Déficit recorde das empresas estatais e estouro das renúncias tributárias
Gilmar Mendes Lourenço.
Uma rápida incursão retrospectiva na base de estatísticas agregadas do desempenho financeiro do universo das companhias estatais controladas pela União, levantadas pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e disponibilizadas pelo Banco Central (BC), desde o exercício econômico de 2002, permite entender a exacerbação dos barulhos provocados pelos mercados de ativos de risco, ainda que grandemente afetada por interesses e atitudes eminentemente especulativas.
Ao mesmo tempo, o exercício de observação técnica propicia descobrir, ainda que de forma preliminar, as motivações da multiplicação das incertezas dos agentes econômicos e sociais quanto ao futuro, o que tem induzido atitudes defensivas diante do delineamento de cenários indesejáveis.
O mais complicado é que um terreno ocupado pelos espaços oferecidos pelos veículos formadores de opinião quase que exclusivamente com o elenco de dificuldades da política macroeconômica do executivo federal sinalizar a obtenção da estabilização da relação dívida/produto interno bruto (PIB), em médio prazo, torna-se extremamente fértil ao alargamento das apreensões.
Nessas circunstâncias, estreitam-se as margens de manobra para a construção de firmes alicerces à consolidação da recuperação econômica em curso no Brasil – o índice de atividade econômica do Banco Central (IBC-Br), prévia do Produto Interno Bruto (PIB), cresceu 3% em doze meses encerrados em setembro de 2024 -, derivada do amadurecimento das reformas institucionais, promovidas nos últimos anos, centradas na flexibilização da legislação trabalhista, do avanço das obras de infraestrutura e do estupendo desempenho do agronegócio e das indústrias extrativas.
Contudo o maior componente da impulsou residiu no fortalecimento do mercado doméstico, puxado pela recomposição orçamentária dos programas sociais e o retorno da estratégia de promoção de reajustes do valor do salário mínimo superiores à variação da inflação.
Só que as celebrações perdem o brilho quando a macroeconomia adverte que reação da absorção interna vem sendo sustentada pela perigosa priorização da combinação de pronunciado acréscimo dos gastos públicos e do consumo privado, amparado em endividamento recorde de famílias e empresas, em clima de vigência de taxas de juros proibitivas.
No que se refere às organizações públicas, isso é particularmente mais angustiante quando se constata uma espécie de negligência à imposição da lógica econômica de privilegiamento da sintonia fina entre mudança dos patamares de investimentos, em fase com a quarta revolução industrial global, e otimização dos procedimentos de condução profissional.
O que se vê são enormes dificuldades de libertação das companhias das inúmeras amarras de natureza política, especialmente em condições de permanência e consolidação de um modelo de estado avesso às escolhas de formulação e consistente execução de um arrojado plano de privatizações e concessões e parcerias público privadas (PPPs).
Em consequência, depois de ostentar expressivo saldo primário de R$ 5 bilhões, em 2002, no último ano de incumbência de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o conjunto de empresas sob a tutela federal exibiu contas no vermelho durante praticamente todas as administrações tocadas pela aliança hegemônica liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), de Lula 1 e 2 (2003-2010) e Dilma Rousseff 1¼ (2011-maio/2016).
Mais precisamente, após experimentarem desequilíbrio de mais de R$ 3 bilhões, em 2003, compensado pelo resultado positivo de R$ 2,8 bilhões, no biênio 2004-2005, as organizações sofreram desnível de mais de R$ 12 bilhões, acumulado entre 2006 e 2010.
Na sequência, depois do excedente de R$ 1,2 bilhão, em 2011, os entes públicos somaram rombo de R$ 11,7 bilhões, no intervalo compreendido entre 2012 e 2017, coincidindo com o primeiro tempo e o começo do segundo da gerência de Dilma e um pedaço do mandato tampão do presidente Michel Temer (entre maio de 2016 e dezembro de 2018), depois da instauração do impeachment da inquilina do Palácio do Planalto.
Lembre-se que o impedimento e a subsequente cassação da mandatária derivaram da identificação de crimes de responsabilidade, sintetizados na primitiva maquiagem dos números das finanças públicas, utilização das agências financeiras oficiais para a cobertura de dispêndios diretos do poder central com assistência social e lançamento de suplementações orçamentárias destituído de aprovação legislativa.
Na verdade, a apuração de sucessivas e crescentes quantias deficitárias nas entidades públicas adveio do escancarado aparelhamento partidário das gestões e consumação de verdadeiros assaltos aos respectivos caixas, por meio da viabilização de articulações promíscuas entre agentes políticos (do executivo e parlamento) e empresários, suficientemente desvendadas no âmbito das investigações do Mensalão, nos anos 2000, e do Petrolão, na década de 2010.
Essa trajetória perversa foi revertida somente a partir de 2018, em decorrência da maturação da renovada Lei das Estatais, instituída ainda em 2016, pela equipe de Temer.
O novo aparato buscou estabelecer normas mais rigorosas e transparentes para a realização de licitações, contratação de encomendas e indicação e nomeação de diretores, presidentes e membros dos respectivos conselhos de administração das empresas.
Como se pode perceber, tratou-se de uma reengenharia meramente convencional que oportunizou a implementação de um programa de saneamento financeiro das empresas subordinadas ao Tesouro Nacional, que constam no Orçamento Federal por cronicamente não conseguirem produzir receitas suficientes à cobertura de suas operações.
Ficaram de fora aquelas atuantes sob mecanismos menos distantes dos praticados pelo mercado, e respectivas subsidiárias, como a Petrobras e as instituições financeiras oficiais: Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Por conta disso, o grupo de companhias apresentou sobras de quase R$ 30 bilhões, no biênio 2018-2019 – decorrentes principalmente de vultosos aportes do Tesouro em operações de socorro -, desprovimento de R$ 770 milhões, em 2020, em razão das agruras e flutuações cíclicas provocadas pela pandemia de Covid-19, e remanescente de R$ 38,5 bilhões, agregados em 2021 e 2022.
Só que os prejuízos retornaram a partir de 2023, atingindo R$ 656 milhões, naquele ano, e de R$ 3,6 bilhões, entre janeiro e setembro de 2024, devendo chegar a R$ 5 bilhões, até o encerramento do exercício fiscal, o que representará o maior déficit anual em uma década, sendo que o recorde anterior aconteceu em 2014 (R$ 3,5 bilhões).
Se for adicionado o rombo das empresas públicas sob a batuta de governos estaduais e administrações municipais, a insuficiência de recursos deverá se aproximar de R$ 8 bilhões, a maior cifra anual captada pela série histórica dos levantamentos efetuados pela autoridade monetária.
O mais gritante, porém, é que ao proclamar instrumentos de proteção baseados em contínuo derrame de haveres orçamentários (transferências e/ou capitalizações) e dispensa de feitura de esforços competitivos, o governo deliberadamente faz a opção de atuação como verdadeiro incitador de distúrbios.
Dentre eles destacam-se a deliberada rendição das estatais às disfunções de caráter ideológico dos agentes controladores, aos métodos gerenciais impostos pela excessiva burocracia, predominante nos órgãos da administração direta, e à intransigente adoção de processos produtivos de reduzida eficiência – como o caso emblemático do setor naval -, o que sanciona, ou ao menos facilita, as iniciativas de predadores atentos à renovação dos loteamentos e ocupação de cargos e colheita de dividendos políticos.
O caso mais funesto é do Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), integrante do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, uma autêntica vala de escoamento das emendas parlamentares – manipuladas por caciques da Câmara dos Deputados e Senado da República – que, em vez da perseguição institucional por transparência, deveriam ser alojadas no escaninho da extinção.
Outro sinal de desmando é o da Telebrás, abrigada pelo Ministério das Comunicações, sobrante do programa de privatizações do sistema de telecomunicações, executado em 1998, durante o primeiro mandato de FHC, e mantida somente para a quitação das pendências financeiras e suprimento (cessão) de mão de obra à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com determinação de subsequente eliminação.
Porém, a empresa foi reativada em 2010, no final de Lula 2, sob a justificativa de premência de ampliação do acesso à internet em todo o território nacional, incorporada ao elenco das potencialmente privatizáveis, por Bolsonaro, o que desagradou arroubos militares, e novamente retirada da lista de vendáveis, por Lula 3, em 2023, mesmo sem desempenhar qualquer atividade operacional.
Sem dúvida, esses números desfavoráveis servem para adensar o leque de obstáculos – erguidos por membros da esplanada e da cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT), reféns da ideia de que “gasto é vida” – que o governo, particularmente o Ministério da Fazenda, tocado por Fernando Haddad, vem encontrando para a consecução da meta do arcabouço fiscal, aprovado em 2023, em substituição ao Teto de Gastos, revisada para déficit primário de até -0,25% do PIB, em 2024.
Ressalte-se que a consecução do ajuste fiscal, baseado na contenção do ritmo de subida das despesas obrigatórias do poder executivo, é crucial à obtenção do controle da inflação, da diminuição dos juros, da melhora da nota de crédito da dívida brasileira pelas agências internacionais de classificação de risco, e, por extensão, da melhora da atmosfera de negócios e eliminação do frequente mau humor reinante nos mercados.
Embora excluídas dos cálculos, por serem categorizadas como despesas parafiscais, e isentas da tarefa de compensação, as injeções de recursos nas organizações do governo catapultam as necessidades de financiamento, a dívida pública e os juros.
Infelizmente, o crônico desequilíbrio financeiro das estatais configura a apreciável fatura emitida e endereçada à quitação com os recursos transferidos compulsoriamente pelos contribuintes a um aparelho de estado carente de reorientação e renovação.
O pior mesmo é o déficit de compreensão da finalidade precípua da concepção e funcionamento de um estado de tamanho avantajado que deveria dedicar-se à contínua e audaciosa tarefa de busca da diminuição da desigualdade do tecido social no ambiente brasileiro.
Por essa perspectiva, parece oportuno finalizar alertando para a premência de promoção de uma guinada na política de subsídios e isenções fiscais. Estimativas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), realizadas em parceria com o Conselho em Políticas Econômicas (Council on Economic Policies) e o Instituto Alemão para o Desenvolvimento e a Sustentabilidade (Idos), revelam que o total de despesas tributárias – renúncias de arrecadação destinadas à parcela da massa de contribuintes ou benefícios de isenção no pagamento de impostos e contribuições – deve chegar a 6,9% do PIB, em 2024 – englobando favores federais (4,5% do PIB) e estaduais (2,4% do PIB) -, depois de registrar 7,2% do PIB, em 2023, o pico da série histórica iniciada em 2002.
O grupo de excepcionalidades abrange 128 itens de favores como o Simples (que incita a conveniente pejotização dos salários da elite dos funcionários da iniciativa privada), a Zona Franca de Manaus, Repreto (combustíveis fósseis) e a agroindústria, dos quais 95 (74,2% do total) possuem vigência até 2073, não equacionáveis pela reforma tributária, em fase de regulamentação no Congresso Nacional.
Ao contrário, como o inescapável fim da guerra fiscal, previsto no novo aparato, o projeto em tramitação incorporou a criação de um fundo de compensação para as unidades subnacionais que deverá custar aos cofres públicos cerca de R$ 160 bilhões, entre 2025 e 2032.
Em sendo feita uma periodização das estatísticas, observa-se que o menor peso desse tipo de dispêndio indireto governamental foi apurado no quadriênio 2002-2007, quando acusou média anual de 2,3% do PIB. Depois disso o parâmetro passou a trilhar rota ascendente, sendo catapultado para 4,4% do PIB, entre 2008 e 2012, e 5,7% do PIB, entre 2013 e 2022.
Tal descalabro explicita, em grande proporção, os procedimentos legais de privilegiamento de abdicação ou devolução de receita tributária, que atendem aos objetivos de estrangular a capacidade de feitura de políticas públicas dirigidas aos segmentos do piso da pirâmide social, que, ao menos na retórica, se objetiva resguardar.
Paradoxalmente, para se ter outra ideia da dimensão das aberrações, essas regalias seriam suficientes para produzir a zeragem do déficit primário consolidado do setor público em mais um decênio.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.