Modelos de destruição de um campeão brasileiro

Gilmar Mendes Lourenço.
Os analistas especializados em futebol e negócios relacionados argumentam que, em condições normais de temperatura e pressão, a bola raramente entra por acaso, o que pode ser comprovado pelos inúmeros exemplos de sucesso de clubes brasileiros e estrangeiros.
Pior. Os “deuses e orixás dos gramados” são habitualmente impiedosos, ou ao menos não colaboram, com agentes que preferem restringir o esporte a um mero balcão de compra, venda e transações de empréstimos de atletas, arrendamento de instalações para finalidades alternativas e realização de partidas amistosas “caça-níqueis”.
Em outras palavras, os efeitos dessa atividade econômica refletem ou louros ou a penalização do emprego (adequado ou equivocado) de técnicas de planejamento e gestão, cujos princípios básicos repousam na garantia de obtenção do ponto de equilíbrio financeiro e do retorno ao cliente, o maior ativo dos clubes, representado pela massa de torcedores.
Fundado em 1909, o Coritiba Foot Ball Club (Coxa, Verdão ou Glorioso, como é carinhosamente chamado por sua fiel e maravilhosa torcida, de alma guerreira), começou a assumir relevância e desfrutar de respeito nacional e internacional na década de 1970.
Naquele período, além de ser o protagonista em abocanhar troféus locais, recebeu, em 1972, a comenda honorífica “Fita Azul”, concedida pelo Jornal Gazeta Esportiva a clubes brasileiros que retornavam invictos de turnês no exterior. Foram seis partidas, com quatro vitórias e dois empates.
Em 1973, conquistou o “Torneio do Povo”, competição que reunia os clubes de futebol com maiores torcidas nos principais estados do país, sob o comando do presidente Evangelino da Costa Neves (o Chines) e instrução do saudoso Elba de Pádua Lima – o Tim, segundo depoimento informal que tive o privilégio de colher do ilustre doutor Gerson Tavares, médico do Glorioso na época, “marcava os jogadores cérebros dos adversários do banco”.
Na sequência, acumulou alguns prêmios e honras locais e cumpriu uma trajetória de desempenho discreto até a chegada do almejado título de Campeão Brasileiro de 1985.
Chefiado por Evangelino, contando com um elenco desprovido de estrelas, que mesclava jogadores experientes e iniciantes, oriundos das categorias de base (juvenis) do clube, e bafejado pela sorte, que costuma acompanhar os seres humanos sérios e competentes, o técnico Ênio Andrade (campeão brasileiro pelo Inter, em 1979, e Grêmio, em 1981) organizou e orientou um plantel focado na progressiva atuação cooperativa e dedicada, que resultou na emblemática vitória por pênaltis no Maracanã.
Em 1989, quando possuía uma equipe cacifada à captura de novo troféu de campeão brasileiro, o Coxa foi rebaixado para a série B, em cumprimento à punição dada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), por não ter comparecido a um jogo contra o Santos, transferido arbitrariamente do Alto da Glória para a cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais.
Como pena o Coritiba amargou derrota por W x O, eliminação da competição, determinação de ressarcimento dos prejuízos contabilizados pelo Santos e a prefeitura mineira e suspensão da disputa de partidas oficiais e amistosas por um ano, esta última revertida mais adiante com autorização para registro na série B. De qualquer modo, foi uma verdadeira canetada da CBF ou rasteira no tapetão.
Desde então, mesmo vencendo alguns títulos regionais, apesar do espírito de rivalidade full time, por conta principalmente de gestões personalistas e apaixonadas de grandes empresários paranaenses, torcedores fanáticos da agremiação, o Coxa teve que assistir ao surgimento, à expansão e ao declínio vertiginoso do Paraná Clube, a partir dos anos 2000, e à exitosa reestruturação do principal adversário, o Club Athletico Paranaense (CAP).
Histórias de bastidores, transformadas em “lendas ou fábulas Coritibanas”, sugerem que a virada de chave do Athletico teria sido concebida no calor de um momento de emoção, vivido pelo empresário e conselheiro, Mário Celso Petraglia.
Há relatos de que, depois de uma fragorosa goleada de cinco a um, sofrida para o seu arquirrival, no domingo de Páscoa de dezesseis de abril, no longínquo ano de 1995, Petraglia decidiu assumir a presidência do clube e promover uma virada por meio do desencadeamento de uma “revolução”.
Isso porque, de acordo com conversa telefônica mantida com o renomado narrador e comentarista esportivo, Carneiro Neto, logo após a partida, seu filho teria deixado o “gigante de concreto armado” aos prantos e mencionado que não suportava mais ser humilhado pelos Coxas.
Além de ter se sagrado Campeão Brasileiro em 2001 e erguer uma arena super moderna, bancada com haveres públicos, o CAP disputou inúmeras Copas Libertadores, foi campeão da Copa do Brasil, em 2019, e levantou duas vezes a taça de campeão da Conmebol Sul-Americana, em 2018 e 2021, pejorativamente denominada, pelos invejosos adversários, de segunda divisão continente.
Quanto ao endividamento para a construção da Arena, após intensas tratativas que envolveram o perdão de multas e juros por atrasos, definido pela Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), em outubro de 2022, o montante encolheu de R$ 1,2 bilhões para R$ 590 milhões (a serem pagos por estado, município e CAP), com o Athletico sendo encarregado da quitação de R$ 190 milhões, faltando R$ 96 milhões, repartidos em quinze anos, com juros de 1,9% ao ano.
Antes disso, o Coxa experimentou memorável campanha, em 1998, consequência de belas atuações de um time preparado por Valdir Espinosa (campeão mundial de clubes com o Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, em 1983) e conduzido pelo ex-craque da seleção uruguaia, Dario Pereyra.
Com um desempenho extraordinário fora de casa, o Verdão encerrou a competição classificatória de oito times que participariam da etapa de “mata-mata”, em terceiro lugar, sendo considerado pelo técnico Carlos Alberto Parreira, tetra campeão do mundo com a seleção brasileira, em 1994, como o mais vistoso futebol jogado no país naquele período.
Igualmente digno de registro foi o elenco montado, em 2008, pelo talentoso e empenhado treinador, Dorival Junior, atual comandante do escrete canarinho, então contratado por uma diretoria bastante atenta e comprometida com a retomada do status do clube.
Na época, estando no exercício da função de coordenador do Curso de Economia da FAE, instituição de ensino superior privada de Curitiba, que costumava promover anualmente uma diversificada e qualificada Feira de Gestão, a mais importante do Sul do país, recebi e atendi pedido da diretoria do Coritiba para liberação de convites para a plateia da palestra que seria proferida pelo diretor de futebol do Barcelona da Espanha.
Todos os dirigentes compareceram e, para a minha agradável surpresa, Dorival me solicitou convite para assistir o evento da noite seguinte, dado que o assunto lhe interessava. Minutos antes do começo da exposição da personalidade convidada, lá estava ele com sua prancheta, papel e caneta para as anotações que julgasse pertinentes.
Também foi destacável o plantel dirigido pelo extraordinário Rene Simões, em 2007, campeão da Série B, formado, em sua maioria, por pratas da casa, que seriam presentemente os “piás do Couto”, em alusão ao estádio Couto Pereira, que rendeu um elogio nacional do comentarista da Sportv, Lédio Carmona, afirmando que, se estivesse na primeira divisão, aquele grupo do Coritiba poderia beliscar vaga na Libertadores.
Na mesma balada emblemática foi o conjunto que alcançou o retorno à elite do brasileirão, em 2010, sendo também campeão do acesso, depois de ser sido rebaixado do patamar A, no ano do centenário do Clube, em 2009, e condenado à perda de mando de campo, em mais da metade dos jogos, em face da invasão do gramado e vandalização do estádio pela torcida, na derradeira partida daquele ano, travada com o ultraprotegido Fluminense.
O Coxa também foi finalista da Copa do Brasil, em 2011 e 2012, sob a liderança de Marcelo Oliveira, perdendo para Vasco e Palmeiras, respectivamente, e rotulado como destaque internacional, na primeira metade de 2011, por atingir a marca de vinte e quatro vitórias consecutivas, referendada como inédita entre os clubes de futebol do planeta pelo Guinness World Records.
Em um dos confrontos memoráveis da Copa do Brasil de 2011, quando vencia o Palmeiras por três a zero, ainda no primeiro tempo (o placar final foi seis a zero), colheu um comentário auspicioso de Paulo César Vasconcelos, também do canal por assinatura Sportv: “dá gosto de ver o time do Coritiba jogar”.
Ademais, participou apenas duas vezes da Copa Libertadores, com performances medíocres: em 1986, quando obteve o direito de disputa por ter sido campeão nacional em 1985, ocupou o segundo lugar no grupo dois; e, em 2004, quando encerrou a competição em terceiro lugar do grupo nove.
Porém, não obstante os lampejos pontuais de condutas elogiáveis, a vida do Glorioso, notadamente na última década, assumiu contornos dramáticos, caracterizada por uma autêntica gangorra de subidas e descidas para as séries A e B, respectivamente, do certame brasileiro, sobressaindo-se como frequentador assíduo da segundona.
Decerto que essa anomalia crônica não constitui obra do acaso. Ela reflete o trabalho (ou a falta dele) de consecutivas administrações notabilizadas pela adoção de métodos extremamente primitivos, deslocados dos princípios e regras ditados por exigências de modernização do esporte, que culminaram na perversa combinação de disparada dos passivos financeiros – com decretação de recuperação judicial em agosto de 2022 – e retumbantes malogros dentro das quatro linhas do gramado.
O balanço esportivo foi tão desfavorável que os sócios elegeram para a presidência do clube, no intervalo entre 2018 e 2020, um torcedor de arquibancada (com todo o respeito) e militante partidário de esquerda (também com a devida vênia), absolutamente despreparado, cujo ápice dos absurdos foi a importação de um jogador “medalhão aposentado e em atividade” para alavancar o elenco que, por seu turno, indicou o treinador a ser garimpado. “É o rabo correndo atrás do cachorro”.
No entanto, a falha mais recente, quase que irremediável, diz respeito à aprovação pelos associados de transformação do clube em Sociedade Anônima de Futebol (SAF) e venda, em junho de 2023, de 90% doa ativos à Treecorp Investimentos, gestora de fundos sediada em São Paulo, sendo que os 10% restantes couberam à Associação Civil do Clube.
Ressalte-se que a modalidade SAF, instituída legalmente no Brasil em 2021, representa um expediente corporativo bastante questionável, implantado por Cruzeiro, Vasco e Botafogo, notadamente por escapar do cumprimento da finalidade básica de viabilização da captação de recursos de terceiros para a cobertura projetos de longo alcance e priorizar ganhos imediatos.
Mais do que isso, a escolha de atletas para a composição (ou desmonte) dos grupos leva em conta objetivos financeiros específicos, os investimentos nas categorias de base têm sido desprezíveis e a clientela, expressa na massa de torcedores, constitui mera rubrica ou peça contábil, que aparece e interessa somente para a conferência do bordereaux das bilheterias e da receita proveniente das mensalidades pagas pelos sócios.
As SAFs também encampam a arrecadação com direitos de transmissão, utilização de placas de publicidade, aluguel dos estádios, royalties da cessão do uso da marca e patrocinadores.
No caso do Coritiba, mesmo a promessa de inversões de R$ 1,3 bilhões (sendo R$ 450 bilhões destinados ao futebol), em dez anos, incluindo um novo Centro de Treinamento (CT) e obras de modernização do Couto Pereira, caminha a passos de tartaruga, na mais generosa das avaliações, reflexo da lógica financeira prevalecente na condução por profissionais alheios a negócios de prolongado tempo de maturação.
Por isso, não surpreende, na prática, a intermitente mudança de arranjo de membros da cúpula encarregada da gestão, da comissão técnica e de jogadores, englobando a contratação de “experts” desconhecidos no mundo do futebol e/ou dotados de escancarada animosidade com a menosprezada torcida do Coxa.
Considerando tratar-se de profissionais que desconhecem e/ou se recusam a acompanhar a dinâmica operacional de um CT e dos vestiários, ou do “chão de fábrica”, no linguajar industrial, acostumados a lidar com fluxos de ativos de risco, salta aos olhos a constância da improvisação e a ausência de planejamento.
Só que esse povo não despreza dinheiro. Ao mesmo tempo em que preservam e atualizam a retórica, por vezes elegante e por outras grosseiras, de “reengenharia gerencial e operacional do clube”, no velho estilo da “conversa mole para boi dormir”, os dirigentes devotam-se à tarefa de perseguição ferrenha da rentável atividade de comercialização de jogadores (velhos e jovens, normalmente destituídos de maior afinidade com a pelota e, não poucos, “bichados”), em velocidade acelerada, diga-se de passagem, festejada pelos nobres empresários de plantão.
Por tais motivos, a funcionalidade do clube torna-se refém da estratégia de estruturação de elencos medíocres, repletos de atletas preguiçosos, apáticos, desobedientes e indisciplinados, esforçados apenas na “estranha” marcha rumo aos pontos de milhagem por recebimento de cartões amarelos e vermelhos, adestrados por técnicos de terceira categoria, que tornaram o Verdão uma caricatura de time de futebol, com viés decadente.
Como desdobramento desse empreendimento caótico, o Coxa vem sendo varrido precocemente do terreno das competições habilitadas pela CBF e Federação Paranaense de Futebol (FPF), por oponentes apoiados em reduzidos volumes de recursos, tidos como do “baixo clero”, ausentes de rankings ou certames oficiais nacionais.
Contudo, as organizações futebolísticas menores que, há muito tempo, se despojaram de qualquer tipo de deferência ao Glorioso, supondo inclusive ser presa fácil, aparentemente são unidades de negócios planejadas.
Como qualquer área das relações humana, o futebol obedece a movimentos pendulares e, quando menos se esperar, a Treecorp perceberá e entenderá sua natureza minúscula ante o gigantismo da nação Coxa Branca e estabelecerá e consumará a estratégia de retirada.
Com incansável, incessante, legítima e forte pressão da formidável torcida do maior campeão paranaense, esse desejado presente de Natal poderá chegar na Páscoa.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.