Estouro nas contas públicas: velhas guinadas de 360 graus

Gilmar Mendes Lourenço.
Os poucos especialistas encarregados do trabalho da análise minuciosa e formulação de diagnósticos a respeito do comportamento das finanças públicas nacionais costumam conferir prioridade ao criterioso exame do grupo de estatísticas relativo à esfera federal.
Isso deriva de se tratar inquestionavelmente do ente com maior envergadura no interior do sistema econômico, atestada pela aferição de o governo central se apropriar de mais de ¼ da renda gerada, retirado da sociedade na forma de impostos, taxas e contribuições.
Mesmo cronicamente deficitária, por motivos nobres e plebeus, a órbita federal é dotada de capacidade de cobertura de suas respectivas necessidades de financiamento ou, mais precisamente, dos buracos nas contas, por meio da venda no mercado de papéis emitidos pelo Tesouro Nacional.
Enquanto os gastos da União, expressos em transferências diretas às famílias, alocações para custeio ou investimentos em infraestrutura econômica e social e aquisições de bens e serviços, constituem elemento ativo da demanda agregada, as taxas de juros pagas pela rolagem diária dos títulos da dívida, representam o piso referencial para as operações de crédito.
O pior é que os bônus do passivo público brasileiro, especificamente aqueles de longo termo, vêm exibindo juros reais acima de 7% ao ano, desde o último trimestre de 2024, reprisando os patamares verificados em 2015 e 2016, coincidindo com a maior recessão da história de república, o que tem servido para agudizar as incertezas quanto à solvência intertemporal do estado.
Não seria ocioso sublinhar que a catástrofe econômica, pari passu com o desprezo administrativo e legal aos fundamentos fiscais da estabilidade macro, resultou na instauração do processo impeachment e subsequente cassação da mandatária, no intervalo entre maio de agosto de 2016.
Normalmente, para a estipulação do preço do dinheiro ao tomador final (famílias e empresas), as instituições financeiras acrescentam, ao juro básico, conhecido como Selic e empregado nas operações interbancárias, os custos administrativos, as despesas tributárias, as provisões para inadimplência e a margem de rentabilidade.
O resultado final desse cálculo é considerado exorbitante no Brasil, em face, fundamentalmente, da estrutura oligopolista prevalecente, evidenciada pela vigorosa concentração bancária, com cinco conglomerados, dois públicos e três privados, encampando mais de 80% dos valores negociados.
No entanto, um exame ainda que superficial da trajetória recente do conjunto da contabilidade pública do país sugere igualmente uma rigorosa apuração dos componentes da escalada de dispêndios dos entes subnacionais, que cresceram, entre 2019 e 2024, 26% acima da inflação, contra variação de 5% reais dos gastos bancados pelo Tesouro Nacional.
Mesmo reconhecendo a natureza disfuncional do federalismo brasileiro, marcada pela predominância de agentes subnacionais moedores de dinheiro por excelência, acéfalos ao desencadeamento de empreitadas de responsabilidade fiscal e habituados à utilização do imposto inflacionário como ferramenta de ajuste de caixa – com indexação de receitas, atraso no pagamento nominal aos fornecedores e congelamento ou concessão de reajustes aos servidores inferiores à inflação pretérita -, é irrefutável a constatação de uma autêntica farra com o dinheiro do povo, verificada no último quinquênio.
Essa anomalia exponencial pode ser imputada a dois grupos de fatores bastante difundidos pela interpretação política e econômica da comunidade de experts e formadores de opinião, sem que nada seja realizado visando à minimização ou até a eliminação, em decorrência da resistência do entrelaçamento e intermediação de desejos poderosos, reunidos em articulações e decisões tomadas no âmbito do executivo e legislativo federal.
A primeira força diz respeito a interferência da consistente recuperação cíclica observada pela economia nacional desde 2022, ainda que sustentada no consumo público e privado, que vem catapultando a arrecadação federal e dos estados, sendo parte destinada constitucionalmente aos governos regionais, sintetizada no Fundo de Participação dos Estados e Municípios, equivalendo a frações das somas do IPI e Imposto de Renda (IR), definidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
É importante reter que a priorização do consumo vem em detrimento do investimento. A taxa de investimento brasileira, estimada pelo IBGE em pouco mais de 17% do PIB, em 2024, contra 26% da média internacional, figura em 124º lugar, em um ranking de 143 nações levantadas pelo Banco Mundial, ficando atrás de vizinhos da América do Sul, como Paraguai (20,6%), Argentina (18,6%), Bolívia (17,5%), Colômbia (17,4%) e Uruguai (17,2%).
O segundo elemento engloba distorções compreendidas por negociações políticas alargadoras dos repasses de recursos aos atores políticos e econômicos locais. Dentre elas sobressaem a ajuda financeira no transcorrer da pandemia de Covid-19, as generosas renegociações das dívidas, inclusive de unidades continuamente perdulárias, a ampliação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e dos financiamentos concedidos por instituições públicas e, sobretudo, a multiplicação das emendas parlamentares, desconectadas das políticas de estado e destituídas de transparência.
Não por acidente, a folha de salários reais pagas por municípios e estados aumentou 17,6% e 2,9%, respectivamente, contra declínio de 16% da União, entre 2019 e 2024.
Encerrada a etapa de suspensão de correção imposta pela pandemia de Covid-19, os estados concederam aumentos reais de proventos aos servidores – abarcando revisões gerais e rearranjos de carreiras – da ordem de 14% no biênio 2022-2023, tendo, em doze deles, extrapolado o limite prudencial da Lei de Responsabilidade Fiscal (que determina teto de 95% de 60% da receita corrente líquida, ou 57% da RCL).
No caso da disparada das despesas municipais, parcela da explicação repousa na existência de maior proporção de servidores com remunerações indexadas à evolução do salário mínimo, que foi submetido ao retorno da estratégia de valorização, a partir de 2023.
Há também a influência da fixação de critérios próprios para a atualização da remuneração do magistério (piso nacional de 4.867,77, para 2025), em fase com a anabolização do Fundeb, em consequência de reajuste que suplantou o dobro da inflação medida pelo INPC, entre 2008 e 2025.
Há ainda a influência do despertar do espirito animal de gestores locais na contratação de empregados (estatutários, celetistas, comissionados e temporários), cujo contingente agregado passou de 6,5 milhões, em 2019, para 7,1 milhões, em 2022, de acordo com o Atlas do Estado Brasileiro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Ainda salta aos olhos a deliberação do Congresso Nacional de dissociar as peças subnacionais do novo arcabouço previdenciário, aprovado em 2019 para a esfera federal, que ensejou o aparecimento de discretas abordagens regionais que, em sua maioria, serviram para enfraquecer o esforço fiscal explicitado no paradigma acordado.
Seis estados e 1.356 municípios, que equivalem a dois terços dos portadores de regimes próprios, ainda não buscaram a construção de qualquer regramento adicional capaz de recomendar alguma intenção de implantação de aparato compatível com os fluxos financeiros potenciais e as tendências demográficas mais apertadas.
Tal quadro incitou a Confederação Nacional dos Municípios (CMN) à formulação de reivindicação de preparação legislativa de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) centrada no encaixe das prefeituras nos critérios mais rigorosos, vigentes para a União há quase seis anos.
A despeito de a União responder pela maior fatia de dispêndios previdenciários e destinados à assistência social, observa-se preocupante escalada das despesas de estados e, principalmente, municípios. Enquanto os desembolsos realizados pelo governo federal com previdência subiram pouco mais de 13,2% acima da inflação, entre 2019 e 2024, os dos estados aumentaram 6% e dos municípios 19,3%.
Depois de atingir o pico de 16,1% da receita corrente líquida dos estados, em 2020, em razão dos dispêndios extraordinários associados à proteção social ante os efeitos negativos do surto pandêmico, o déficit previdenciário recuou para 12,6%, em 2021, e retomou marcha ascendente em 2022 (12,9%) e 2023 (13,9%), impulsionado pelos desníveis amargados por São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, justamente as unidades detentoras dos maiores passivos junto ao governo federal.
Partindo do pressuposto do enterro de qualquer propósito de equilíbrio fiscal, com a benevolência da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), com a carga explosiva de gastos obrigatórios, para 2026, e da persistente presença de importantes figuras estaduais, como potenciais postulantes aos pleitos majoritários do ano que vem, incluindo a cadeira de presidente da república, parece lícito admitir as reduzidas chances de virada do jogo da gastança.
Isso porque, perpetua-se o ambiente colaborativo de negligenciamento da ponderada gestão das finanças, nas diferentes escalas de poder e governo, desprovido de menções conciliatórias, em linha com os parâmetros da ética e dos verdadeiros interesses nacionais.
Em se retirando a maquiagem dos precatórios, que ainda ficarão de fora do cálculo da meta fiscal, em 2026, a vultosa conta será desnudada e despejada sobre a mesa dos administradores, apenas em 2027, que, reféns das estratosféricas demandas de custeio e acéfalos de recursos para a feitura dos investimentos em obras e/ou o cumprimento das promessas de campanha, poderão, mais uma vez, imputar a culpa aos antecessores.
Caberá aos responsáveis pela comunicação oficial a inevitável tarefa de explicitação pormenorizada da herança maldita e do imperativo de menção dos novos sacrifícios a serem exigidos do tecido social, em nome da restauração da funcionalidade da máquina pública e obtenção de ganhos de produtividade da microeconomia mais adiante.
Nessas circunstâncias, diretores e atores podem até ser trocados. Porém, o roteiro do espetáculo permanecerá sendo rigorosamente o mesmo, sem a mais singela adequação virtuosa capaz de retirar a exausta plateia da síndrome contemplativa das renovadas “guinadas de 360 graus”.
Como de rotina, as inclinações mudancistas virão respaldadas por velhos discursos de “bom mocismo”, inescapavelmente centrados na proposição de embates das bolhas da polarização política, em uma nação do “vale tudo”, dependente de nomes e carente de ideias.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia