Concepção e implicações políticas do golpe fracassado

Concepção e implicações políticas do golpe fracassado
Gilmar Mendes Lourenço

Os retumbantes episódios de natureza política, desencadeados no final deste mês de novembro de 2024, sugerem ao menos a cogitação da premissa central de que, se as paredes fossem dotadas do sentido de audição e capacidade de fala, o planejamento dos eventos dirigidos à supressão das regras básicas do funcionamento da democracia brasileira, acontecido no final de 2022, poderia ter sido sufocado em seu nascedouro.

Em sendo isso possível, o espetáculo de invasão e depredação das edificações dos três poderes da república – realizado em oito de janeiro de 2023, por uma multidão enfurecida de manifestantes “patriotas”, inconformados com o resultado final do segundo turno das eleições presidenciais de outubro de 2022 – nem teria acontecido e a nação se encontraria em outro patamar institucional.

Porém, como a hipótese levantada reproduz, igualmente na origem, uma falácia, os profundos, detalhados e permanentes esforços investigatórios, feitos pela Polícia Federal (PF), conduziram à identificação de organização de uma autêntica trama golpista.

O enredo foi liderado pela “fina flor” da equipe e/ou aliados do incumbente derrotado nas urnas, coadjuvada por integrantes, ativos ou na reserva, das forças armadas, autodenominados de “rataria” e adeptos do caráter opcional do fiel cumprimento das leis e aparentemente afastados do lema “deus, pátria e família”.

Conforme amplamente disseminado pelos veículos de comunicação, portadores de distintas orientações políticas e ideológicas, a concepção das iniciativas repousava no desenlace em uma ruptura institucional, caracterizada pelo impedimento da posse dos eleitos, feitura de prisões de indesejáveis autoridades do judiciário, execuções e criação de uma espécie de “gabinete de crise”, que operaria em “estado de sítio”.

Esse último seria tocado por entes egressos da caserna e encarregado de assegurar “a ferro e fogo” a continuidade do perdedor no comando e condução do país, amparado na simpatia popular, sintetizada nos acampamentos de seguidores, em frente aos quartéis do exército, e na confecção de retaguarda de legalidade (não legitimidade), oferecida por plantonistas da lei simpáticos à causa de extermínio dos desejos e mensagens eleitorais, defendida e levada adiante pela “gangue do punhal verde amarelo”.

Apesar da indiscutível hesitação do chefe de governo e da negativa, não unânime, do Alto Comando, soa absolutamente paradoxal que, decorridos quase quatro décadas de restauração do ambiente democrático no país, ainda apareçam e prosperem pedidos inflamados de retorno da intervenção fardada em atendimento à insatisfação de grupos anacrônicos com a salutar alternância de poder, determinada pela vontade majoritária dos eleitores.

Ressalte-se que o resgate da democracia se deu depois de vinte e um anos de estado de arbítrio, supressão de liberdades coletivas e individuais, censura à imprensa, tortura e repressão, promovidos por uma ditadura militar que derrubou, em 31 de março de 1964, um governo alçado ao poder por vontade popular e fervorosamente comprometido com a efetivação de reformas de base contrárias aos anseios e reinvindicações das elites.

Mais do que isso, em contraste com a experiência de outros estados nacionais no desmonte de sistemas autocratas, o processo de regresso da democracia brasileira foi pavimentado por meio do expediente do sufrágio, principalmente nas contendas eleitorais parlamentares de 1974, 1978 e 1982 (neste caso incluindo governadores), que expressaram o descontentamento generalizado da sociedade com o status quo autoritário.

Não por acaso, forças progressistas desgostosas, brotadas do interior do regime de chumbo, e moderadas das oposições, agrupadas no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), acordaram a viabilização da gradual transição conservadora de poder à uma administração civil, por canal ainda indireto, representado pelo colégio eleitoral, em janeiro de 1985, que consagrou a chapa formada por Tancredo Neves, notável figura dos quadros adversários, à presidência, e José Sarney, egresso do sistema, à vice.

A reconquista da democracia foi consolidada com a Constituição de 1988, que, dentre incontáveis aprimoramentos institucionais, notadamente os mecanismos de inclusão social, decretou eleições diretas para a totalidade dos níveis de governo, a partir de 1989.

Desde então, a nação contabilizou sete personagens alçados à chefia de estado, em dez eleições, com dois impeachments (1992 e 2016), que culminaram na posse dos vices das chapas eleitas (Itamar Franco e Michel Temer, respectivamente), e a deliberação do instituto da reeleição para cargos executivos, nos pleitos de 1998 em diante.

Em meio ao prosseguimento das tarefas de levantamento detalhado do conjunto das informações acerca das condutas criminosas, sob a responsabilidade da PF e do Ministério Público, despojadas de açodamento sob pena de incorrência no cometimento de falhas, salta aos olhos o silêncio obsequioso ou verbalizações protocolares dos atores políticos, notadamente os detentores de mandatos populares hospedados no seio do conservadorismo do espectro ideológico, praticamente ignorando a dimensão e relevância do assunto.

Nessa perspectiva, parece prudente reconhecer com bastante eloquência a geração de uma espécie de marco divisório para a escolha de posicionamentos políticos, com o atentado ao Supremo Tribunal Federal (STF) e as dezenas de indiciamentos por motivação e ação golpistas.

Não há mais lugar para conivência e respaldo, ainda que velado, a retóricas extremistas, fascinadas pela tortura, respeitosas a ditaduras, sabotadoras dos avanços científicos acoplados à vacinação, e arautas da minimização da importância e esfacelamento das instituições.

A esse respeito, as eleições para prefeituras e câmaras municipais, ocorridas em outubro de 2024, revelaram a opção preferencial dos eleitores pela despolarização da nação, com a predileção por propostas concretas, em sua maioria brotadas de administrações portadoras de comportamento pragmático e distantes de debates ideológicos, protagonizados por devotos de bandeiras nacionais, sobretudo no reduto das mídias digitais, e/ou caciques das agremiações consideradas radicais.

Em outros termos, ao menos em 2024, o eleitor expressou maior identificação com plataformas e atitudes convencionais, aderentes aos interesses do cotidiano social, e vontade de escape das chances de contágio por ideias plantadas, colhidas e distribuídas pelos propagadores do extremismo raiz.

Por isso, meras exposições, ainda que escancaradas, de encaixe em preceitos e demandas da população, alinhadas com os projetos de centro e direita convencional, podem não ser suficientes para ensejar e viabilizar candidaturas alternativas encorpadas, em 2026.

Urge o livramento da escuridão da cumplicidade e a veemente negação do projeto de perenização no poder pelo caminho da truculência, avesso ao diálogo, pluralidade, confronto de ideias, cotejo de opiniões e entendimento, justamente as marcas indeléveis do convívio entre diferentes em estados adeptos da democracia liberal.

É preciso também rechaçar, em quaisquer circunstâncias, proposições políticas de conteúdo radical, mesmo as colocadas na vitrine, em espaço de destaque, com um figurino de “bom mocismo” ou de “salvador da pátria”. Não custa recordar que o Brasil venceu, mas a Venezuela perdeu.

Até porque, como exerce trabalho pesado “de sol a sol”, a maior fração da população nacional não dispõe de tempo e/ou inspiração para a elaboração de estratégias de varredura de árduas conquistas, obtidas durante décadas, ou, na pior das premissas, a delegação do desenho e implantação de um golpe a um pequeno grupo de militares absolutamente “fora de serviço” e da realidade, dedicados, dentro da sede do governo, exclusiva e permanentemente à fabricação de “explosivos” para detonar a democracia.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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