Controle da inflação e insuficiência de investimentos no Brasil

Apesar de registrar variação inferior ao esperado pelos meios especializados, a inflação brasileira, referente ao mês de setembro de 2024, provocou rebuliços e precipitações nas análises econômicas, presas às premissas de estouro do limite superior de 4,5%, da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), para o exercício corrente, tendo como centro 3%.
Por essa ordem de raciocínio, proliferaram diagnósticos de superaquecimento da economia, denotados pela contínua expansão do produto interno bruto (PIB) e declínio da taxa de desemprego, que se aproxima do piso histórico, derivado da subida da demanda, associada à frouxidão fiscal da orientação macroeconômica de Lula 3 (ou quase 3½), o que justificaria o aprofundamento da austeridade monetária praticada pelo Banco Central (BC).
Essa visão vem sendo detectada nas projeções feitas por cerca de 170 instituições financeiras, que alimentam semanalmente a Pesquisa Focus, que, por sinal, tem especulado a respeito da passagem de bastão da chefia do BC, a primeira desde a obtenção da autonomia, que designou mandatos não coincidentes entre governantes e presidência e diretoria do banco.
Alguns veículos formadores de opinião chegaram a insinuar ensaios portadores de conteúdos comparativos entre a posição atual e o furo da margem de tolerância, acontecido em 2015, com inflação de 10,67%, no fechamento do ano, para teto de 6,5% e centro de 4%.
Trata-se de incursão absolutamente deslocada no tempo e no espaço e destituída de qualquer fundamentação técnica. Na ocasião, o tarifaço de energia elétrica (mais de 50%) e combustíveis, patrocinado pelo novo ministro da Fazenda de Dilma 2, Joaquim Levy, desmanchou as disfunções ocasionadas pelo persistente populismo tarifário e cambial de Dilma 1, que, diga-se de passagem, contou com a benevolência da autoridade monetária.
De fato, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), mensurado pelo IBGE, referência da dieta de metas e métrica das oscilações de preços no varejo para uma cesta de produtos e serviços consumidos por famílias com renda entre um e quarenta salários mínimos (SM), exibiu acréscimo de 0,44% em setembro – ante deflação de -0,02, em agosto, e aumento de 0,26%, no mesmo mês de 2023 -, 3,31%, no ano, e 4,42%, em 12 meses.
Já o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), também do IBGE, que contempla as flutuações de preços para a classe entre um e cinco SM, conhecido como a inflação do trabalhador, subiu 0,48%, em setembro – versus queda de -0,14%, no mês antecedente e aumento de 0,11%, em igual período de 2023 -, 3,29%, no ano, e 4,09%, no acumulado nos últimos 12 meses.
No entanto, uma observação detalhada das estatísticas disponibilizadas pelo organismo nacional permite perceber a ausência de fortes sinais inflacionários pelo lado da demanda do sistema econômico, embora os deslizes oficiais na calibragem adequada dos fluxos das finanças públicas, conforme estabelecido pela Nova Regra Fiscal, instituída em 2023, em lugar do Teto de Gastos, implantado na gestão de Michel Temer.
Inquestionavelmente prevalece o voraz apetite gastador das três instâncias de poder (executivo, legislativo e judiciário) e dos entes federados, estimulado pelo ciclo eleitoral, particularmente com a aprovação e transferência aos partidos do fundão de quase R$ 5 bilhões para financiamento público das campanhas, contra menos de R$ 2 bilhões, alocados em 2020.
Não menos importantes foram as famosas emendas parlamentares que facilitaram ou mesmo decretaram a vitória das agremiações partidárias aglutinadoras da moderação do centro e do conservadorismo da direita, nas disputas de quase ¾ das prefeituras e câmaras de vereadores dos 5.569 municípios do país.
Em outros termos, em um contexto de fuga das polarizações, reproduzidas em 2018 e 2022, e priorização da percepção de plataformas atreladas essencialmente à gestão local na definição do sufrágio, enquanto os eleitores de centro e direita exibiram o desejo de minimização da subordinação a um único líder, fração considerável dos de esquerda mantiveram a manifestação de compromissos com imagens forjadas no passado e, na maioria das situações, ultrapassadas e/ou dissociadas da realidade.
Tanto é assim que dos prefeitos eleitos em primeiro turno, o Partido Social Democrático (PSD) contabilizou 878 (15,8% do total), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), 847 (15,2%), o Progressistas (PP), 743 (13,3%), o União Brasil, 578 (10,4%), o Partido Liberal (PL), 510 (9,2%) e o Republicanos, 430 (7,7%), perfazendo, no agregado, 71,6%.
Lembre-se de que o embrião da multiplicação de emendas compreendeu o orçamento impositivo, criado mediante a realização de quatro ajustes na Constituição, implantados entre 2015 e 2020, que ensejaram as impositivas, de relator e Pix, estas últimas possibilitando o repasse direto de haveres públicos à estados e municípios, sem especificação do destino, condicionado a aplicação de 70% das cifras em obras públicas. Cálculos preliminares identificam a reeleição de 93% dos prefeitos agraciados com as emendas pix.
Ainda assim, a dinâmica ascendente de precificação repousa eminentemente em componentes de oferta, em especial alimentos (hortaliças, frutas, verduras e óleos) e energia elétrica, afetados pelas várias catástrofes climáticas, como as enchentes no Rio Grande do Sul, as queimadas na região Centro-Oeste e a prolongada e profunda estiagem na Amazonia.
O encarecimento de 5,36% da fatura de energia elétrica residencial decorreu da deliberação de alteração da bandeira tarifária de amarela para vermelha, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em razão da drástica diminuição dos níveis dos reservatórios das usinas geradoras.
Também interferiu crucialmente no comportamento dos preços, em setembro, a majoração de 2,13% nos combustíveis domésticos, especificamente o gás de cozinha, em consequência da supressão dos descontos concedidos pelo oligopólio da distribuição, e de 1,23% nas tarifas médias de transporte público, em municípios importantes.
Portanto, descontando o pronunciado grau de imprevisibilidade acoplado aos distúrbios exógenos – principalmente aqueles de natureza geopolítica, com a intensificação da disputa hegemônica entre Estados Unidos versus China e Rússia, agravados pelas incertezas quanto ao desfecho da contenda eleitoral à presidência norte-americana e pelo conflito no Oriente Médio, com inevitáveis repercussões no suprimento e cotações do petróleo -, ao menos por enquanto, não há qualquer sintoma de descontrole de preços a justificar desconfortos e/ou aloprações nas bancas de ativos de risco.
Mesmo assim, nota-se exagerada preocupação com a alardeada velocidade de incremento da demanda, superior ao PIB potencial, amparada em indicadores de alargamento dos salários reais médios e aumento do volume de vendas do comércio varejista e dos serviços.
Em contraste, a evolução das variáveis explicativas do lado da oferta – sobretudo da indústria, dotada de incontáveis efeitos irradiadores dinâmicos para frente e para trás -, medida por pesquisas do IBGE e da Confederação Nacional da Indústria (CNI), corroboram a recuperação conjuntural consistente, ainda que apoiada no consumo público e privado.
Mais especificamente, enquanto a produção fabril nacional cresceu 3%, entre janeiro e agosto de 2024, frente a igual intervalo de 2023, o emprego apresentou acréscimo de 1,9%, resultando em adição de 1,1% na produtividade, ligeiramente inferior à ampliação de 1,4% dos salários reais médios, com ociosidade superior a 20% da capacidade instalada, o que desautoriza os argumentos de intimidação pelo caminho da demanda.
Nessas circunstâncias, as recomendações de novas rodadas de elevação dos juros, sob a tese de perseguição da convergência da inflação em direção à meta, na melhor das hipóteses em 2026, se atendidas, servirão somente para perpetuar os desequilíbrios na matriz de preços relativos (formada por juros, lucros corporativos, câmbio, salários, tarifas, impostos e aluguéis) em favor dos rentismo e em prejuízo do crédito e do consumo, o que pode ser mortal para as esperanças ou apostas no investimento produtivo.
Até porque, a desinflação ou, em sentido mais amplo, a estabilidade monetária, obtida a partir de 1994, com o lançamento do Plano Real, e consolidada desde então por não poucas reformas institucionais, constitui ativo permanente incorporado à vida da população brasileira.
Sua preservação e, mais do que isso, metamorfose em um programa de desenvolvimento econômico e social de longa maturação, depende da criação e/ou aprimoramento de requisitos propícios à construção de um ambiente de negócios virtuoso e indispensável à impulsão da taxa de investimento. Mas isso é assunto para outro artigo.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.