Trump 2: a nova cara do populismo de ultradireita
Gilmar Mendes Lourenço.
A rápida, acachapante e incontestável vitória do neopopulismo conservador, desenhado nas primeiras três décadas deste século, na corrida presidencial dos Estados Unidos (EUA), configurou mais um episódio de inflexão da longeva democracia norte-americana, com o agravante de fornecer margens de manobra adicionais à legitimação das chances de instauração e consolidação de um regime autocrático e negacionista da sustentabilidade ambiental e social.
Convém não esquecer que o triunfo enfeixa o indisfarçável cacife concedido pelo referendo popular e pelo arcaico Colégio de Delegados, produzido e transmitido por meio das urnas, algo que não acontecia desde a recondução de George W. Bush à Casa Branca, há vinte anos.
Ademais, as apurações permitiram a celebração da conquista do executivo e a formação de maioria na Câmara dos Deputados e no Senado, que vale para os próximos dois anos, em paralelo ao domínio já estabelecido pela ortodoxia no Judiciário, o que deve atiçar os desejos de ruptura das regras democráticas formais e informais.
Os eixos explicativos do contundente score eleitoral em favor dos Republicanos repousam no comportamento inábil e hesitante da cúpula do Partido Democrata, tanto na indicação do fragilizado Joe Biden à reeleição quanto na demora da troca por Kamala Harris, por ocasião da percepção de inviabilidade da candidatura de continuidade, amparada quase que exclusivamente no “blá blá blá” focado no fortalecimento das instituições.
Também interferiram crucialmente na conformação de um clima adverso aos progressistas, a incapacidade de convencimento da sociedade acerca do manejo adequado da política econômica pós-pandemia de Covid-19, que resultou em drástica queda do desemprego e, em menor medida, da inflação, e empuxe nos patamares de rendimentos das famílias.
Em vez disso, os agentes sociais notaram, prioritariamente, o vagaroso caminho de retorno da inflação aos níveis necessários ao desencadeamento de um ciclo econômico virtuoso e perene, a despeito da longa duração da austeridade monetária praticada pelo Federal Reserve (Fed), e a manutenção de uma política externa acanhada ante o alargamento da dimensão geográfica e política dos recentes conflitos globais.
Em condições tão inóspitas, mesmo com os apelos aos redutos fiéis da população feminina e negra, a nova postulante não conseguiu se despojar da indiscutível desconexão com as massas e preferiu preservar a desconfortável posição de defesa do insuficiente instrumental oferecido pelo arranjo macroeconômico doméstico.
Mais do que isso, Kamala mostrou-se confusa na explicitação dos mecanismos a serem acionados para a restauração do peso americano no encaminhamento das tratativas e influência nas deliberações voltadas ao equacionamento dos embaraços internacionais.
Enquanto a Democrata optou por “andar em círculos”, o escolhido do partido Republicano – que, por sinal, a partir do ingresso de Trump se transformou em uma agremiação nacional-populista – surfou a onda de pretendente permanente, desde a perda não reconhecida no pleito à continuidade, em 2020 – sublimado com a invasão não pacífica do Capitólio por seus fiéis devotos, em 06 de janeiro de 2021 -, beneficiado pela agudização do cenário de incertezas econômicas e aprofundamento das tensões geopolíticas.
Ao mesmo tempo, com o pleno aproveitamento do estado de reprovação generalizada a dois atentados que teria sofrido, da fartura de doações financeiras internas e exógenas e do poder destrutivo da veiculação disseminada de notícias falsas, Trump logrou êxito na empreitada de retorno.
É interessante observar que o ex-chefe de estado venceu inclusive nas camadas mais pobres da população (50% versus 47%), algo que não se verificava há décadas, sendo que 64% daquele estrato eleitoral sufragou Barack Obama, em 2008, contra o aspirante Republicano, John McCain.
Decerto que as fortalezas seculares da democracia norte-americana constituem enormes barreiras, ainda que não intransponíveis, a incursões autoritárias de governantes de plantão, especialmente quanto às proposições radicais, elaboradas e lançadas por plataformas na efervescência dos eventos eleitorais, o que dificulta o delineamento especulativo da derradeira gestão de Trump, entre 2025 e 2028. Até porque, os pesos e contrapesos institucionais predominaram entre 2017 e 2020.
No entanto, em um governo, loteado e conduzido por subordinados fanáticos, ao contrário da tecnoburocracia do anterior, cabe cogitar a reedição, em bases alargadas, dos retrocessos no combate às mudanças climáticas e à aceleração da implantação da transição energética, com a provável expansão da produção de petróleo e gás, em detrimento de incentivos à intensificação da exploração de fontes renováveis.
Na mesma linha, haverá o aprofundamento da estratégia de erguimento de barreiras, legais e físicas, a entrada e permanência de estrangeiros ilegais, o deliberado regresso da arbitrariedade na implementação dos programas públicos, principalmente o desmantelamento da retaguarda de proteção social, adotada nos tempos de Barack Obama, abatida entre 2017 e 2020, e restabelecida por Biden, o que sugere a constituição de ambientes nebulosos à sobrevivência dos integrantes do piso da pirâmide, que, como já observado, foram essenciais no certame eleitoral.
Ademais, considerando o interesse de cumprimento de parcela das promessas de estímulo à iniciativa privada, princípio fundamental da cartilha do liberalismo intramuros, abarcando inclusive a redução de tributos e elevação da carga de subsídios para empresas e cidadãos mais abastados, é dispensável uma compreensão econômica arguta para denotar sinais de negligência com a inevitável subida das necessidades de financiamento e dívida pública, juros e inflação.
Outro resgate retórico compreende a lógica nacionalista, também inflacionária, amparada no arremesso de uma verdadeira bomba tarifária, com cobrança de um piso de 60% de imposto de importação, sobre produtos procedentes da China, e de média entre 10% e 20% sobre as mercadorias adquiridas por residentes (empresas, consumidores e governo) americanos do restante do mundo.
Trata-se do empenho de ressureição do paradigma de substituição de importações – ou, como queria Trump em sua primeira passagem, revitalização do cinturão da ferrugem, reduto de unidades industriais americanas que se renderam aos encantos dos negócios da China -, em um contexto de reconfiguração da geografia política planetária.
Mais precisamente, constata-se irreparável abalo da importância do heterogêneo espaço europeu – lotado de problemas econômicos e políticos, como o recente esfacelamento da coalizão alemã denominada Semáforo, de centro-esquerda, composta por sociais-democratas, liberais e verdes, que ancorava o governo do chanceler Olaf Scholz desde 2021 – e o esforço de China e Rússia – com postura de irmãos siameses após as sanções comerciais impostas pelo Ocidente ao Kremlin, com o surgimento da guerra da Ucrânia – de adensamento da disputa hegemônica com os EUA.
Não deixa de ser um imbróglio complexo e antipático ao desmanche, notadamente quando as autoridades envolvidas na organização do novo tabuleiro são portadoras, predominantemente, de atributos comportamentais autoritários e avessos à moderação, diálogo, negociação e entendimento, que, na melhor das hipóteses, atrapalham a concertação de diretrizes e execução de providências e favorecem apostas de prevalência de autêntica montanha-russa.
Até aqui, o não vislumbre pleno das peculiaridades da nova ordem mundial, oito anos depois de sua primeira posse, e o impedimento legal de cumprimento do desejo de reeleição, podem insuflar um Trump ainda mais espetaculoso e arauto do protecionismo comercial.
Consequentemente, o glorioso poderá vir a exercer o indesejável papel de incitador dos cotejos bélicos, ao acatar os objetivos territoriais de Wladimir Putin e suspender a ajuda financeira à Ucrânia, operar o enfraquecimento da Otan, ONU e outros organismos mundiais, e, especificamente no Oriente Médio, conceder apoio irrestrito a Israel, em lugar da relutância de Biden, no cotejo contra Hamas, na faixa de Gaza, e Hezzbollah, no Líbano, e, ao que tudo indica, Irã.
Em resumo, ainda é demasiado cedo para a realização de referências ou mesmo prospecções mais acuradas e definitivas a respeito do conteúdo de ação e da magnitude dos prováveis efeitos da nova administração de Donald Trump na intrincada dinâmica das relações globais.
Porém, não é exagerado antever que com o radicalismo de extrema direita encarregado do planejamento e direção dos rumos da nação potência, o funcionamento das engrenagens das despreparadas e/ou estressadas vertentes políticas, institucionais e econômicas do planeta tornar-se-á mais complexo, escuro, incerto e, sobretudo, perigoso.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.