O discutível ensaio de retomada da economia brasileira
As estatísticas correntes relativas ao mês de maio de 2020, apuradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Confederação Nacional da Indústria (CNI), reforçadas por alguns indicadores antecedentes, sugerem que a economia nacional teria atingido o fundo do poço em abril de 2020.
Aquele mês teria sido alvo do ápice do período de restrições à aglomeração de pessoas e isolamento social, impostas para a contenção da evolução da Covid-19 no país e o retardo do colapso do sistema de saúde, que provocaram uma instantânea e quase completa parada das cadeias de produção e distribuição.
De fato, há percepção generalizada de discreta melhora dos sinais vitais e recobrada de fôlego do organismo de transações, em resposta ao conjunto de providências mitigadoras dos estragos nos níveis de produção, vendas e prestação de serviços, ainda que insuficientes diante da dimensão da catástrofe, ainda não equacionada.
Houve igualmente a influência do abrandamento e suspensão das quarentenas, de maneira espacialmente heterogênea, em razão do comportamento diferenciado do avanço da doença, das flagrantes disparidades regionais das matrizes econômica e social e da retaguarda sanitária, e das não poucas cessões dos agentes políticos subnacionais às pressões corporativas subjacentes ao evento das eleições municipais.
Nessa perspectiva, nota-se rápida formação e propagação de uma onda de otimismo, conduzida por experts do mercado, coadjuvados por apreciações prematuras e/ou benevolentes de determinados formadores de opinião, sentenciando a saída do paciente Brasil da UTI, breve preparação da dispensa hospitalar e “vida que segue”.
Tal avaliação endossaria os prognósticos de reativação em formato V, amparada na aposta de que a nação seria atingida por uma única onda do Novo Coronavírus, como profetizou, em abril de 2020, o titular da Pasta da Economia, Paulo Guedes, quando bombardeado por observações críticas a respeito da inação do governo.
Não por acidente, a postura triunfalista revela analogia com a “marola”, anunciada pelo ex-presidente Lula, no final de 2008, ao se reportar à penetração do tsunami financeiro global em terras brasileiras. Só para contrariar o mandatário, a produção industrial do país caiu -7,4%, em 2009.
Ainda conforme essa visão, se confirmado o cenário menos sombrio, a depressão do produto interno bruto (PIB) nacional, em 2020, poderá ser menor do que as previsões formuladas por Banco Central, -6,4%, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), -7,4%, Banco Mundial, -8,1%, e Fundo Monetário Internacional (FMI), -9,1%.
Trata-se de diagnósticos e prospecções apressadas, baseadas em informações de natureza quantitativa e qualitativa, esparsas e não convencionais, que expressariam números animadores para o mês de junho. São elas: comercialização de varejo, identificada por empresas credenciadoras de cartões, arrecadação via notas fiscais eletrônicas, consumo de energia, feeling de gerentes de compras, e expansão da circulação populacional. Só faltou incluir a substancial elevação do volume de tráfego de ônibus clandestinos.
Alguns até justificam a suposta pertinência do uso quase cego de dados não tradicionais, aos eventuais prejuízos que a pandemia teria ocasionado à realização de pesquisas mais robustas, sob a responsabilidade do IBGE, e ao subsequente tratamento, sistematização e confecção dos indicadores. Por vias tortas, de maneira velada, levantam a hipótese de comprometimento da fidedignidade das investigações oficiais e fragilidade dos ajustes científicos empreendidos para a não descontinuidade.
Ao que parece, o ambiente social brasileiro ainda oportuniza tentativas de extravasamento do pensamento de atores dotados de poder de mercado e integrantes conservadores das hostes governamentais, apoiado em atitudes voltadas ao menosprezo de esforços científicos, notadamente quando estes colidem com impressões e vontades das elites.
Decerto que uma peneirada do curso recente da economia propicia reconhecer o notório acréscimo de 7% da produção industrial em maio de 2020, em cotejo com abril, o maior desde junho de 2018 (12,9%), que sucedeu a interrupção do transporte rodoviário de cargas, provocado pela greve dos caminhoneiros, verificada no final de maio daquele exercício.
Porém, a potência de maio esteve bastante aquém do que seria requerido à recuperação da perda acumulada de -26,3%, nos poucos mais de quarenta dias de março e abril, desde a decretação das medidas limitadoras por parte das diversas autoridades. Só a categoria de bens duráveis de consumo sofreu retração de -84,2%, no intervalo que coincide com a maior proporção de confinamentos.
É importante assinalar que, por outras referências comparativas, os números são mais desfavoráveis, denotando contração de -5,4% em doze meses, a maior desde dezembro de 2016, quando aconteceu encolhimento de -6,4%, ocasião em que a nação encerrava a mais intensa e longa etapa recessiva da história republicana.
Depois de indicar brando revigoramento em 2017 e 2018, sob a batuta de uma estratégica ortodoxa adotada na gestão de Michel Temer, o segmento fabril voltou a regredir a partir de janeiro de 2019, por absoluta ausência de orientação oficial quanto a programas e incentivos dirigidos à impulsão dos investimentos em modernização, aumento da capacidade e inovação, capazes de enterrar a dependência privada de benesses públicas centradas em protecionismo, desonerações e preferências por amigos do rei.
Em sentido semelhante, parte do grupo de variáveis acompanhado pela CNI respirou sem ajuda de equipamentos, em maio. Mais precisamente, faturamento real e horas trabalhadas subiram 11,4% e 6,6%, respectivamente, frente a abril, quando experimentaram os mais sofríveis desempenhos da série histórica. Mesmo assim, os dois parâmetros situaram-se -18,2 e -15,8% abaixo daqueles contabilizados em fevereiro, no pré-pandemia.
A utilização da capacidade instalada também aumentou de 67% para 69,6%, entre abril e maio, contra 78,1%, em maio de 2019, mas continua inferior a 70%, algo que jamais fora captado na sondagem mensal da CNI, em tempos anteriores a março de 2020, quando a desgraça começou por aqui.
Enquanto isso, o emprego, a massa salarial real e o rendimento médio real dos trabalhadores permaneceram em rota cadente, amargando redução de -0,8%, -8,1% e -6,5%, respectivamente, evidenciando a reprodução ampliada da Sars-CoV-2 na dinâmica de ocupações.
Já o volume de vendas do comércio varejista, mensurado pelo IBGE, cresceu 19,6% em maio, em confronto com abril, representando a maior variação mensal desde o início da pesquisa, em janeiro de 2010. No entanto, o embalo está longe de restaurar os prejuízos de março e abril, com recuos de -14% e -17,5%, respectivamente. Ademais, ocorreu retração de -14,9%, frente a maio de 2019, e de -8,6%, no acumulado do ano.
Como se vê, a proliferação planejada ou involuntária de lampejos de esperança expõe diminuta aderência ao mundo real, ao esbarrar no perigo de alargamento da abrangência da doença no 2º semestre do ano e, em consequência, a necessidade de reaplicação e aprofundamento das ações de represamento da mobilidade das pessoas e bloqueio das atividades econômicas não essenciais, motivadas essencialmente pela ausência de ampla coordenação nacional de combate à pandemia e a verdadeira devoção do chefe de estado na rejeição do elenco de cuidados com a doença.
Tanto que, o centro de análise de doenças infecciosas do Imperial Imperial College London, um dos principais do planeta em acompanhamento de epidemias, constatou aumento da velocidade de transmissão do vírus no Brasil, entre a 1ª e 2ª semanas de junho, e, o que é mais preocupante, a manutenção da situação de descontrole da curva evolutiva da doença, em praticamente um trimestre inteiro.
A instituição inferiu que a taxa de contágio – quantas pessoas em média são infectadas por cada portador do vírus – no país passou de 1,03 para 1,11, em uma semana, o que significa que cada 100 pessoas contaminadas disseminam o patógeno para 111, em vez de 103, como na semana antecedente.
Sem contar a conjugação perversa entre a incapacidade de o prolongamento do auxílio emergencial vir a recompor, de forma plena, a renda líquida disponível das famílias, e, por extensão, catapultar o consumo privado, e a crescente eliminação de firmas derivada da escassez de apoio creditício oficial destinado à sobrevivência durante o estágio mais agudo da tempestade sanitária.
A propósito disso, segundo o Ministério da Economia, foram desembolsados apenas 17,7% dos recursos disponibilizados para suporte às empresas, entre abril e junho de 2020. No caso das micro e pequenas, houve liberação de apenas 7,5% dos haveres alocados que, por sinal, representaram 23,2% do montante anunciado para a totalidade das organizações.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, foi diretor presidente do IPARDES entre 2011 e 2014.