimento, ou mesmo o desmanche, dos poderosos lobbies encarregados da viabilização política da multiplicação desenfreada das despesas governamentais.