Real 30 anos: estabilização monetária e carência de crescimento

Gilmar Mendes Lourenço.
A celebração do aniversário de trinta anos do real, comemorado em 1º de julho de 2024, deve reforçar a ideia de que o programa de ajustamento foi suficientemente transparente, amplo, criterioso, eficaz e eficiente para o alcance do ambicioso objetivo de debelar o crônico descontrole inflacionário.
Tratou-se de um processo audacioso de extermínio e sepultamento das sucessivas experiências fracassadas durante o decênio de 1980, com repentinos anúncios oficiais de congelamentos de preços e quebras de regras, e no princípio dos anos 1990, com o desastre da deliberação de retenção de mais de 80% dos saldos dos recursos depositados em cadernetas de poupança e refugiados em modalidades aplicações financeiras dotadas de rentabilidade diária.
Antes de mais nada, é interessante apreender que com os tropeços e consagrações contabilizadas a partir da redemocratização conservadora da nação, celebrada com a vitória de Tancredo Neves (MDB), ainda no colégio eleitoral, em 1985, o Brasil se preparava para a obtenção de razoável domínio das variáveis de estabilização econômica.
O restabelecimento da democracia foi reforçado pelo presidencialismo de coalização, implícito na Constituição de 1988, acompanhado do contrato social, e vitaminado com o plano real, organizado em 1993 e 1994, pela equipe do presidente Itamar Franco e de seu ministro da Fazenda, o ex-senador e ex-chanceler, e mais adiante chefe do executivo, Fernando Henrique Cardoso (FHC).
A transição do quadro de desordem na precificação – o índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA), do IBGE, alcançou 4.922,5%, em doze meses encerrados em junho de 1994 – para a conformação da marcha decrescente de inflação (700%, acumulados entre julho de 1994 e fevereiro de 2024) foi conquistada de maneira transparente e negociada, obedecendo a um desdobramento em três fases, sem os sustos ou traumas ocasionados por vários tipos de intervenções e/ou arbitrariedades.
As etapas consistiram em:
- ajuste fiscal provisório, por meio do lançamento do Programa de Ação Imediata (PAI), em julho de 1993, aprofundado, em 1994, pelo Fundo Social de Emergência (FSE), que desvinculava 20% da arrecadação federal, e o imposto provisório sobre movimentações financeiras (IPMF), embrião da CPMF;
- Unidade Real de Valor (URV), criada em 1º de março de 1994, como mecanismo de referência de conta que, ao conviver pacificamente com a encorpada depreciação diária do cruzeiro real, “matou a inflação com o próprio veneno; e
- transformação da URV em nova moeda, o real, em 1º de julho de 1994, em face da plena adesão social.
Parece oportuno compreender que, ainda que a duras penas, a consolidação da desinflação, constitui ativo de primeira grandeza, absorvido pela sociedade brasileira e valorizado por quase todos inquilinos do Palácio do Planalto, desde o final da primeira parte da década de 1990.
Ao vencer a hiperinflação e resgatar as funções clássicas da moeda (unidade de conta, reserva de valor e meio de pagamento), o real propiciou a atenuação da indexação automática na atualização de preços, contratos e salários, a recuperação do poder aquisitivo das famílias, preponderante das mais pobres, e o atendimento da demanda reprimida, por anos.
Também ensejou a ampliação da concorrência intercapitalista e o alargamento do horizonte temporal de previsibilidade no cálculo econômico, ao facilitar as decisões de consumo, balizadas em orçamentos domésticos despoluídos, e desanuviar as escolhas estratégicas das empresas, principalmente quando à efetivação de investimentos em modernização e ampliação da capacidade produtiva.
A impressão que se tem é que, a não ser em caso de deslizes cometidos ou tombos sofridos por alguns desavisados, ignorantes históricos ou autocratas vocacionados, alçados ao patamar de autoridades dos poderes executivo e legislativo, os agentes políticos brasileiros aprenderam a manejar as ferramentas da estabilidade macroeconômica.
Os marcadores da estabilização podem ser resumidos no indiscutível controle das tensões inflacionárias, fabricadas por choques de oferta ou demanda, usualmente associados à fatores exógenos, à fragilidade fiscal e financeira do setor público, às flutuações da taxa de câmbio e à calibragem das taxas de juros básicas.
Decerto que a determinação de operação sincronizada dos elementos integrantes do arranjo da estabilização (sistema de metas de inflação, compromissos de responsabilidade fiscal e livre variação cambial), instituído em janeiro de 1999, contribui de forma pouco questionável ao êxito prático daquela modelagem.
No entanto, a manutenção do equilíbrio da estrutura de preços relativos durante a caminhada de quase quatro décadas de depuração e renovação democrática dependeu do aproveitamento de empuxos e antecipação e/ou rechace de perversidades.
Dentre as fortalezas emerge a maturação das modificações institucionais (abertura comercial, desregulamentação, desestatização, eliminação da hiperinflação e lei de responsabilidade fiscal e as iniciativas de proteção social), plantadas no decênio de 1990, e o boom das commodities, oportunizado pela escalada chinesa, na década de 2000.
Do lado negativo surge a crise dos emergentes, entre 1994 e 1998; a turbulência financeira global, nascida com a quebra do subprime, ou o segmento hipotecário de segunda linha dos Estados Unidos (EUA), em 2008; e o retorno de expedientes de controle da inflação com medidas de represamento dos reajustes dos preços administrados, no começo dos anos 2010.
Frise-se que a anomalia do controle das tarifas de energia e combustíveis, do câmbio e dos juros, somada à onda de movimentos de protestos que ganharam as ruas, em 2013, à multiplicação da identificação de casos de corrupção pela operação lava jato, à perda de apoio político do governo no parlamento e ao emprego de maquiagens contábeis nas finanças públicas, conduziu ao impeachment e cassação da presidente da república e o mergulho do país na maior recessão da história, entre 2015 e 2016.
O esforço de aplicação de curativos naquelas fraturas, com a implementação de alguns aprimoramentos pontuais, pelo grupo do sucessor tampão, foi interrompido com a ascensão ao poder de um antigo deputado federal pertencente ao baixo clero, em 2019, facilitada pela prisão do ex-mandatário do período compreendido entre 2003 e 2010, apontado como favorito pelas sondagens de intenções de voto, efetuadas pelos principias institutos de pesquisa, em 2018.
Sob nova administração, a sociedade brasileira foi alvejada por demagogia liberal desqualificada na economia e vitimada por negacionismo em praticamente todas as áreas-chave, otimizado pela abdicação oficial em admitir a complexidade e gravidade da crise sanitária e coordenar o árduo trabalho de enfrentamento e superação do patógeno.
O regresso do ocupante da gerencia do estado, nos anos 2000, em 2023, aconteceu em clima de acirrada calcificação da polarização política, entre esquerda e direita, gestada entre 2013 e 2018, e magnificada pela proliferação de desinformações produzidas por milícias digitais.
Por absurdo, a nação não deve se livrar dessa mazela tão cedo, em face da ausência de formação de lideranças portadoras de propostas críveis, acomodadas no chamado centro democrático, verdadeira hospedaria de posturas personalistas e incontidas vaidades.
Não obstante, suplantada a instabilidade produzida pela intentona golpista de 8 de janeiro e as incertezas quanto aos rumos do novo governo, o Brasil confirmou, em 2023, a hipótese básica de aprendizado do manuseio dos elementos de equilíbrio econômico, em curto prazo, ainda que instável, conceito apropriado da física pelos economistas.
Isso porque, contrariando os prognósticos pessimistas elaborados pelos meios especializados, observou-se o prosseguimento da retomada dos níveis de atividade, emprego e rendimentos, sustentado nas exportações do agronegócio, por conta da reversão da situação caótica da economia global, a despeito do aprofundamento das amarras geopolíticas, com a eclosão de guerras novas e velhas, especialmente com a consistente, ainda que insuficiente, queda da inflação.
O cenário benigno também pode ser explicado pela impulsão do consumo das famílias, em função da combinação entre a rearrumação dos programas oficiais de transferência de renda, o retorno da política de valorização do salário mínimo, o declínio da inflação e dos juros e a melhora das expectativas dos agentes, por conta da tramitação e aprovação legislativa do marco fiscal e da reforma tributária.
As articulações e entendimentos favoráveis entre governo e Congresso Nacional derivaram da surpreendente habilidade de comunicação e diálogo político revelada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, remetendo a lembrança da postura de FHC, por ocasião das negociações para a introdução dos degraus do plano real, em 1993/1994.
Portanto, é fácil perceber que, na presença de intenções políticas sensatas e direcionadas ao menos à restauração gradativa da funcionalidade da macro e microeconomia, o arcabouço ofertado em 1993 e 1994, reforçado nas três décadas subsequentes, oportuniza a rápida reversão de ambientes indesejáveis e o deslocamento para rotas virtuosas ou menos congestionadas.
Em outras palavras, a despeito do incessante “fogo amigo”, ateado por vorazes gastadores do executivo e do legislativo, a eloquente sinalização do governo de compromisso de recomposição do equilíbrio intertemporal das contas públicas, ainda que em médio prazo, pode garantir um percurso quase livre de obstáculos, em curto termo ou, no presente, precisamente ao consumo privado.
O problema maior repousa na falta ou insuficiente priorização das forças propulsoras do futuro, ou dos elementos orientadores do desenvolvimento de longo prazo, assentados na concatenação entre investimento e produtividade, crucial em um contexto de acentuado declínio da proporção da população economicamente ativa na pirâmide etária ou de iminência de fechamento da janela demográfica, em tempos de aceleração da quarta revolução industrial, centrada em robótica, digitalização e inteligência artificial.
Essa lacuna revela-se mais gritante em um país que figurou, em 2022, na 89ª posição na classificação internacional em índice de desenvolvimento humano (IDH), mensurado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), duas abaixo do levantamento anterior e inferior ao status antecedente à pandemia de Covid-19.
Considerando que, conforme demonstrado pelo exame desagregado do indicador (renda per capita, esperança de vida ao nascer e escolaridade), a perda de embalo vem sendo ensejada pela “qualidade” da educação, soa no mínimo curiosa a ascensão ao posto de presidente da Comissão de Educação da Câmara de um parlamentar despreparado e ocupado exclusivamente em incitar o extremismo ideológico nas mídias sociais.
Em idêntico sentido, o Brasil frequenta o primeiro pelotão do mundo em desigualdade social, convivendo com o regresso da ampliação da concentração de renda desde o começo de 2015 e contabilizando quase ¼ dos domicílios sem renda proveniente do trabalho, segundo o IBGE
Estatísticas divulgadas pelo Laboratório das Desigualdades Mundiais, da ONU, mostram que o Brasil é o segundo país mais desigual entre os membros do G20, melhor apenas que a África do Sul, e que os 10% mais ricos da população se apropriam de mais da metade da renda nacional.
Mais do que isso, conforme estudo do Banco Suíço UBS, o Brasil ocupa o 1º posto no ranking global de concentração de patrimônio, com quase metade da riqueza do país, ou 48,4%, ficando com somente 1% da população, contra 41%, na Índia, 34,3%, nos Estados Unidos, 31,1%, na China, e 30%, na Alemanha, que integram a parte de cima da lista.
Em resumo, há quase quarenta anos a democracia brasileira carece da preparação e debate coletivo de um projeto de nação, imprescindível à designação dos ganhadores e perdedores diretos de um ciclo duradouro de crescimento econômico com inclusão social, e respectivo padrão de financiamento, cada vez menos dependente de eventos espasmódicos categorizados pejorativamente como “voo de galinha” ou “armadilha da renda média”, pela literatura internacional.
Para tanto, urge incorporar, à mesa de discussões de natureza essencialmente propositivas, os desafios dos componentes subjacentes a processos de longo alcance, notadamente a intensificação da nova geração de transformações institucionais, imprescindíveis à constituição de retaguarda de recursos financeiros à alavancagem de investimentos em educação e capacitação de mão de obra, ciência e tecnologia, infraestrutura, transição energética e atividades de baixo carbono.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.