Superquarta dos juros: EUA e Brasil – escolhas opostas
Gilmar Mendes Lourenço.
As notícias da renomada “superquarta” da economia, data que assinala a designação dos juros primários referenciais à negociação de papéis emitidos por governos nacionais, capitaneadas pelos Estados Unidos (EUA), não trouxeram qualquer surpresa relevante, com escolhas antagônicas: descida, na América do Norte, e subida, no Brasil.
Apesar de corroborar a percepção e as profecias dos principais analistas do mercado financeiro, o anúncio da decisão do Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central (BC), tomada na reunião de 18 de setembro de 2024, de promover o começo de um novo ciclo de elevação da taxa básica de juros nacional, a Selic, que passou de 10,50% ao ano para 10,75% a.a., a primeira alta desde agosto de 2022, parece carente de um diagnóstico conjuntural menos dependente da lógica e figurino ortodoxo.
Na verdade, os experts vêm superestimando, há algum tempo, a influência das flutuações internacionais na trajetória monetária e real do sistema econômico, fortemente acopladas às tensões e aos rearranjos geopolíticos, com o alargamento do protagonismo de China e Rússia, e à deflagração de conflitos bélicos novos e tradicionais, já suficientemente impregnados nas cotações das matérias primas e dos bens finais.
A redução das pressões inflacionárias, em resposta às condutas de austeridade monetária adotadas pelas autoridades das principais nações avançadas e emergentes desde o primeiro trimestre de 2022, tem favorecido a escolha pela flexibilização generalizada no aperto dos juros.
Daí a reversão da postura de conservadorismo, finalmente acolhida pelo Federal Reserve (Fed), BC dos EUA, com a deliberação de corte da taxa dos Fed Funds – que estavam 0,5% a.a., em janeiro de 2022 -, da faixa de 5,25% a.a. a 5,50% a.a., para a de 4,75% a.a. a 5% a.a., o primeiro desde março de 2020. O Banco Central Europeu diminuiu a taxa de depósito de 3,75% para 3,50% a.a.
Há que considerar também a interferência da reviravolta no cenário eleitoral norte-americano, com o desbanque do favoritismo do candidato Republicano à presidência da república, Donald Trump, no pleito de novembro de 2024, e a incorporação da larga possibilidade de vitória da postulante Democrata, a vice-presidente, Kamala Harris, que ocupou o lugar do presidente Joe Biden, demonstrada pela maioria das pesquisas de opinião.
Não poucos oligopolistas da astúcia contemplativa das diversas facetas do conturbado ambiente planetário chegaram a contratar a compra dos ingredientes para a preparação do bolo da recessão na maior economia, em contraposição à conformação do pleno emprego e apuração de inflação ao consumidor inferior a 3% a.a., em linha convergente à meta de 2%.
Nesse contexto, à primeira vista, o Brasil, mais uma vez, estaria encenando um roteiro contrastante com a curva de negócios esboçada em âmbito mundial, que, mesmo com as apreciáveis restrições impostas pela mistura entre instabilidades políticas e embaraços econômicos, principalmente o regresso do nacionalismo e protecionismo, emoldura um retrato de escape do pântano da letargia econômica com inflação elevada e crescente, principalmente no continente europeu, e apreciação dos papéis comercializados em bolsas de valores e menor pressão de valorização do dólar.
No plano doméstico, os especialistas avaliavam que o panorama de aquecimento econômico e a ampliação das chances de deterioração das finanças públicas e descumprimento da meta fiscal, estariam na raiz da aproximação da inflação anual do limite superior de 4,5%, estabelecido pelo regime de metas, com centro de 3%, fixado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
O empuxe da economia pode ser espelhado na firme recuperação do emprego e da renda, ainda que assentada na combinação entre avanço da informalidade, multiplicação das transferências oficiais diretas de renda e recomposição do crédito, que alavancou o consumo das famílias.
A taxa de desemprego de 6,8% da força de trabalho, no trimestre móvel findo em julho de 2024, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua (PNAD), do IBGE, é a menor desde outubro-dezembro de 2014, quando anotou 6,6%, e está perto do piso histórico de 6,3%, verificado no último trimestre de 2014.
Acrescente-se a perspectiva de ocorrência de choque de oferta negativo, por conta da profunda, prolongada e, geograficamente espalhada, seca que atinge o país com não rara frequência temporal, com repercussões inflacionárias em itens nevrálgicos, como alimentos e energia – troca da bandeira amarela por vermelha nas faturas de luz, já a partir de setembro – e nos níveis de produção e transações.
Nessas circunstâncias, é inevitável a maximização das incertezas em razão, de um lado, da dificuldade de apreciação antecipada das consequências da ascensão dos custos e, de outro, da reconhecida ineficácia da terapia de juros altos no combate à inflação de oferta.
Por essa visão, o chamado risco fiscal, que, trocados em miúdos, significaria absoluto descontrole das contas governamentais e exacerbação das apostas de delineamento de iminente calote na dívida pública, explicaria o movimento de “natural” desvalorização do real, plenamente isento de motivações de caráter especulativo, em uma floresta dominada pela legião comandada por “chapeuzinho vermelho”.
Convém lembrar que os bônus do tesouro, emitidos para a cobertura das necessidades de financiamento e rolagem do passivo público, possuem garantia de recompra e estão imunes, por meio de inscrição na constituição, em 2001, a episódios grotescos e irresponsáveis de retenção de ativos financeiros, como aquele acontecido em 16 de março de 1990, no segundo dia do governo de Fernando Collor de Mello.
Há que atentar igualmente para a predominância da ideia de impotência do arcabouço fiscal na estabilização da relação dívida/PIB e da ausência de um arranjo institucional visando à diminuição da velocidade de expansão dos dispêndios obrigatórios, o que passa, invariavelmente, por uma ampla e criteriosa reforma administrativa, desvinculação das rubricas sociais da política de aumento do poder de compra do salário mínimo e adesão do conjunto das esferas de poder e entes federados ao ajuste fiscal.
A título de ilustração, a generosa renegociação do passivo dos estados, em tramitação na Câmara dos Deputados poderá resultar em prejuízos anuais de até R$ 48 bilhões aos cofres da União, segundo simulações de Manoel Pires, do Observatório Fiscal do FGV-IBRE, e levantamento da Transparência Brasil revela que, em 2023, foram pagos a juízes e desembargadores ao menos R$ 4,5 bilhões acima do teto do funcionalismo público.
Mesmo que aparentemente moderado, o novo curso ascendente da Selic parte de um patamar robusto, dado o declínio de 13,75% a.a. para 10,50% a.a., entre agosto de 2023 e maio de 2024, em meio à troca de inúteis (ou interessantes apenas aos agentes da especulação) farpas entre o chefe de estado e o chairman da agência monetária.
O juro/Selic real situa-se em 7,50%, ou 6,30%, se for descontada a previsão de variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), aferido pelo IBGE, para os próximos doze meses, a segunda maior do mundo, vencida apenas pela Rússia (9,05%), com inevitáveis impactos nos níveis de atividade e de investimento.
Este último, por sinal, engatou aceleração, por três trimestres seguidos, até junho de 2024, puxado pela construção civil, ou, mais precisamente, pelo apreciável derrame de cifras em empreendimentos de caráter eleitoreiro, por parte das prefeituras, muitas deles patrocinados pelas famosas emendas parlamentares.
Já, no front monetário, o incremento do diferencial de juros internos vis a vis os Treasuries (títulos públicos norte-americanos) deve beneficiar a consolidação da tendência de entrada líquida de capitais externos de curto prazo, dirigidos às carteiras atreladas à Selic, e de valorização da moeda nacional.
Por fim, depois de comunicações bizarras e pouco convenientes, expressas por alguns diretores do BC, incluindo o indicado para a ocupação do cargo maior, a partir de 2025. em distintos momentos e espaços de exposição, desenhando a escolha a ser feita, amparada na cartilha convencional, resta torcer para que a mesma represente somente um breve ajuste de percurso.
Se a dosagem do medicamento, não recomendável a uma patologia sob rigoroso controle, como a jornada inflacionária atual, for demasiado elevada e prolongada – os palpites dominantes englobam mais cinco altas seguidas até atingir 12% a.a. – poderá provocar o adoecimento do paciente e o aparecimento de sintomas como a subida dos custos de captação de recursos pelos agentes, em especial governo e iniciativa privada, e, o que é pior, a inflação de custos.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.