Renegociação das dívidas dos estados: nova rendição à irresponsabilidade fiscal
Gilmar Mendes Lourenço.
A renegociação do endividamento dos principais estados brasileiros junto à União, acontecida em 1993, representou um dos elementos fundamentais à percepção dos agentes econômicos acerca dos firmes compromissos do governo Itamar Franco na direção da construção da âncora fiscal do processo de estabilização macroeconômica, conhecido como Plano Real, que resultou na eliminação da superinflação e restauração das três funções clássicas de um padrão monetário estável: unidade de conta, reserva de valor e meio de pagamento.
Convém recordar que a estratégia de ajustamento foi lançada no primeiro semestre de 1993, pelo quarto ministro do mandato tampão do chefe de estado, com duração de dois anos e três meses, o senador e embaixador, Fernando Henrique Cardoso (FHC), depois da instauração do processo impeachment e renúncia do incumbente Fernando Collor de Mello.
Desde então, as enormes dificuldades encontradas pelas instâncias subnacionais na condução da gestão fiscal e financeira – impregnadas do velho costume de administração do caixa escorada no lucro inflacionário, oportunizado pela indexação das receitas e diminuição das despesas reais, por meio do repasse parcial da inflação pretérita à massa de proventos dos servidores e o persistente atraso no pagamento dos fornecedores – levaram, em diferentes momentos, à deflagração de pressões políticas junto à órbita federal, voltadas à adoção de generosos programas de modificações dos critérios de rolagem dos passivos regionais.
A despeito da indiscutível consolidação da estabilidade monetária, a penúria fiscal, ou a alegada “herança dos antecessores”, ainda que sendo aliados políticos, assumiu contornos tão dramáticos a ponto de exigir, no biênio 1997-1998, novo alongamento do montante de endividamento de 23 estados, do Distrito Federal e de mais de 100 municípios.
Interferiu igualmente na multiplicação do caos a utilização clientelista das instituições financeiras locais para aporte de recursos subsidiados em projetos de eficácia no mínimo duvidosa, em atendimento a interesses políticos, ainda que em contraposição aos pareceres emitidos por analistas internos de viabilidade técnica.
Não por acidente, em meio ao encampe e desejo de execução das reformas neoliberais, ditadas pela globalização, desde o final da década de 1980, dos 32 bancos públicos regionais, 20 foram submetidos a liquidação pelo Banco Central (BC) ou repassados a conglomerados privados.
Para piorar, em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a repactuação dos fluxos de pagamento dos saldos devedores estaduais, com a substituição dos juros compostos por simples e esticamento do prazo de pagamento para 40 anos, em lugar dos 30 anos, sem contar os oito meses de interrupção dos desembolsos.
Como contrapartida, as entidades locais se comprometiam à subida de dispêndios limitada à inflação do ano anterior, regra que, por sinal, já valia para os gastos primários federais, com a aprovação da Lei do Teto de Gastos, sob Michel Temer.
Em continuidade, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul (com carência incremental de três anos, por causa das enchentes de abril/maio), Goiás e outros – atingidos por condições fiscais consideradas extremamente críticas e/ou dotados de maior capacidade de intermediação e defesa de interesses junto ao ambiente paternalista reinante no executivo e legislativo federal, ricos e predominantemente tolerantes com deslizes nas finanças públicas, à revelia da Lei de Reponsabilidade Fiscal, lançada em 2020 -, foram premiados com a preparação e implantação de regimes de recuperação fiscal (RRF).
Via de regra, os acordos celebrados foram ou vem sendo totalmente descumpridos, ou, na melhor das hipóteses, respeitados parcialmente, forçando a feitura de revisões e ajustes que, na prática, resultaram ou resultam na transferência dos rombos ao Tesouro Nacional ou, em outros termos, ao conjunto da sociedade contributiva.
Apenas a título de exemplo, Minas Gerais, domicílio eleitoral de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, possui dívida de aproximadamente R$ 160 bilhões com a União, o que equivale a 168,2% da receita corrente líquida (RCL), estando com quitação suspensa desde o final de 2018, por deliberação do STF.
Por essa perspectiva de leniência histórica, é fácil perceber que os esforços e tratativas de redefinição dos rombos estaduais, em curso desde o princípio de Lula 3, rumava em sentido análogo, ao condicionar eventuais abatimentos de encargos à realização de inversões em ensino profissionalizante.
Ressalte-se que anteriormente foi fixada a troca do indexador da família do índice geral de preços (IGP), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), para o índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, menos suscetível à ocorrência de choques episódicos de oferta, exógenos e endógenos, com acréscimo de juros de 4%.
No entanto, o projeto de lei apresentado a respeito do assunto pelo presidente do Senado constitui um desfiguramento da versão encaminhada pelo Ministério da Fazenda, por meio de uma verdadeira abertura ou mesmo retirada dos ralos para escoamento de haveres públicos, ao intensificar as benesses concedidas aos elementos perdulários.
Na verdade, a incursão de Pacheco, postulante à disputa do governo de Minas Gerais, nas eleições de 2026, deriva de demanda eminentemente localizada espacialmente.
Isso porque, destituído de retaguarda parlamentar para a aprovação das contrapartidas do RRF, precisamente as reformas estruturais e as desestatizações (Cemig, Copasa e Codemig), e consumindo quase 60% da RCL com pessoal e encargos, o maior patamar do país, o governador mineiro, Romeu Zema, rogou clemência ao comandante do Congresso, que se encarregou de descaracterizar o discreto documento da Fazenda.
Pela iniciativa de Pacheco há a eliminação da cobrança de juros, algo incompatível com a dinâmica financeira nacional, e a instituição de um fundo de equalização, hospedeiro de um ponto percentual da extinção cunha financeira, para repartição generalizada.
Ademais, as unidades contempladas com os benefícios poderão repassar ativos (participações em empresas) e, principalmente, recebíveis podres (créditos judiciais e em dívida ativa) à União para abatimento das contas ou empregar os haveres descontados em investimentos em infraestrutura econômica e social, sem qualquer tipo de monitoramento de priorização e acompanhamento por parte do credor.
Por tudo isso, não é complicado apreender a preponderância de mecanismos de ajustes das dívidas estaduais visando ao favorecimento explicito de integrantes da federação cronicamente descompromissados com a racionalização de despesas e/ou o aprimoramento da eficiência na gestão dos recursos públicos, em detrimento ou até ridicularização daqueles empenhados na rotina de preservação dos compromissos em dia.
Logo, a solução menos nociva para essa autêntica enrascada repousa no estabelecimento de diretrizes gerais e ativação de instrumentos que facilitem acertos pontuais, caso a caso, ancorados em critérios eminentemente técnicos e livres das injunções de natureza política.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.