Economia brasileira em 2023: espiadinha analítica
Gilmar Mendes Lourenço.
Se forem consideradas as circunstâncias de elevada temperatura e pressão apresentadas pela órbita política brasileira, parece razoável admitir a enorme capacidade de resposta dos agentes econômicos ao encaminhamento dos aprimoramentos institucionais, constatado ao longo do primeiro semestre de 2023, suficiente para neutralizar a continuidade da montagem e farta distribuição de cenários catastróficos pelos meios especializados.
A despeito do imbróglio subjacente ao projeto golpista, manifestado em 8 de janeiro de 2023, e seus desdobramentos paralisantes por mais de um mês, e da maioria retrátil conquistada pelo Executivo Federal no Congresso Nacional, a aprovação da nova regra fiscal e da proposta de simplificação tributária foi essencial à reversão dos prognósticos de perigo de insolvência do estado.
Como os elementos de insegurança não haviam sido plenamente abrandados pela PEC da transição, acordada pelo futuro governo com o parlamento, em fins de 2022, houve necessidade de arrojo no diálogo entre o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e lideranças legislativas, voltado à viabilização de recuperação de perdas e obtenção de ganhos no front fiscal.
Indiscutivelmente, esse elenco de aprimoramentos assegurou a melhora do rating da dívida soberana nacional, pela agência internacional Fitch, ficando a dois degraus do sonhado retorno ao grau de investimento, que, ao que tudo indica, deverá ser restaurado no começo de 2024, pelas mais qualificadas empresas de classificação.
O novo staff também vem se dedicando à produção de alguns elementos compensatórios aos inevitáveis reflexos da desaceleração econômica e resistência inflacionária global, motivadas pela sintonia fina entre embaraços econômicos e geopolíticos, especialmente a disputa hegemônica entre China e Estados Unidos (EUA), agravada pelo conflito bélico na Europa, travado em território ucraniano.
Sem contar o mais recente fator de abalo, consubstanciado nas inquietações dos mercados com as indicações de maior probabilidade de estouro da bomba imobiliária e incorporadora chinesa, ultraprotegida pelo estado autocrático desde os anos 2000, sintomatizada pela suspensão de pagamentos internacionais por três grandes comercializadoras de produtos financeiros atuantes no gigante asiático.
Por essa perspectiva, aconteceu o resgate das iniciativas de inclusão social, com a refundação revisada e ampliada do programa Bolsa Família, o retorno da política de valorização do salário mínimo, a recriação do Minha Casa Minha Vida, o regresso da vinculação orçamentária das receitas destinadas à saúde e educação, a implantação do Desenrola e a organização do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado em 11 de agosto de 2023.
Convém assinalar que tanto a disseminação das ações voltadas ao adensamento da proteção social, providas por haveres orçamentários, quanto os múltiplos desvios de verbas públicas subjacentes aos empreendimentos abrigados por planos de grande porte aparecem no mapa genético dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), entre 2003 e 2016.
Outra contribuição decisiva ao delineamento de um ciclo conjuntural virtuoso repousa no consistente declínio da inflação, por conta da conjugação entre persistência de juros elevados, que sufocam a demanda e a cadeia de negócios, e dos recuos nos preços de alimentos e combustíveis.
A diminuição nos preços de alimentos e combustíveis pode ser explicada pelo clima propício à obtenção de recordes na colheita de grãos e maior previsibilidade dos critérios de precificação dos derivados de petróleo, neutralizando as intervenções eleitoreiras prevalecentes em 2022.
Tanto que a defasagem de 20% em relação às cotações internacionais forçou o a correção dos valores na porta das refinarias pela estatal de petróleo, veiculada em 14 de agosto.
Assim, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, caiu, na aferição em doze meses de 10,07% para 3,99%, entre julho de 2022 e julho de 2023, contra meta entre 3,25% e 4,75%, fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), para o ano fechado.
Mais do que isso, não há qualquer indício de descontrole da espiral de preços, mesmo com a inevitável barriga a ser conformada entre julho e setembro, decorrente do efeito base de cotejo deprimida, vinculada aos ditames do desejo e empreendimento da reeleição, em 2022, o que pode ensejar a acentuação do processo de diminuição dos juros, iniciado na reunião de agosto do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC).
Por tudo isso, os indicadores econômicos esboçam marcha ascendente. Com relação ao setor industrial, apesar do declínio do faturamento real (-0,2%) e utilização da capacidade instalada (-0,3%), entre janeiro e junho de 2023, de acordo com pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o número de empregados, horas trabalhadas, massa salarial real e rendimento médio real cresceram 0,8%,0,8%, 4,3% e 3,5%, respectivamente, no mesmo período.
A produção setorial, verificada por pesquisa do IBGE, encolheu -0,3%, no semestre, em consequência do desempenho negativo da base do sistema, formada por bens de capital (-9,7%) e intermediários (-,5%), reproduzindo a prevalência crônica dos não poucos entraves ao investimento produtivo.
Enquanto isso, a ponta, comportada por bens de consumo duráveis e não duráveis e semiduráveis registrou expansão de 5,7% e 1,8%, respectivamente, resultado predominantemente da recuperação da renda das famílias, ainda em clima de pronunciadas restrições financeiras provocadas pela cobrança de juros exorbitantes, ligada à nefasta coincidência entre conservadorismo do BC e oligopolização do sistema bancário.
Apenas a título de ilustração a respeito do revigoramento do mercado de trabalho, ainda que com informalidade persistente, próxima de 40% da população ocupada, o desemprego alcançou 8% da força de trabalho, no segundo trimestre de 2023, representando o menor patamar desde 2014 (6,9%), ápice do controle populista da inflação, sob a batuta da presidente Dilma Rousseff.
Já o rendimento médio real do trabalhador cresceu 6,2%, em comparação com abril-junho de 2022, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE.
Levantamento da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNL) e Serviço do Proteção ao Crédito (SPC), relativo a julho de 2023, aponta redução da inadimplência das famílias por dois meses seguidos, declinando de 67,2 milhões de pessoas, em maio, para 66,1 milhões em junho. Ainda assim, quatro em cada dez brasileiros estavam com contas em atraso em julho.
Apesar de aferir leve recuo no total de famílias endividadas, em agosto de 2023, ficando em 78,1%, o menor nível desde janeiro (78%), investigação da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) observou subida das assinalações de contas em atraso (29,6%), superior a dois meses, e daqueles consumidores sem condições de realização dos pagamentos (12,2%), recorde da série histórica iniciada em 2010.
De seu turno, o volume de vendas do comércio varejista, apurado pelo IBGE, variou 4%, no intervalo em tela, puxado por alimentos (17,6%), influenciado pela diminuição de preços com a supersafra, combustíveis (14,5%), igualmente atrelado à redução dos valores nas bombas, supermercados (11,4%), afetado positivamente pela recuperação da renda, e veículos, motos e peças (9,6%), decorrente dos vultosos subsídios concedidos à desova de estoques excessivos de montadoras e revendedores.
Em embalo semelhante, o volume dos serviços ascendeu 4,7%, nos primeiros seis meses do ano, impulsionado por aqueles prestados às famílias (5,8%, notadamente os de alojamento, com acréscimo de 11,2%), tecnologia da informação (9,6%), aluguéis não imobiliários (22%) e transporte de cargas (11,5%), conforme pesquisa do IBGE.
Essa performance traduz o sucesso no controle da pandemia de Covid-19, oportunizado pela supressão das restrições à mobilidade das pessoas, com o avanço da vacinação, e as condições bastante objetivas à revitalização dos níveis de atividade.
Por fim, o índice de atividade econômica do Banco Central (IBC-Br), prévia do produto interno bruto (PIB), de junho de 2023, observou comportamento superior as expectativas, em qualquer referência comparativa, com ênfase para o incremento de 3,42%, no semestre, e 3,35%, em um ano.
Não por acidente, o indicador de incerteza econômica, medido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), registrou 103 pontos (varia entre zero e duzentos), em julho de 2023, a menor dimensão desde abril de 2016, quando assinalou 128 pontos, em meio ao delineamento da instauração do impeachment contra a presidente da república.
Em idêntica direção, a aprovação popular ao governo Lula chegou a 60%, em agosto de 2023, sendo o maior patamar desde janeiro, segundo pesquisa da Genial/Quaest, realizada entre os dias 10 e 14, junto a 2.029 pessoas com mais de 16 anos. No cômputo geral, constatou-se avaliação positiva da gestão por 42% dos entrevistados e negativa por 24%.
Depois dessa rápida incursão estatística e interpretativa, que oferece a percepção de dissipação das nuvens carregadas da conjuntura, não se deve perder de vista à premência de construção de consensos direcionados à derrubada dos obstáculos estruturais ao crescimento sustentado, integrado por contínua perseguição da descarbonização e inclusão e mobilidade social.
Até porque, relatório preparado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a partir de simulações com informações relativas aos países membros, além de Argentina, Índia, China, África do Sul e Brasil, revela que o cidadão brasileiro pobre levaria nove gerações para atingir o status de categoria média, na pirâmide social, contra 4,5 gerações na média dos integrantes da instituição, posicionando-se, em uma lista de 30 nações, a frente apenas da Colômbia (11 gerações).
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.