Brasil: nação envelhecida, renda média e desigual
Gilmar Mendes Lourenço.
Recentemente tive o privilégio de cumprir um percurso de férias pelo norte da Itália, no sentido de pequenas cidades quase fronteiriças com França e Áustria, acompanhando parte da família, em busca da observação e conferência empírica de informações disponíveis e arregimentação de novos dados a respeito da nossa ancestralidade.
Além de conhecer lugares encantadores e pessoas maravilhosas, não pude deixar de comprovar traços e peculiaridades bastante marcantes da dinâmica demográfica do Velho Mundo, reproduzidas em sociedades com populações menores e mais envelhecidas.
A expansão do contingente de idosos, ou de pessoas com idade superior a 60 anos, em maior velocidade do que o total da população, constitui fenômeno típico da trajetória daquelas nações avançadas que lograram êxito na conquista de padrões satisfatórios de progresso econômico, com encaixe pleno nas revoluções tecnológicas, e diminuição da heterogeneidade do tecido social.
Para tanto, os países centrais perseguiram a construção das bases requeridas à obtenção de expressivos ganhos de produtividade, em tempos de crescimento mais rápido da população jovem, ou em idade ativa, definido tecnicamente como janela demográfica.
Na verdade, ao tirarem proveito do bônus proporcionado pela natureza preponderante do volume da força de trabalho no conjunto de habitantes e da condição de permanente valorização das relações de troca com as economias primário-exportadoras, as nações ricas viabilizaram a montagem e consolidação de abrangentes retaguardas de proteção social, incorporando os campos da educação, saúde, previdência e seguridade.
Com isso, habilitaram-se a acomodar o inexorável aparecimento e perpetuação de estágios de ampliação da participação dos idosos na tábua populacional, resultantes da queda das taxas de fecundidade – fruto da combinação entre alargamento da presença feminina no mercado de ocupações e proliferação de escolhas de drástica diminuição do tamanho médio das famílias, facilitada pelo maior emprego de múltiplos métodos contraceptivos – e aumento da expectativa de vida, ensejado principalmente por avanços tecnológicos em diferentes áreas, comandadas pela saúde.
Mesmo assim, não poucas iniciativas governamentais de execução de apreciáveis ajustes nos regimes financeiros de cobertura do Welfare State, abarcando a supressão de direitos, tem provocado movimentos de contestações em vários estados democráticos e subsequentes abrandamentos e/ou reversões das incursões mais ortodoxas.
No caso brasileiro, o Censo Demográfico 2022, bravamente elaborado pelo IBGE, a despeito das inúmeras injuções de caráter político, também confirmou a hipótese básica de ocorrência de rápido envelhecimento da população e conformou um retrato de iminência de fechamento da janela demográfica.
A entidade nacional de estatística estimou que a fecundidade das mulheres estaria em 1,7 filho, inferior à dimensão calculada como taxa de reposição, e o intervalo populacional entre 0 e 14 anos perfaz 40,1 milhões de crianças e pré-adolescentes (19,8% do total), versus 45,9 milhões (24,1%), em 2010, o que significa declínio de 12,6%.
Em paralelo, os brasileiros com mais de 65 anos totalizam 22,2 milhões de pessoas (4,6 milhões com mais de 80 anos), o que corresponde a 10,9% da população, contra 14,1 milhões (7,4%), em 2010, ou variação de 57,4% em doze anos, sendo que a maioria depende do benefício do salário mínimo, assegurado pela previdência social.
De acordo com o IBGE, o índice de envelhecimento, que expressa a razão entre o número de idosos de 65 anos ou mais e a população entre 0 e 14 anos, saltou de 30,7, em 2010, para 55,2, em 2022, denotando 55,2 idosos para cada 100 crianças de 0 a 14 anos.
Em um exame retrospectivo mais alongado, englobando o período 1970-2002, pode-se inferir que, enquanto a população total cresceu 2,2 vezes, passando de 90 milhões para 203,1 milhões, a quantidade daqueles com 65 anos ou mais aumentou 7,5 vezes, saltando de 2,95 milhões para os 22,2 milhões.
O problema é que, em absoluto contraste com a posição assumida historicamente pelos espaços geográficos desenvolvidos, por aqui, em consequência de incontáveis escolhas erradas, foram desperdiçadas sucessivas oportunidades oferecidas pela marcha demográfica virtuosa para a formulação e encaminhamento de instrumentação de intervenções corretivas de apreciáveis distorções nas áreas de saúde e educação.
Parece razoável admitir que em apenas uma frase seja possível expressar o tamanho do estrago: o Brasil envelheceu sem tornar-se rico, continuou carregando o incômodo rótulo de país de renda média, e, o que é pior, portador da maior desigualdade social entre as nações emergentes.
O complicador adicional é que a diminuição da proporção de trabalhadores ativos em relação total de idosos, em um sistema econômico estagnado por mais de quatro décadas e com mais de 40% de informalidade, multiplica as dificuldades de organização da retomada de ciclos expansivos apoiados na maximização da produtividade.
Não bastasse a ausência de programas consistentes e de envergadura, dirigidos ao tratamento da complexa questão da dominância de idosos no desenho etário, abundam conceitos, abordagens e discussões retrógradas que designam a categoria com fardos a serem suportados pelo restante da sociedade ou largados ao acaso.
Apurações feitas pelo Centro Internacional da Longevidade, mencionadas no Editorial do Jornal “O Estado de S. Paulo”, de 29.10.2023, revelam que somente 3 das 37 agremiações partidárias brasileiras fazem alguma referência aos idosos em suas pautas programáticas.
O precário financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que dificulta aquilo que se qualifica como “envelhecimento funcional”, configura apenas a ponta do Iceberg assentado no descaso com a infância e medicina da prevenção, em uma autêntica rendição ao poder mercado do oligopólio encarregado da fabricação e comercialização de medicamentos.
A alteração desse quadro caótico exigiria esforços multidisciplinares, dedicados ao deslocamento do foco das demandas urgentes e/ou específicas para o acompanhamento amplo de patologias crônicas e degenerativas, o que produziria idosos menos suscetíveis à disputa por atendimento em insuficientes e, na maioria das vezes, atrasadas, redes hospitalares, e escassos profissionais de cardiologia, neurologia, geriatria e oncologia.
Igualmente nociva é o desinteresse na adoção de estratégias de requalificação e reinserção das pessoas com mais de 60 anos no mercado formal, o que, por extensão, ajudaria a amenizar o buraco previdenciário e atenderia aos objetivos de combate à discriminação das pessoas mais velhas.
Em não sendo isso feito, em circunstâncias de retardo na preparação e implantação de políticas públicas direcionadas ao tratamento das complexas questões derivadas do envelhecimento populacional, a preservação da dignidade da longevidade permanecerá restrita ao atendimento preferencial em filas de bancos e aeroportos e ao pagamento de meia entrada em eventos culturais.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.
Infelizmente perdemos o boom demográfico e agora é só ladeira abaixo.